OS CONTORNOS JURÍDICOS DA RESPONSABILIDADE AFETIVA NA RELAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS: ALÉM DA OBRIGAÇÃO LEGAL DE CARÁTER MATERIAL



O presente estudo tem como cenário a família. É na família que se desencadeiam os principais e basilares acontecimentos na vida do ser humano, o desenvolvimento do caráter e personalidade de seus membros, precipuamente dos filhos menores. Assim, o amor dos pais configura-se de fundamental importância do amadurecimento e crescimento dos filhos, em todos os seus aspectos, do afetivo ao social. Neste contexto é que se destaca na seara jurídica nacional, a responsabilização civil dos pais, pelo abandono afetivo de sua prole. Este é o tema central da monografia realizada. Procurou-se abordar a evolução da família e do poder familiar ao longo do tempo, fazendo uma análise dos princípios norteadores do direito de família. Traçou-se a importância do convívio e afeto paternos no desenvolvimento dos filhos, relacionando-se à falta da presença efetiva do pai ou mãe e suas conseqüências para o filho, principalmente no aspecto psicológico, o que, segundo o entendimento de alguns, geraria o dever de indenizar. Fez-se uma análise de doutrinas e jurisprudências acerca do delicado assunto, trazendo posições divergentes, de forma a enriquecer o debate e levar à reflexão: o abandono afetivo deve propiciar a reparação civil? A questão é tormentosa e não pode ser respondida de súbito. Carece, antes, ser feita uma análise cuidadosa de todo o contexto, conjugada a elementos do ordenamento jurídico, jurisprudencial e doutrinário, para se vislumbrar uma resposta, nem sempre de consenso.
Palavras – Chave: Relação entre paterno-filial. Afeto. Responsabilidade Civil. Descumprimento da autoridade parental. Abandono Moral e Afetivo. Reparação de Danos causados aos filhos.

As relações entre pais e filhos se alteraram substancialmente no decorrer da civilização. Durante muito tempo, os pais detinham uma extensa gama de direitos sobre os filhos. Nesse diapasão, o conjunto de direitos sobre os filhos era exercido somente pelo pai e somente os filhos legítimos ou legitimados se submetiam a estes direitos.

No que se refere à entidade familiar, sua concepção foi se transformando ao longo do tempo e hoje se fala em família constitucionalizada, que contempla outras formas de família e a igualdade entre filhos. Quanto ao pai, que detinha absoluto poder sob os membros da família, passa a ser detentor do dever de cuidado e proteção. Passou-se do pátrio poder ao poder parental ou poder familiar, que impõe aos pais deveres muito além dos deveres de guarda e sustento, devendo ser exercido em benefício dos filhos e em prol de seus direitos como pessoa humana. A paternidade responsável passou a ser contemplada pela Constituição, sob o entendimento de que o Estado não pode intervir no planejamento familiar, mas este deve ter como fundamento a paternidade responsável e a dignidade da pessoa humana.

Normativamente, a mudança na relação entre pais e filhos ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, recepcionando a família eudemonista. Ela estabeleceu paradigmas em defesa dos direitos humanos, consagrando a dignidade da pessoa humana como pilar da democracia. Ademais, outorgou igualdade entre homem e mulher, aniquilou as diferenças entre os filhos, elucidando a doutrina da proteção integral (a qual mais tarde foi consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente), entre outros, como o reconhecimento de outras formas de entidade familiar além daquela constituída pelo casamento entre homem e mulher.

Outro marco foi a efetivação do princípio da afetividade, motivada pelo fenômeno da repersonalização nas relações familiares, mediante a qual o afeto tornou-se valor jurídico a ser preservado e vivenciado no âmbito familiar.

Nesse diapasão, o conteúdo do pátrio poder se alterou substancialmente, sendo deslocado, juridicamente, o seu ponto central, do direito dos pais sobre os filhos para o melhor interesse do filho. Assim, esse 'novo' conteúdo inaugurou o instituto do poder familiar – melhor identificado como poder-dever ou autoridade parental-, que se refere ao exercício dos deveres parentais de ambos os pais, em igualdade de condições, de forma a cumprir as determinações legais referente aos direitos dos filhos incapazes.

Tal alteração passou a não mais corresponder com a nomenclatura utilizada pela Constituição Federal, pois não se tratava mais de um conjunto de poder dos pais, mas um conjunto de deveres dos pais a serem exercidos em prol dos filhos, com fiscalização do Estado e da sociedade, sendo exercido por estes na impossibilidade dos pais o exercerem. Tal nomenclatura foi repetida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo alterada somente pelo Código Civil de 2002, que adotou a nomenclatura de poder familiar, tentando adequar o termo à realidade sócio-jurídica vivida pela sociedade.

O poder familiar, nesse contexto, é tido como um encargo dos pais de atender ao filho, assegurando todos os direitos fundamentais elencados pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil por meio da promoção da assistência, criação e educação dos filhos. Tais deveres devem ser desempenhados por ambos os pais de forma conjunta e em condições de igualdade visando o melhor interesse do filho, cabendo ao filho respeitar e obedecer aos pais, seguindo suas determinações.

Há de se ressaltar que os deveres paternos preceituados pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil não se restringem ao aspecto material, são muito mais abrangentes pelo fato da família atual ser pautada no princípio da afetividade. Nesse contexto, os deveres paternos devem-se cingir, além do aspecto material, a educar, assistir e criar os filhos no aspecto moral, intelectual, ético, dando-lhes suporte para um desenvolvimento sadio, respeitando a dignidade do filho como sujeito de direito.

Para efetivar os deveres de criar, educar e assistir aos filhos no aspecto moral pressupõe-se a necessidade de afeto, amor, carinho, obediência, compreensão, respeito entre pais e filhos, primordiais para desenvolver o melhor interesse dos filhos e a preservação da família.

Nesse caso, o papel da família contemporânea é garantir à criança além de suas necessidades básicas de subsistência, também o apoio moral, afetivo e psicológico. Quando isso não ocorre, coloca-se em risco o desenvolvimento pleno da criança, enquanto pessoa humana.

O princípio da afetividade é um dos atuais elementos constitutivos da família, o qual abarca todos os sentimentos acima citados, onde cada membro deve respeitar a dignidade do outro, pois a família não mais se baseia em uma relação mercantilista, de caráter econômico e produtivo, baseia-se, atualmente, no afeto, no amor e no respeito mútuo, com o intuito de realização pessoal afetiva de seus membros.

O princípio da afetividade é vislumbrado principalmente nos seguintes preceitos constitucionais: arts. 226, § 4º, 227, § 5º e 6º e 229. Para que esses preceitos sejam efetivados, em sua plenitude, deve ser respeitada, também, a dignidade da pessoa humana, princípio estruturante de todos os demais.

A Constituição, ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como basilar, confere novo paradigma aos direitos da personalidade, aumentando sua gama, protegendo-os de suas constantes violações geradoras de danos de cunho extrapatrimonial (dano moral).

Imperioso destacar que os princípios da responsabilidade civil se aplicam ao Direito de Família, visto que nenhum ramo do direito é completamente autônomo, além de que há princípios gerais do direito que se aplicam a todas as esferas, isso ocorre, por exemplo, com os princípios constitucionais.

Destaca-se, nesse sentido, que a responsabilidade civil deve ser aplicada ao Direito de Família porque ele é protegido pela Constituição Federal, protegido contra atos que violem a dignidade de seus membros.

Assim, a conduta que viole direito da personalidade, entre eles a dignidade da pessoa humana, é ilícita conforme preceituado pelo artigo 186 do Código Civil, seja ela decorrente do Direito de Família ou não.

A dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional, bem como a proteção integral da criança e do adolescente. Assim, se um desses princípios forem violados, seja essa violação decorrente de culpa ou dolo, e dessa violação decorrer um dano, o agente causador deve ser responsável pelo dano causado.

Toda violação normativa que cause dano a outrem deve ser objeto de responsabilidade, seja ela civil, administrativa e/ou penal. Insta destacar que uma esfera da responsabilidade não impede a responsabilização em outra esfera.

Assim, no caso em análise, o não exercício do poder familiar, por um dos genitores ou o seu não exercício de forma satisfatória pode desencadear responsabilização civil, administrativa e penal.

A responsabilidade administrativa ocorre por violação às normas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 24 e 249), podendo inclusive haver a perda do poder familiar nos casos mais graves. A responsabilidade penal, ultima ratio do direito, decorrente da violação ao Código Penal (arts. 244 a 249) podendo implicar em detenção e/ou multa.

Referente à responsabilidade civil por abandono afetivo é importante destacar que além dos danos sofridos pelo filho e o nexo causal, deve haver uma conduta do genitor, conduta essa ativa ou omissiva, decorrente ou não de culpa em sentido lato.

Tal responsabilidade se fundamenta na falta de convivência familiar da criança com um dos genitores, direito esse consagrado pelo artigo 227 da CF/88 e artigo 1.634 do CC, sendo que a sua ausência pode gerar danos de ordem psicológica, moral, ética, entre outros, ao filho.

A violação desse direito da criança (convivência familiar) bem como o fato de o genitor não dispensar assistência, educação e criação, de cunho imaterial, pode gerar danos aos filhos. Nesse sentido, cumpre ressaltar que a paternidade/maternidade são funções reais, ou seja, se um filho foi concebido, fruto da relação entre os genitores, este merece, tem o direito de ter sua dignidade respeitada, deve ser criado num ambiente de afeto, respeito, igualdade e responsabilidade, entre outros.

Os danos sofridos pela criança, decorrentes do abandono afetivo, devem ser provados, averiguando-se se, efetivamente, os danos sofridos são decorrentes do abandono afetivo por parte de um dos genitores, por parte do descumprimento dos direitos dos filhos pelo genitor.

Assim, como os pressupostos da responsabilidade civil são a conduta ilícita, seja ela decorrente de culpa ou dolo, dano e nexo de causalidade, caberá aos profissionais especializados em psicologia infantil averiguarem se efetivamente o dano ocorreu e se ele é proveniente do abandono afetivo.

A culpa do agente decorre de uma culpa presumida, também denominada de culpa in re ipsa, segundo Sérgio Cavalieri Filho. Deste modo, a culpa se presume de forma que a vítima não precisa provar que o agente agiu com culpa ou dolo, cabe assim, uma inversão do ônus probatório, de tal forma que o agente deverá provar que agiu dentro de uma das excludentes possíveis para se eximir de responsabilização.

Tal entendimento é verossímil porque, geralmente, pelo artigo 333 do CPC, incumbe o ônus da prova a quem alega, assim, caberia ao filho provar que o pai agiu com culpa, o que é praticamente inviável. Contudo, o filho se encontra em posição de 'hipossuficiência', além de que o filho, pela doutrina da proteção integral, deve ser protegido, assim, a inversão do ônus da prova referente à culpa, tornando-a presumida até que se prove o contrário, se faz necessária.

Pela culpa presumida cabe ao genitor provar que agiu dentro de uma das excludentes (caso fortuito, força maior, culpa exclusiva de terceiro, desconhecimento da paternidade, impedimento do outro genitor, imputabilidade, entre outros) para descaracterizar a responsabilidade civil.

Assim, caracterizada a conduta do genitor, seja ela ativa ou omissiva, decorrente de culpa em sentido estrito ou dolo, de abandonar seu filho (ausência de criação, educação, assistência e convivência no aspecto moral), causando-lhe danos de ordem imaterial, há a responsabilidade civil do tipo indenização por danos morais de responsabilidade do genitor.

Em se tratando de dano moral, a reparação do dano é utópica, uma vez que é impossível re-estabelecer o status quo ante, sendo que em assim sendo, a responsabilidade civil terá outras funções. As funções da responsabilidade civil por abandono afetivo devem visar recompensar o sofrimento do filho, punir o genitor pela sua conduta de forma a conscientizá-lo a não mais agir de tal forma e alertar a sociedade de que, condutas que violem os direitos dos filhos pelos pais, não são aceitas e serão fontes de responsabilidade civil (caráter tríplice: compensatório, punitivo e dissuasório).

Por fim, a responsabilidade civil por abandono afetivo é tutelada pelo ordenamento jurídico brasileiro, apesar de não haver norma expressa tão específica, por violar a dignidade da pessoa humana, atentando contra a proteção integral da criança e do adolescente e ao princípio da afetividade.

Nesse diapasão, a omissão à assistência imaterial, ao afeto, à convivência familiar, à criação e à educação à prole constitui conduta ilícita, por violar preceitos da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, devendo incidir na indenização por danos morais.

O argumento sobre a impossibilidade de se querer quantificar o preço do amor não pode servir de amparo à recusa da reparação, pois a situação atual do direito, com a pessoa como centro das discussões, torna insuportável tal fundamento.

Nesse viés, deve-se ilustrar que a responsabilidade civil por abandono afetivo não visa que um genitor ame seu filho, mesmo porque o amor não é tutelado pelo direito e ele 'não tem preço' e 'não se compra'. O que se tutela são os direitos dos filhos, que não pediram para nascer, mas que têm o direito de ter um pai presente em suas vidas, auxiliando o outro genitor a exercer o poder familiar de forma a fazer valer os direitos de sua prole.
Autor: Michele Träsel


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