Os Ofaié Entre o Ivinhema e o Três Barras



Estamos em 1912 [i]. A vegetação espessa distante das margens alagadiças do rio Ivinhema impede a visibilidade fazendo com que os homens que vão a nossa frente tenham de utilizar seus facões com vigor para limpar o terreno e adentrar a mata que circunda o vale. Na região predomina a floresta estacional e de contato com a savana, deixando transparecer uma formação florestal ribeirinha permeada de acumulações fluviais que se estende em meio ao solo plano do tipo latossolo vermelho escuro [ii] característico dessa bacia.

Auxilia-nos nessa excursão sertanista pelo interior indígena da antiga Capitania de Mato Grosso, as idéias intempestivas do historiador Umberto Eco que nos incentiva a descobrir algo que ainda não foi dito ou escrito sobre o objeto de nossa expedição (ECO, 1985, p. 2). As bordas desse recorte da história, ainda que corroídas pela ação do tempo cronológico que nos separa dos fatos e mentalidades de uma época tão fartamente visitada por profissionais das ciências sociais e humanas, elas ainda permanecem vivas e nos parece ser possível ouvir seus reclamos.

Uma leve brisa dialética empurra a cortina singular do tempo histórico e remove a poeira acumulada sobre as páginas desbotadas de um manuscrito cujo conteúdo ainda há pouco se encontrava prisioneiro do passado e irremediavelmente encravado na moldura de um saber-poder que o impedia de expressar suas palpitações mais profundas (PRIETO, 1995). Informações que descansaram esquecidas por mais de setenta anos nas prateleiras da biblioteca particular do Sr. Luís Bueno Horta Barbosa (GONÇALVES, 1993, p. 27), eis que, de súbito, insiste em querer falar.

A região se prolonga em suaves ondulações que se desdobram desde o divisor das águas fartas que corre em direção a galhada do Ivinhema que nasce pela formação dos rios Dourados e Brilhante e se estende por mais de duas centenas de quilômetros através de seus afluentes (MALAN, 1929, p. 499). Essa imensa mesopotâmia fértil compreende um manancial que vai desde o rio Vacaria, pela margem esquerda e ribeirão Santa Gertrudes e Santa Maria, pela margem direita, até onde suas águas encontram o colar de ilhas que compõem a várzea do ribeirão Samambaia e outros pequenos córregos, antes de desembocar no caudal farto e manso do rio Paraná.

O rio Ivinhema, desde os tempos coloniais experimentou a navegação que iniciava em Porto Feliz, na Província de São Paulo e tinha como ponto final de sua rota de abastecimento do baixio da serra de Maracaju, o rio Brilhante (GUIMARÃES, 1988, p. 143). Num curso de aproximadamente 250 km, o então Igaray, como era chamado no período colonial, ele é navegável desde a sua foz até encontrar o Brilhante e o Dourados.

Desde 1628 suas águas já haviam sido freqüentadas pelo célebre bandeirante Antonio Raposo Tavares e suas incursões de preia de indígenas para o comércio de escravos e de apoio às expedições rumo às minas auríferas de Cuiabá. Percebe-se logo que nessa época mais recuada os rios são os grandes senhores do tempo. Por eles passam a economia, a guerra e a informação. E, irremediavelmente, a história.

Qualquer informação sobre os povos indígenas que ai viviam, querer percebê-la na crônica de um período espanhol mais recuado, configura-se tarefa difícil, dada à escassez e dispersão dos registros. A maior parte do tempo a história deu visibilidade e atenção somente àquelas populações autóctones que de alguma forma impactaram o percurso do chamado homem branco ao oferecer resistência mais dura a esses exploradores, como é o caso dos temíveis Payaguá, Guaycurú-Mbayá e do gentio Kayapó.

A presença de fortes, presídios, destacamentos militares, colônias e missões religiosas ao longo dos rios Miranda (Presídio de Miranda, 1797), Iguatemi (Forte de Iguatemi, 1767), Nioac (Destacamento Militar de Nioac, 1847), Aquidauana (Santiago de Xerez, 1579), Paraná (Casa de Registro, 1822), e Tietê (Colônia Militar de Itapura, 1867), entre outros, durante séculos, tiveram como finalidade garantir tanto a Espanha como a Portugal, posições consideradas vitais para a obtenção da supremacia na região, semeando segurança à ocupação desses espaços.

Longe de ser uma região isolada, o vale do Ivinhema, em 1857, já havia experimentado a criação de pelos menos quatro colônias indígenas que foram instaladas pelo governo imperial brasileiro com o fim especial de oferecer um ponto de contato com a Colônia Militar de São José de Monte, no rio Brilhante. A primeira foi a colônia de Santa Leopoldina, na margem direita do Samambaia (atual rio Amambay), na sua confluência com o Paraná e que se destinava a reunir os indígenas Coroados que vagavam por ali; a segunda e a terceira foram a colônia de Ipiranga e a colônia de Paraná, ambas na margem direita do Ivinhema, sendo uma na confluência do rio Corupanã (córrego Curupaí, limítrofe entre os municípios de Naviraí e Jateí), e a outra na confluência com o rio Dourados. A última colônia criada por sua majestade imperial foi a de Antonina, localizada na margem direita do rio Ivinhema, na confluência deste com o Rio Brilhante (CUNHA, 1992, p. 242).

Ainda que tais colônias tivessem, na época de sua criação, o objetivo de servir de ponto de apoio e facilitar a navegação fluvial entre as Províncias do Paraná e de Mato Grosso (Idem, p. 241), essas verdadeiras fazendas nacionais de criação de gado, elas chamavam para si a missão de também desenvolver a catequese promovida pelo Barão de Antonina nos ditos sertões do Ivinhema. Nomeados pelo Ministério da Justiça (Idem, p. 208), missionários diretores administravam essas colônias com a função e o dever de também atrair para lá os indígenas que vagavam pelas matas vizinhas. Deviam, entretanto, empregar para esse fim, recomenda a legislação indigenista da época, sempre meios brandos e suasórios, fazendo-lhes apreciar as vantagens da vida social, oferecendo-lhes brindes, que requisitarão do Governo Imperial (Idem, p. 244).

Foi somente a partir do final do século XIX, entretanto, que a população indígena que habitava a região do Ivinhema passou a ser descrita mais amiúde pela crônica dos viajantes. Povoada por milhares de Guarani e por uma boa centena de Ofaié —que ocupava o magnífico habitat da erva-mate—, a região até a segunda década do século XX apresentou um acelerado processo de desenvolvimento.

Aos cuidados da Companhia Matte Laranjeira, que desde 1883 até 1924 manteve a exploração da erva mate na região, escoando seu produto através do Porto Angelina (atual município de Angélica), localizado na margem direita do Ivinhema, ali nesse porto, se instalou um grande acampamento de hervateiros. Neste local, registra o Inspetor do SPI, Genésio Pimentel Barbosa, durante uma de suas visitas ao lugar, encontrou mais de uma centena de empregados doentes com impaludismo (malária).

A exploração da erva mate em 1924 já se encontrava metodicamente muito bem regulada e aos cuidados da Matte Laranjeira, cuja capacidade administrativa configurava prosperidade crescente, melhoramentos realizados nas vias de comunicação, e extraordinário desenvolvimento da região (MALAN, 1929, p. 499). Sabe-se que essa Companhia, um ano antes havia exportado quase dez mil toneladas de erva-mate, principal produto do Estado. Em quase sua totalidade, o produto era transportado pela navegação, onde a Viação São Paulo-Mato Grosso assumiu importante papel como elemento de fixação da mão de obra e população imigrante.

Essa mesma empresa Viação chegou a requerer e obteve do governo de Cuiabá, nessa época, uma faixa de terra na margem direita do rio Samambaia para a exploração da erva-mate, que logo tratou de demarcá-la, disputado que era aquele território por fazendeiros e outras empresas que ali almejavam se instalar. Registre-se que a expectativa, nutrida por dezenas de posseiros, habitantes da região e proprietários lindeiros a essa área concedida pelo governo à companhia de navegação, era de que a terra fosse destinada a eles. O grupo de posseiros que há tempo reivindicava para si essa área nas margens do Samambaia ocupava a terra que fazia divisa com as posses do coronel Domingos Barbosa Martins, respeitado proprietário da região.

A participação decisiva dos Guarani na economia do Estado como mão-de-obra na extração da erva-mate, somente em tempo recente tem sido observada sob um olhar mais acurado a partir dos relatos de uma época, cuja história, aparentemente descuidada, sempre procurou ocultar a exploração indígenas nesse tipo de trabalho. O mesmo ocorreu, podemos dizer, em relação à presença Ofaié nesse cenário. Referindo-se ao Posto Indígena do Laranjalzinho, que teria sido criado para garantir a sobrevivência dos indígenas dessa região, o Auxiliar Genésio Pimentel Barbosa escreve que após 1924, os últimos Guarani que ali viviam, já não necessitam da proteção da Inspetoria (BARBOSA, 1925).

No seu entender, ali também não mais existiam Ofaié, e os indígenas Guarani que ai permaneciam já eram trabalhadores criados e habituados aos nossos costumes, sabem negociar e são em número de (apenas) quatro indivíduos. Para o funcionário do SPI, a tribo dos Guarani, havia desaparecido por completo (Idem).

A ocupação econômica da região sul do Estado, lembra Darcy Ribeiro, começou pelos campos marginais atingindo inicialmente os Ofaié; com isso, de certa forma preservou os Guarani que se encontravam nas matas e que não interessavam aos criadores de gado. A extração da erva-mate, logo tem início, com a chegada de paraguaios que, falando bem o Guarani, mais facilmente puderam aliciar os indígenas para o trabalho, transformando-os em pouco tempo em assalariados temporários dos ervateiros e acostumando-os a fazer desse trabalho a fonte de suprimento de artigos para uso individual, colocando em colapso suas antigas economias coletivistas (RIBEIRO, 1977, p. 89).

Embrenhado no mato, Curt Unkel Nimuendajú era o primeiro da fila. De estatura pequena, atento as suas anotações, era um jovem alemão de 20 anos de idade que chegara ao Brasil em 1903 e desde logo iniciara suas incursões, inicialmente pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e depois pelo Serviço de Proteção aos Índios-SPI. Corria o ano de 1905, no estado paulista, e ele já havia entrado em contato com os Guarani eKaingang durante a exploração do rio Aguapeí (rio Feio), tendo chegado até sua foz com o rio Paraná (município de Três Lagoas).

No ano seguinte, teve a experiência de sua vida com os Apapocuva-guarani, do rio Batalha, também do lado paulista. Sua primeira experiência com os Ofaié havia acontecido em 1909, quando foi incumbido pelo diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, de reunir informações sobre os indígenas Kaingang, Terena e os últimos sobreviventes Oti, no oeste de São Paulo. Foi ao explorar os aldeamentos dos Ofaié do sul de Mato Grosso que ele teve a oportunidade de recolher informações para a produção do célebre Mapa Etnográfico do Brasil, de sua autoria (GRUPIONI, 1998, p. 174).

Junto à comitiva que acompanha essa pesquisa, no fim da fila, e igualmente preocupado com suas fontes, também vai o pesquisador. É quando ele se pergunta, como fez Claude Lévi-Strauss: —Que viemos fazer aqui? Com que esperança? Com que fim? (LÉVI-STRAUSS, 1956, p. 402). Sua dissertação tem por objetivo traçar a rota percorrida pelos Ofaié na região, desde o seu aparecimento até o momento em que eles foram aldeados pelo SPI. Como nos tempos do sargento-mor Teotônio José Juzarte e suas navegações em terras, então de Espanha (1769), até as expedições do desbravador Joaquim Francisco Lopes (1848), quando fez contato com os Kaiowá do rio Ivinhema, a população indígena dessa região vivia em permanente sobressalto.

O papel da memória aqui assume a dimensão proposta por Paul Ricoeur (1996) como a última guardiã de algo que efetivamente ocorreu no tempo. É quando a história dos historiadores se encontra com a memória dos testemunhos, ou seja, quando a vigilância crítica, dos primeiros, se encontra com a fidelidade ao passado, dos segundos (SILVA, H., 2002, p. 426).

Tal ambição de veracidade, entretanto, nem sempre ocorre. Num dado momento percebemos os Ofaié em desatinada fuga pelos campos, esquivando-se das perseguições dos exploradores e dos criadores de gado, e num outro momento, já os encontramos candidamente descritos por uma historiografia regional alheia às marcas mais sombrias dessa sua passagem pelo tempo, manifestando temperamento dócil e comportamento gentil. É o que percebemos, por exemplo, quando os vemos retratados sempre vagueando e vivendo em constante dispersão, como se tomassem rumos e direções distintas sem qualquer interferência exógena e ao sabor unicamente de suas próprias decisões.

Em meio ao solo lamacento e escorregadio que caracteriza a várzea que circunda as margens do Ivinhema, sob os pés do pesquisador surge uma nova realidade, muito distante da produzida pela história ufanista, cuja fonte absolutizou a escrita e a congelou no tempo, no álbum individual da memória. A criação e o enraizamento dos mitos políticos como o verificado na literatura memorialista regional, é bom frisar, só são possíveis graças às referências sociais que naturalizam a sua aceitação, permitindo sua circulação, seu reconhecimento e facilitando sua apropriação (FONSECA, 2002, p. 440).

A passos largos, apressa-se o historiador na busca daqueles fatos que revelem e desvelem os nuances do que ocorreu com o povo Ofaié, em perseguição de uma história que ainda se encontra em construção. Vai a busca, não dos restos que ficaram do passado de uma população morta —localidades, personagens, mentalidades— (CERTEAU, 2000, p. 106), mas de uma explicação para uma população que ainda vive e se pergunta sobre a sua própria trajetória.

O vale do Ivinhema, desde 1844, foi rota segura de viajantes ilustres cujos feitos e glórias a historiografia espetou no tempo e no grêmio da civilização. Joaquim Francisco Lopes, preposto do Barão de Antonina, foi um desses que explorou a região por terra. Ao lado de João Henrique Elliott que em 1850 havia se tornado proprietário da fazenda Aroeira, na região da Vacaria, juntamente com outros companheiros, um ano antes, havia aberto a célebre estrada que ligava São Paulo ao baixo Paraguai, via Tibagi, ao Paranapanema, Paraná, Ivinhema, Brilhante e Nioaque, rumo ao presídio de Miranda. Neste ponto, no varadouro entre os rios Brilhante e Anhuac (Nioaque), preocupa-se logo o governo imperial em instalar um pequeno quartel para o destacamento de 12 praças (CUNHA, 1992, p. 206).

A documentação colonial menciona sempre a presença de indígenas Cayuás nessa região. Sobre outros povos indígenas os registros silenciam. A partir de 1836, com a chegada do mineiro Antônio Gonçalves Barbosa e sua famosa comitiva de 58 pessoas, a presença indígena, que eram até serviçais, passa a ser percebida de forma mais constante (FACHOLLI & DOERZBACHER, 1991, p. 20).

No ano em que foi promulgada a Lei de Terras, o Ministério do Império já tinha a intenção de fixar parte desses Kaiowá em cada um dos dois portos ao longo da margem do Ivinhema, e o resto junto ao porto que eles tem no rio Brilhante, entre o rio dos Kágados e o Vacaria, a fim de que auxiliem nas monções. Sob o comando do inspetor de obras João José Gomes, o Visconde de Monte Alegre, responsável pelo varadouro entre os rios Brilhante e Anhuac, aos funcionários do porto eram oferecidos objetos próprios para brindar os índios, que muito convém atrair e aldear (CUNHA, 1992, p. 208-9). Os Ofaié que aparecem na historiografia habitando a região do rio Ivinhema no início do século XX são apresentados como grupos egressos dos campos da Vacaria e da região da Aroeira.

Perseguidos pelos criadores de gado da região à montante desse rio, hipótese provável é a de que possam ter seguido o curso do Vacaria e Brilhante até o Ivinhema navegável, descendo em direção a sua foz. Se, na região acima haviam travado seus maiores embates contra fazendeiros e bandoleiros do pós-guerra, ao longo do Ivinhema passam também a atuar engrossando as fileiras dos patrícios que ai já se encontravam no palco de inúmeras disputas travadas entre proprietários e outros grupos indígenas do lugar. Esse estado de violência só teria sido amenizado com a intervenência do Serviço de Proteção aos Índios-SPI, que buscava instalar nas margens férteis desse rio, os primeiros postos e reservas para a população indígena dispersa da região.

A zona da mata, situada junto à foz do Ivinhema é formada pelo desaguadouro de vários rios e córregos, como o Samambaia, Santa Ilidia, Baile, Combate, Três Barras, Fumaça, Quiterói e outros, todos fazendo barra com o rio Paraná. Extensas faixas de cerrado se infiltram na paisagem florestal, descrita por Sérgio Buarque de Holanda como uma vegetação exuberante, com características das matas ciliares, (que) orla quase toda a banda direita do Paraná e seus tributários para alargar-se ao longo do Pardo e ainda mais à altura do Ivinheima, onde a selva latifoliada (dotadas de folhas largas) parece prolongar além das águas barrentas as matas do Oeste de São Paulo (HOLANDA, 1986, p. 46). A vegetação e a formação do terreno, nesses moldes, assim protegia os Ofaié mais do que nos campos abertos da Vacaria.

Vivendo na margem esquerda do rio Ivinhema, os Ofaié confrontavam suas terras com a dos Kaiowá que habitava a borda direita desse rio. Tamanha era a proximidade entres esses dois povos, que os Kaiowá chegaram a dar um nome próprio no idioma guarani aos Ofaié dessa região. Chamavam-no pelo nome de Yviva, que quer dizer (yvi) apenas + (-va) pessoas (NIMUENDAJÚ, 1987, 124, nota 86). A aproximação dessas duas etnias gerou muita confusão e infortúnios para ambos os lados.

Um relato do início do século XX, narrado por Nimuendajú, traz a notícia de um massacre que teria sido praticado por engano contra os Kaiowá quando o alvo deveria ter sido um grupo Ofaié que fora acusado de ter praticado um ataque que vitimou um tal de João Nogueira, que havia se estabelecido no córrego da Vaca Morta. Sobre a localização desse córrego veja a Figura nº 1 abaixo.

Os sertanejos seguiram, então, em perseguição dos índios, chefiados por Manoel Nogueira, irmão do defunto. Segundo o relato de Nimuendajú o grupo desce o Papagaio para o lado do rio Ivinhema e encontra uma aldeia Kaiowá, onde assassina 8 a 10 pessoas pacíficas e inofensivas. Dizem uns, que mataram os Kaiowá por engano, convencido de que eram Ofaié (NIMUENDAJÚ, 1913a).

Ao relatar esse morticínio o etnólogo confessa que com certeza estes bugreiros saíram resolvidos a matar quantos índios encontrassem, fosse qual fosse a nacionalidade. Isto porque, depois deste 'engano', ainda não satisfeito com essas barbaridades, o grupo seguiu rumo Leste do rio Samambaia e, encontrando uma aldeia Ofaié, mataram a todos que ali estavam (Idem).

O ribeirão próximo à aldeia onde se deu este crime ainda hoje se chama ribeirão Combate (Poe-korã-fíe na língua Ofaié), e é limítrofe dos municípios de Anaurilândia e Bataiporã. Ao lado da fazenda onde esse fato ocorreu, nos informa Darcy Ribeiro, há um monumento de alvenaria com as inscrições: Filhos e companheiros que foram infortunadamente trucidados pelos Chavantes em 19-04-1900 (RIBEIRO, 1951, p. 92).

A respeito do espírito sanguinário atribuído por diversas vezes às populações indígenas na historiografia brasileira, Nimuendajú, em carta dirigida a Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, conhecido como o pacificador dos Xokléng, em 1933, ele se refere à freqüência das hostilidades praticadas pelos Botocudos (Xokléng) contra os colonos alemães (e que tiveram repercussão na imprensa de Berlim e Viena). O etnólogo alemão sai em defesa dos indígenas oferecendo como explicação para esses massacres (como seria o caso também dos praticados pelos Ofaié), que eles eram conseqüência de condições especiais de ordem social ou política, e não de uma manifestação de caráter racial, aliás, como sugere Hermann von Ihering (IHERING, 1911, p. 132) [iii] e que, segundo Nimuendajú, cessaria com a pacificação (NUMUENDAJÚ, 2000,p. 351).

Mas voltemos à expedição. O grupo de pesquisadores contemporâneos agora se aproxima seguindo o curso por uma estrada carreteira ao longo da margem direita do ribeirão Laranjalzinho, afluente do lado esquerdo do Ivinhema. A estrada ligava a região à fazenda Guarani e à fazenda Gato Preto, no córrego Santa Bárbara. O imaginário do que restou do episódio do Posto Indígena que ali existira até 1924 nos toma de assalto.

A onomástica contida na história social dos rios e dos lugares é ela agora que traça o panorama e o conteúdo das motivações que brota de uma região carregada de símbolos e saberes: Córrego Fumaça, Córrego da Bugra, Córrego Batalha, Córrego do Engano, Ribeirão Combate, Córrego da Aldeia, Fazenda Cacique, Fazenda Guarani, Fazenda Gato Preto.

É como se os pesquisadores experimentassem pisar sobre um amplo e rico sitio arqueológico. Entre o Ivinhema e o Samambaia, que correm praticamente paralelos em direção ao Paraná, a área toponímica revela símbolos e significados que se cristalizaram numa infinidade de nomes, lugares e fatos sociais, já desaparecidos, mas que suas lembranças, são como vozes que ainda gritam e assombram aos visitantes (CARVALHINHO, 2003, p. 172).

As buscas se tornam frenéticas e os acontecimentos agora se plantam face a face com o historiador, como que emergindo de seu estado latente, preenchendo ausências impostas pelo saber e o tempo. Aos Ofaié, tão fartamente mencionados pela documentação nas duas primeiras décadas do século XX, o SPI não logrou garantir a sobrevivência e tampouco o território que esse povo manteve sob domínio. Agora são eles mesmos que buscam distinguir o lugar do não-lugar no universo das representações sobre os fatos ali ocorridos.

É o episódio da passagem dos Ofaié pelos Postos de Atração Indígena do Peixinho e do Laranjalzinho, ambos instalados nos primeiros anos de existência do SPI, sob o comando de Cândido Rondon, que se configura o centro da preocupação da nossa expedição. Sobre o primeiro Posto (do Peixinho) muito pouco se sabe. E sobre o segundo, quando é mencionado na documentação, aparece pelo nome de Posto Indígena do Ivinhema. Ambos os Postos, porém, nos são apresentados pelos relatórios oficiais como figuras solitárias e insólitas, em meio um amplo campo permeado de dúvidas.

Inicialmente cabe dizer que a finalidade da criação dos postos de atração indígena, deixam claro os documentos do SPI, era a de reunir em um só lugar os diferentes grupos que se encontravam dispersos na região sul de Mato Grosso. A historiografia em geral tem apresentado os aldeamentos criados a partir do início do século XX, como extremamente benéficos e necessários à sobrevivência dos povos indígenas.

O Relatório da Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais em Mato Grosso, de 1913, dirigido ao Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio não deixa dúvidas sobre essa intenção. Referindo-se ao Posto de Atração do Laranjalzinho o documento apresenta o seguinte resultado: Por toda à parte, estabelecida a pacificação, os índios são atraídos aos postos pelo espetáculo dos recursos de que dispõe nossa civilização industrial e, depois de terem modificado suficientemente os seus hábitos, reunidos em povoações indígenas, onde lhes são fornecidos todos os meios de que carecem para um conveniente desenvolvimento de seus hábitos agrícolas. (EXPOSIÇÃO, 1913, p. 15).

Vejamos agora um pouco sobre a história desses dois postos indígenas criados pelo SPI, o fim que se propuseram e o destino que tiveram (CONTINUA).



Autor: Carlito Dutra


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