CUORE



 

“CUORE”

 

Depois de setenta anos – e talvez mais – me reencontrei com uma cópia surrada de “Cuore” de Edmondo De Amicis.

É um livro simples, da metade do século 19 - o agitado 1800 - e relata acontecimentos de um ano escolar .

Apenas o diário de um aluno, um testemunho de outra época, de outra gente.

Pegou-me de surpresa, levando-me longe, para trás – para trás mesmo, não no século passado – porque nós já éramos diferentes – mas antes.

 

Movido um pouco pela curiosidade, um pouco pela surpresa, fiquei folheando-o  bem devagar;  e por um par de horas, fui levado a uma outra época. Emocionei, regalei-me, fiquei navegando numa nuvem.

 

Para começar, pela forma: todas aquelas palavrinhas bonitas, gentis e delicadas, - mesmo quando retratam  cenas tristes ou trágicas, ou quando aceleram o andamento, porque os fatos atropelam as palavras, no seu andar impetuoso e veloz – parecem quase um fino trabalho de bordado, feito, desfeito e refeito a mão, pacientemente , como os que a minha bisavó fazia.

 

Depois, o ambiente: leva-nos de volta para um tempo em que todos  éramos muito mais pobres que hoje, trabalhávamos muito mais que hoje. Não tínhamos tempo para jogo, divertimento, leitura. Não que fosse proibido; mas se trabalhava tanto, que o corpo não resistia e tinha absoluta necessidade daquele domingo, feito só de descanso, com a única obrigação de assistir à Missa.

 

Naquela época éramos simples: não nos aborrecia termos só uma camisa e um par de sapatos; de “desvirar” (dizia-se assim mesmo) o terno usado e gasto do vovô, para poder usá-lo uns dois anos mais; a primeira gravata chegava quando você tinha vinte anos e começava a namorar com a sua garota – esta também, a primeira e quase sempre a única da sua vida.

 

Mas, se bem me lembro, éramos gentis e carinhosos; a desgraça de alguém era sentida e sofrida por todos, e não era preciso que o conhecêssemos, era só saber que era “alguém” de nossos bairros, de nossa vizinhança, da nossa cidade. Chamava-se “solidariedade”. Hoje está em desuso e é desconhecida; um arcaísmo impróprio para a nossa época.

    

Cuidávamos de nossas ruas, da igreja, da escola, das estátuas nas praças.

 

Lembro que uma noite, atirei uma pedra numa lâmpada – uma molecagem da qual me arrependo até hoje. Apareceu-me um homenzarrão, um guarda municipal. E, em lugar de esbravejar ou de me bater, ele me passou uma lavada de cabeça, com tanta seriedade, tanta convicção, tantos argumentos, que quase me pus a chorar; e arrependido, não consegui fazer mais  que prometer – a ele e a mim mesmo – que nunca mais faria uma coisa dessas.  Era uma maneira de conquistar a “cidadania”.

 

E enfim – recordando que estava falando de “Cuore” – os fatos; aqueles meninos são tão humanos, tão sérios, que dá vontade de ser um deles  de ter amigos como aqueles e de poder contar ainda com um Papai que, escrevendo no meu caderno os seus pensamentos a título de comentários, me transmite a coragem e a honestidade da qual vou precisar por toda a minha vida; e que assina, simplesmente , Teu Pai.

 

 

 

Há, mensalmente, um conto, que reflete a grandeza dos pequenos, dos pobres, dos humildes. E traz a compensação pelo sacrifício, mas não obrigatória. Ela surge das coincidências.   “Cuore” leva-nos longe – bem longe. Se quisermos, é capaz de fazer-nos entender que todos aqueles pobrezinhos – os meninos, os pais, o professor, o gari – eram mais felizes do que nós.

 

Tinham rédeas, é verdade, mas tinham também uma estrada correta a seguir.

Percebiam logo, quando começavam a andar de forma errada.

Tinham Deus que os julgava; tinham o Rei, que os controlava; tinham uma família (e se necessário, alguns tapas do pai), que os amava, que os acompanhava e os “levava no coração” (era assim mesmo que se dizia)

 

Comparados com aqueles, são tempos feios, estes de hoje; lúgubres, violentos, selvagens; mas talvez – e digo apenas “talvez” como última esperança - a leitura de “Cuore” consiga restaurar em nós a fé que perdemos.

Afinal, eles eram crianças, pais, alunos e professores; homens como nós; e nós somos apenas o sangue, do sangue deles.

Coragem. O arco íris nos espera.

 

E mesmo que não encontremos no fim um pote de ouro, a caminhada vale bem a pena: porque os homens de bem caminham juntos, ajudam-se, participam, distribuem o pouco pão e a pouca água que têm. 

E  o pão distribuído, a água dividida entre todos, multiplicam-se e nos tornam melhores.

 

E assim, todos teremos menos fome, menos sede e menos solidão.   


Autor: Romano Dazzi


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