O trabalho livre não é livre



Durante os mais de três séculos em que o sistema escravista existiu no Brasil como principal modo de produção, muitos defenderam esse sistema não só porque lucravam com ele, mas também porque tinham plena convicção de que essa era a única e mais moderna forma de organização de uma sociedade. As regras de comportamento e de valores eram fixadas de acordo com aquilo que representava uma melhor e mais elevada posição social: a posse de escravos. Nas relações sociais escravista, o escravo não era apenas uma "máquina" para produzir riqueza através do seu trabalho, mas também servia como indicador de status dentro da sociedade. Como escreveu Emília Viotti em seu livro: Da Senzala à Colônia:

"Época houve em que a importância do cidadão era avaliada pelo séquito de escravos que o acompanhava à rua. A legislação e o costume consagravam esse significado. Concediam-se datas e sesmarias a quem tivesse certo número de pretos. A posse de escravos conferia distinção social: ele representava capital investido, a possibilidade de produzir."

E para defender esses valores, essas relações e esses costumes, a violência, a desobediência às leis e a revolta armada eram muitas vezes o caminho trilhado pelos defensores do sistema escravista. Por volta de 1870, quando a luta pelo abolicionismo se intensificou radicalmente, os conflitos armados tornaram-se comuns entre os abolicionistas e os escravistas; como demonstrou Emília Viotti (Da Senzala à Colônia):

"Os fazendeiros organizaram centros de lavoura, clubes secretos e polícia particular, com o intuito de defender pelas armas, se preciso fosse, suas propriedades; perseguiram líderes abolicionistas e expulsaram de suas comunidades juízes e advogados que, no escrupuloso exercício de suas funções, davam ganho de causa a escravos vitimados por seus senhores. Fazendeiros e asseclas atacaram jornalistas, invadiram os edifícios onde a imprensa abolicionista funcionava, desmantelando suas instalações ao mesmo tempo em que controlavam as urnas para evitar que abolicionistas fossem eleitos."

Entretanto, mesmo depois de tantos conflitos e mortes, esse modelo de organização sócio, político e econômico baseado na escravidão, que dava o direito de um ser humano possuir outro como propriedade privada, exauriu-se e desmanchou-se no ar sem provocar, como foi vaticinado pelos defensores da ordem e dos bons costumes, a catástrofe social, a ruína da nação e o caos.

O fim do escravismo no Brasil trouxe ainda uma peculiaridade interessante e que explica, em parte, o alto grau de desigualdade a que ficou submetido o negro mesmo após o fim da escravidão: a importação de trabalhadores para substituir a mão-de-obra escrava. Com isso, o negro emancipado livrava-se da escravidão para cair na condição de desempregado. O que, consequentemente, acabava por empurrá-lo para uma outra condição: a de marginal. Sobre o problema da imigração, escreveu Emília Viotti (Da Senzala à Colônia):

"Desde a época da Independência, todas as vezes em que se agitou a questão da emancipação dos escravos, veio à baila o problema da necessidade de braços para a lavoura. Tradicionalmente dependentes do trabalho escravo, as classes senhoriais não encontrava outra alternativa, a não ser o recurso à mão-de-obra estrangeira: a imigração. Emancipação e Imigração ficavam, dessa forma, intimamente relacionados."

Portanto, o fim da escravidão não se deu por um surto de solidariedade e compaixão que se abateu sobre a consciência da humanidade. Longe disso! Na verdade, o sistema escravista terminou porque passou de algo extremamente lucrativo para algo extremamente oneroso; além de ultrapassado e incompatível com o sistema capitalista que, a passos largos, tornava-se hegemônico no mundo inteiro a partir do século XIX. Por mais paradoxal que possa parecer, a alternativa do trabalho assalariado (também chamado ideologicamente de trabalho livre, e condição sine qua non para o sistema capitalista) era muito mais barato e proporcionava uma possibilidade de exploração muito maior e mais eficaz do que o trabalho escravo.

Na escravidão, o escravo era uma mercadoria e todo o seu trabalho tem a aparência de trabalho não-pago; já que ele não recebe pagamento algum, e sua subsistência é garantida com parte daquilo que ele mesmo produz durante sua jornada de trabalho. Ao contrário, no trabalho assalariado, cria-se a ilusão de que o trabalho está sendo pago quando, na verdade, o salário é apenas o pagamento em dinheiro do mínimo necessário para que o trabalhador se mantenha vivo e consiga reproduzir sua força de trabalho no dia-a-dia. "No primeiro caso, a relação de propriedade oculta o trabalho do escravo para si mesmo; no segundo, a relação monetária dissimula o trabalho gratuito do assalariado." (Marx)

Destarte, mesmo sabendo-se que os escravos eram mantidos em condições subumanas, é preciso reconhecer que essa manutenção gerava um custo para os seus proprietários. Esses custos eram necessários e inevitáveis para que a mercadoria escravo não se deteriorasse antes que ele compensasse o investimento feito, no ato de sua compra, pelo seu senhor. Portanto, mesmo que de forma precária e desumana, os Senhores eram obrigados a vestir, dar moradia (as senzalas), cuidar da saúde (despesas com médicos e remédios) e alimentar seus escravos.

Sendo assim, a substituição do escravo pelo trabalhador assalariado representou não só a possibilidade real e concreta da diminuição drástica desses custos, como também a transferência desses mesmos custos para o próprio trabalhador. Além disso, liberou o grande montante de dinheiro gasto na compra de escravos, para a aquisição de máquinas, matérias-primas, terras, etc. Ou seja, paga-se um salário para o trabalhador que mal serve para suprir suas necessidades mais básicas, e coloca-se sobre o seu corpo esquálido a responsabilidade de, com esse salário, morar, vestir, alimentar-se, cuidar da própria saúde, etc. Em outras palavras, o advento do trabalho livre significou a "liberdade" do trabalhador de morrer por conta própria. Como escreveu Marx em seu livro: Manuscritos Econômico-Filosóficos:

"Torna-se evidente que a economia política considera o proletário, ou seja, aquele que vive, sem capital ou renda, apenas do trabalho e de um trabalho unilateral, abstrato, como simples trabalhador. Por conseqüência, pode sugerir a tese de que ele, assim como um cavalo, deve receber somente o que precisa para ser capaz de trabalhar. A economia política não se ocupa dele no seu tempo livre como homem, mas deixa esse aspecto para o direito penal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a política e o funcionário de um manicômio."

Para o capitalista, portanto, não há mais nenhum ônus ou qualquer outro entrave para, numa necessidade, substituir ou desfazer-se do seu empregado doente, pouco produtivo, rebelde, etc. Nesse contexto, o homem iguala-se a um mero parafuso que, não servindo mais para a função para a qual foi produzido, é simplesmente substituído por outro; sem grandes dificuldades ou prejuízos significativos.

Para a implementação, a reprodução e a legitimação dessa nova relação de produção baseada no trabalho assalariado que extrai mais-valia e aliena o trabalhador do produto e dos meios de produção do seu trabalho, cria-se toda uma estrutura política, econômica e jurídica. As estratégias de dominação, repressão e coerção modificam-se na ideologia, na moral, nos costumes e na ética. Uma cabeça obediente e acrítica, e um corpo disciplinado e adestrado para o trabalho, é o novo modelo de homem produzido em escala industrial pelo capitalismo. Como escreveu Michel Foucault num livro intitulado, Vigiar e Punir:

"A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos 'dóceis'. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma 'aptidão', uma 'capacidade' que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada."

Essa luta pela dominação e pela legitimação dessa nova organização da sociedade (o sistema capitalista de produção), pode ser detectada já no século XVI na análise da legislação trabalhista inglesa (esse período é chamado por Marx de a era da acumulação primitiva capitalista):

"Henrique VIII, lei de 1530. – Mendigos, velhos e incapacitados para trabalhar têm direito a uma licença para pedir esmola. Os vagabundos sadios serão flagelados e encarcerados. Serão amarrados atrás de um carro e açoitados até que o sangue lhes corra pelo corpo; em seguida, prestarão juramento de voltar à sua terra natal ou o lugar onde moravam nos últimos 3 anos, 'para se porem a trabalhar'. Essa lei é modificada, com acréscimos ainda mais inexoráveis, no ano 27 do reinado de Henrique VIII. Na primeira reincidência de vagabundagem, além da pena de flagelação, metade da orelha será cortada; na segunda, o culpado será enforcado como criminoso irrecuperável e inimigo da comunidade.

[...] Reinado de Elizabeth, 1572 – Mendigos sem licença e com mais de 14 anos serão flagelados severamente e terão suas orelhas marcadas a ferro, se ninguém quiser tomà-los a serviço por dois anos; em caso de reincidência, se têm mais de 18 anos, serão enforcados, se ninguém quiser tomá-los a serviço por dois anos; na terceira vez, serão enforcados, sem mercê, como traidores." (Karl Marx; O Capital)

Para aqueles que pensam ser esta uma realidade bem distante de nós, cabe lembra que o crime de vadiagem foi instituído no Brasil na era Vargas (1930-1945) e tendo como castigo a pena de reclusão. Portanto, modificou-se apenas a forma de punir, mas continua a ser legal criminalizar alguém por estar desempregado num sistema em que o trabalhador é visto apenas como um custo a ser eliminado pelo seu empregador. Nesse sentido, podemos concluir que não é pelo simples fato de que algo está previsto em lei, que ele seja realmente justo e virtuoso. Mais uma vez retornando ao exemplo da escravidão, podemos ver claramente que o escravismo era um sistema legal porque era previsto e amparado por um código de leis; mas isso não significa, de forma alguma, que a escravidão fosse um sistema provido de justiça e virtuosidade.

Destarte, podemos constatar que por mais que uma determinada ordem vigente na sociedade possa parecer sólida, inabalável e insubstituível, ela é apenas mais um processo histórico que, como tantos outros, teve seu início, seu meio e seu fim. O trabalho assalariado não é trabalho livre porque continua a aprisionar o homem às suas necessidades mais básicas de sobrevivência e a aliená-lo dos meios de produção e do produto do seu trabalho. Rebaixando-o à condição de um animal de carga, que tem no seu corpo e na sua força física as suas qualidades principais como um fim em si mesmo.

Nesse sentido, podemos observar que os constantes ataques que vêm sofrendo os direitos trabalhistas no mundo todo (disfarçados sobre o manto ideológico e eufêmico de Flexibilização Trabalhista), o crescente número de trabalhadores informais e o assustador contingente de desempregados (fatos que acabam por reproduzir condições de trabalho que lembram a época da primeira Revolução Industrial) podem ser a indicação da capacidade já exaurida desta relação de produção: o trabalho assalariado. Como escreveu K. Marx no livro, Manifesto Comunista (1848):

" A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais."

O que significa que, assim como o fim das relações de produção baseadas no escravismo modificou todas as outras relações existentes naquele tipo de sociedade, o fim do trabalho assalariado como base de sustentação das relações capitalistas de produção, implicam também o nascimento de uma nova sociedade, com novos valores, conceitos morais, éticos, costumes e novas leis de regulamentação das normas de convivência entre os indivíduos. Continua Marx:

" [...] Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo que é sólido e estável se volatiliza, tudo que é sagrado é profano, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas."

Para concluir, o que está aberto ao mundo neste século XXI, é a possibilidade de não só assistirmos mas, ao mesmo tempo, sermos personagens ativos na construção de um novo tipo de sociedade. Onde nossas atitudes e pensamentos serão decisivos para que o novo, que está por vir, seja algo mais justo e humano; e menos selvagem e irracional do que o velho que agoniza. Nada pode ser construído de uma forma positiva e duradoura, sem que se conheça a fundo a base material e subjetiva sobre a qual foi erguido aquilo que se quer substituir.

Renato Prata Biar; historiador; pós-graduado em filosofia Rio de Janeiro


Autor: Renato Prata Biar


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