Da Oferta de Produtos e Da Supressão da Intenção de Vontade



Há nas coisas necessidades várias. Há igualmente contranecessidades que são, a seu tempo, pertinentes. Uma manifestação atual dessa contranecessidade se percebe na ampliação ilimitada da possibilidade das coisas, em que um simples telefone celular, por exemplo, tem seu uso padrão aniquilado, não em detrimento desse uso, mas em favorecimento da possibilidade de outros usos que se "acoplam", transformando esse objeto em um "não padrão", num "devir", num item inesperado. Dessa forma, como não se pode mais ater-se ao padrão da coisa, apela-se para a possibilidade da coisa a seu tempo ou — que seja — para a contranecessidade dela, que aqui é pertinente, uma vez que — não podendo esse consumidor determinar o que é a coisa — vale-se, no geral, de seu uso (porque se trata dum produto que serve), mas não é esse um uso mediano ou mesmo coletivo, é antes um uso "apadronado". Exemplo oposto se encontra num lápis, cujo uso é padrão — apesar de poder ser usado para furar o olho de algum inimigo, serve basicamente para uma única coisa todo o tempo, tem em si seu fim, sua necessidade, não cabendo aqui qualquer variação e, mesmo variando, não cabe padronizar esse novo uso ou "apadronizá-lo" em nome de um "devir".

Do mesmo modo, quando um produto, como o celular ou o lápis, é ofertado, é ofertada juntamente a necessidade ou a contranecessidade desse produto, cabendo ao seu detentor, mais tarde, dispor de uma ou de outra forma (ou de ambas) a seu modo. Insere-se nesta questão, entretanto, outro quesito fundamental na oferta da coisa, que é o ambiente onde essa coisa é ofertada.

Toda possibilidade de comercialidade (não comercialização, comercialidade mesmo) tem seu ápice a partir de normas que a regulamentam: pode-se comercializar um celular ou um lápis, mas não uma pessoa. Essa possibilidade de comercialidade é definida pela norma, também a seu tempo, de acordo com as implicações da coisa em seu tempo: podia-se comercializar uma pessoa na época da escravidão, mas não um celular, porque ele nem sequer existia. Acrescenta-se também a essa norma a viabilidade do ambiente de comercialidade: pode-se comercializar um celular ou um lápis num shopping, mas não embaixo do oceano Atlântico. Assim, definidas tanto a possibilidade de comercialidade quanto sua viabilidade, falta normatizar a coisa em si — não o produto, mas a oferta.

Fundamentalmente, entende-se que toda oferta deva ser feita em um lugar específico. Esse lugar jamais será "público", pois o ambiente público não é ambiente comercial, portanto, é descabida a máxima de que a oferta de produtos em local público é inofensiva. No ambiente público não há sequer suporte para a oferta de produtos. A comercialidade das coisas — uma vez estabelecida fundamental e contratualmente — somente pode ocorrer em ambiente particular. E que não se confunda "particular" com "privado".

Quando ressalvo que "ambiente privado" nada tem a ver com "ambiente particular", baseio-me na situação inversa. Suponhamos que alguém use a parede externa de sua casa para propagandear uma marca, aproveitando-se da visibilidade dessa parede (a casa pode estar à beira duma estrada muito movimentada). De maneira alguma se poderia afirmar que esse indivíduo dispôs de um "ambiente privado" para essa propaganda, visto que — mesmo antes de pintar nessa parede a tal marca — qualquer um antes via essa parede, ela já estava ali, tratava-se (e sempre se tratou) duma parede externa, visível, "alcançável". Suponhamos então que em vez de pintar a marca na parede externa, ele decidisse pintá-la dentro de casa, de tal forma que somente os que entrassem podê-la-iam ver. Ainda assim, não se trataria absolutamente duma oferta em ambiente privado (ou, se fosse, as propagandas que esse indivíduo vê em sua TV — que também fica dentro da residência — estariam em ambiente privado. E não estão).

A privacidade dos ambientes se configura quando há restrição, imobilidade coletiva, inacessibilidade comum, ou seja, quando um indivíduo, em posse de um "acesso", explora livremente a coisa única, sem, entretanto, poder compartilhá-la (em tese). Isso ocorre, por exemplo, em ambientes protegidos por senha: conta de banco, senha de telefone celular, senha de email, login, código secreto, permissão de entrada com reconhecimento de digital etc.

Mais um parêntese aqui: quando falo de não compartilhamento em tese, isso significa que, ainda que esse indivíduo que dispõe do "acesso" decida dividi-lo com outros (alguém pode, por exemplo, digitar uma senha dum portão eletrônico e entrar levando alguém consigo), essa segunda pessoa, esse "intruso", esse indivíduo que explora a coisa única, sem ser seu "primitivo", está excluída da fundamentação posterior — que faz parte do "responsabilizar-se pela coisa única" —, porque, ainda que a tenha acessado e explorado, ele não detém seu vínculo primordial de acesso, ele não passa de um "intruso", assim como o leitor dum romance, que — ainda que se identifique com o a história, ainda que a leia e mesmo a decore —, nunca se poderá intitular seu autor, porque não terá jamais como determinar de que modo manifestou-se a "responsabilização por aquela coisa única", jamais poderá posteriormente fundamentá-la (não saberá de onde surgiu a inspiração, nem em quais pessoas reais se baseiam os personagens etc. — a "origem" da coisa, a intenção de vontade, não lhe pertencerá nunca, pois isso seria o mesmo que sobrepor uma intenção de vontade à outra: a intenção de vontade do leitor é ser leitor; se ele se apropriar da escrita que não lhe compete, pelo menos não naquele caso, uma vez que o autor da escrita é "outro", sua intenção de vontade o acusará, ela mesmo o desmentirá, será tal qual dizer chamar-se Pedro, quando na verdade se chama Antônio: a intenção de vontade insatisfeita, contrariada, sempre denuncia seu autor a ele mesmo).

Em termos práticos — e falando da oferta de produtos e da supressão da intenção de vontade —, temos uma questão imediata a abordar. É já comum, logo após digitar a senha de acesso de nosso email, vermos pipocarem na barra lateral (dentro daquela área privada, restrita) ofertas e mais ofertas: caneta-espiã, pen drive, câmera digital, mochila, celular, banco, empréstimo, carro etc. Ora, isso contraria as normas fundamentais da oferta de produtos, pois não foi acordado em momento algum entre aquele que digita sua senha — que é privada — e aquele que oferta o produto uma parceria nesse sentido. Esse "outro" que surge nessa área privada não foi levado, não é um "convidado". Ele simplesmente fere o ambiente privado para lá ofertar seus produtos. E notem que não se trata de receber um email, abri-lo e encontrar nele a oferta (não se trata de "convidar" a oferta, torná-la pertinente), a oferta já está na barra lateral, no topo da página, no rodapé etc., os slides variam a cada acesso e com isso variam também os produtos ofertados. Parece não estar claro (nem aos ofertantes, nem aos ofertados) que aquela barra lateral, aquele topo de página, aquele rodapé situam-se numa área cujo acesso é restrito, cuja possibilidade de pertinência está vinculada à digitação duma senha escolhida pelo próprio indivíduo, ou seja, é-lhe ofertado — num ambiente privado — aquilo que somente se lhe poderia ofertar em ambiente particular. Trata-se da supressão da intenção de vontade. Voltemos ao início.

Com base no que já foi exposto, conclui-se que a oferta de produtos deve basear-se em:

1)Autorização da oferta;

2)Pertinência da autorização da oferta e do produto ofertado;

3)Contingência (a possibilidade de obtenção, a necessidade de obtenção, o vínculo de obtenção, a recusa de obtenção etc.)

Além disso, há a teoria da oferta de produtos — já abordada —, que abrange longamente toda a questão da especificidade do ambiente de oferta (desrespeitado no exemplo do email — ambiente privado). Gostaria de me ater um pouco mais nesse ponto. Suponhamos que foi autorizada a quebra de sigilo bancário de certo indivíduo. O banco, que somente "viola" essa senha porque a justiça o autoriza, informa que há valor x. De forma alguma o titular dessa conta poderá abster-se de prestar contas daquilo, uma vez que, sendo sua conta um ambiente privado, não há quem responda por ela, a não ser ele próprio — porque é dele a senha, ele a escolheu, só "acessa" aquele ambiente privado quem é por ele autorizado — só "trafega" ali quem ele traz, invariavelmente; mesmo o banco (que hospeda a conta) teve de ser autorizado judicialmente a invadi-la, de outra forma, violando essa privacidade sem essa autorização, incorreria em crime. Assim, se a norma pública entende que há violação, e por isso crime, num "acesso" não autorizado nesse assunto, deveria igualmente entende-lo no exemplo aqui citado.

A supressão da intenção de vontade — na oferta de produtos — é não só uma violência, como também, tal qual no outro caso, incorre em crime. Tanto a necessidade do produto quanto sua contranecessidade são descartadas, da mesma forma que foi descartada a pertinência do ambiente. Onde há uma violação há todas. A intenção de vontade do indivíduo ofertado é gerada a partir dos três itens citados acima, é o conjunto deles que "forma" a pessoa desse ofertado, que o constitui ao tempo da coisa ofertada. Igualmente, o produto se constitui disso, desse indivíduo ofertado, tem nele o seu porquê, a seu tempo; a conveniência (ou pertinência) do produto não é o produto em si, mas a coisa ofertada. Não se deve, porém, falar de produto, mas de oferta de produto. E se essa oferta suprime a intenção de vontade desse ofertado, se a fere em qualquer um de seus fundamentos geradores e promotores, não há um porquê em sua existência.


Autor: Sodine Üe


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