AS VOZES DE ONTEM



1

À esquina que dá para a rua "Porto das pedras" ficava o bar do deficiente físico Geovani, que hoje é uma loja de eletrodomésticos. E, lhe parece ver Geovani, baixo, tronco largo, braços musculosos, o rosto oval, corado, sorridente, que soltava as risadas dobradas, o cabelo rente ao crânio, às pernas fininhas, movendo-se gingando o corpo de um para o outro lado (daí o apelido de "Requebra"), apoiado numa muleta...

Defronte ao antigo bar, estão os edifícios residenciais, no outrora terreno com os galpões e as seções da Indústria de papel e celulose, a "Minerva.".

O velho passa observando as cenas do passado. Dobra a esquerda,  entrando na Rua Maria Estevão.  À sua direita estão as residências conjugadas que hoje têm novos moradores. Na primeira residia João Testinha, que consertava televisão e rádios. Diabético, magro, sabedor da vida alheia do bairro. Sempre atualizado com as recentes novidades.

- Aquela menina, a Cristiane, "pegou" barriga.

Fazia a pausa e concluía:

- O cara não quer mais nada com ela, caiu fora! Também essas meninas não pensam, só querem "curtir!".

Na casa vizinha, morava o sargento do exército, figura sempre ausente. Na terceira, o homenzarrão seu Inácio, deitado na rede armada de um pilar ao outro do terraço que era o prolongamento do bar sem fregueses, com a perna inchada, vítima de dois  derrames e quando conversando, emitia palavrões.

Caminha. Tudo mudado, alías, não poderia ser diferente, pois o tempo tudo modifica em sua marcha interminável. À esquina, da primeira travessa, à esquerda, morava a jovem branca, alta, esguia, de rosto bonito, cabelos negros, longos, mãe de um menino que se lhe assemelhava no físico. Quanta vez passou olhando com discrição para o terraço dessa casa, buscando ver a presença graciosa, que lhe despertava a sensação boa da "energia" positiva, e que por timidez, nunca se atreveu a uma aproximação? Ah, tudo passou. Terá mesmo vivido aqueles dias?  

- Claro que vivi...

O desabafo em voz baixinha, no hábito que adquiriu assim de repente de dizer o que pensa. Afasta-se.

O prédio da Associação dos moradores, hoje se mostra como um armazém de construção. E a mercearia de Elísio, na mesma direção, um pouco atrás? Está o prédio de seis andares, com os inquilinos nas varandas conversando, ou com a atenção no movimento abaixo, dos poucos carros e pedestres. Por trás das residências, encontra-se o morro com as casas construídas sem simetria, com as escadarias estreitas, longas, os postes às laterais, mas ali também essas moradias se mostram outras, nas cores e formatos.

- Tudo mudado...

Novamente o desabafo baixinho. Respira e pára na lanchonete, aqui era a barraca do crioulo Saulo, baixo, gordo, sentado no tamborete, com as costas na parede da mercearia ao lado, a atenção presa na vida da rua: 

- Quem? Que nada! O homem mais rico dessa rua é o Mário, daquela casa verde, no fim da rua. Mas... Deixa pra lá!

Parece-lhe ouvir a voz grossa, alta.

- Me dê, por favor, uma  água mineral.

- Com gás ou sem gás?

Indaga a adolescente morena, graciosa, atrás do balcão.

- Sem gás.

- Certo.

Ele se senta à mesa próxima e percebe as mesas vazias, sem fregueses.

- Aqui, senhor.

- Obrigado.

Fora as luzes das residências acendem. Nos postes das escadarias e no morro também. A noite nasceu.

Saber que viveu aquele tempo... Por que ultimamente anda assim desejando se ver, nessa inútil tentativa de se reentregar ao passado? Será a morte se anunciando, ou aviso de um inesperado fato que...

- O senhor deseja mais alguma coisa?

Desperta das reflexões com a indagação ao lado da mocinha e, sorrindo:

- Que é que se tem para se lanchar?

- Bolo de forma. Empadinhas. Pastéis. "Enroladinhos".

- Traga uns pastéis.

- Certo.

Dá-lhe as costas e retrocede ao balcão. Mocinha interessante! Também teve essa idade, foi jovem, com seus sonhos, a esperança de um futuro que lhe desse nova existência...

- Passou, passou seu Augusto.

- O que foi que o senhor disse?

Inquire novamente a adolescente regressando.

Ele sorri mais uma vez:

- Nada não. Tou velho, falando sozinho.

Ela fica mais séria e se afasta, deixando-o com o seu mundo, que é o das lembranças.

2

- Você Augusto, tenha cuidado: andando sozinho por aí... Do jeito como as coisas estão. A violência está demais!

Ele sorri, e nada responde. Afinal, A Dora tem razão de se preocupar com as suas saídas, o caminhar por o bairro afastado, onde morou...

- Você vai tomar o banho agora?

- Vou. Pode ir esquentando o jantar.

O corpo gordo da mulher deixa o sofá e entra na sala conjugada, para adentrar na cozinha ao lado e acender o fogão, no qual esquentará a comida do marido, que  passa e entra no banheiro também conjugado. Tudo numa repetição de outras noites. Até quando assim?

- Só Deus sabe.

Abre a torneira e a água desce do chuveiro, forte, banhando-lhe o corpo magro, branco, trêmulo.

No fogão a carne dança na frigideira, tendo D. Dora mexendo-a com vagar. Pensativa, de repente  sente o receio, como um aviso...

3

- Minha filha você não pode calcular o quanto tenho sofrido nesses últimos dias!

A mulher nova entende-a sim. E nada diz. Espera.

- Seu pai aí nessa cadeira, sem falar direito, com a voz "engrolada"... Derrame desgraçado!

A filha então quebra o silêncio, solidária:

- Mamãe tenha paciência. Vamos superar tudo isso. Deus sabe o que faz.

As lágrimas. Os soluços. E o silêncio que as envolve.

Na varanda, o enfermo olha a rua, de poucos veículos e pedestres sem ver, "desligado" que estar da realidade, prisioneiro do outro mundo.


Autor: Paulo Valença


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