Rousseau e Estátua de Glauco



Introdução

Ao se deparar com a questão sobre a origem da desigualdade entre os homens proposta pela Academia de Dijon, Rousseau é remetido à procura da origem da humanidade em si mesmo porque acredita que só assim obterá as respostas que busca.

Nessa procura começa a pensar sobre a dificuldade de retornar ao primitivo sem transportar aquilo de civilizado que possui em si e valendo-se do mito da estátua de Glauco, inicia uma longa reflexão, que acaba tornando-se mais relevante que a questão da desigualdade em si, sobre a degeneração resultante da vida em sociedade, o enfraquecimento da pitié e o desenvolvimento do amor- próprio, concluindo ser a desigualdade entre os homens conseqüência destes.

É sobre esse ponto mais relevante abordado pelo autor que pretendo deter-me nesse trabalho, utilizando-me do trabalho de comentadores (Salinas Fortes, Starobinski) para expor sob seus diversos pontos de vista o que significa para Rousseau a parábola de Glauco.


Biografia

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra em 28 de junho de 1712 .

Sua mãe faleceu pouco após seu nascimento, o que gerou em Rousseau um sentimento de culpa que carregou por toda sua vida.

O pai, um relojoeiro, o criou durante sua infância, mas em 1722 é expatriado por um desentendimento com um cidadão influente, deixando Rousseau e seu irmão sob tutela de um tio materno.

Rousseau não teve educação regular senão por curtos períodos e não freqüentou nenhuma universidade, tornando-se, entretanto, leitor assíduo desde a infância. Ele e o primo são enviados para serem educados no campo por um pastor protestante, onde ambos estudam latim e outras matérias.

Aos 12 anos retorna e após um período de ociosidade, começa a trabalha em um cartório, não obtendo sucesso.

Em 1725 começa a trabalhar em uma oficina de gravação onde é mal tratado. É apanhado praticando pequenos furtos e cunhando moedas com as quais presenteava amigos. Investe o pouco que ganha em aluguel de livros.

Aos dezesseis anos, habituado a caminhar pelos arredores da cidade, perde o toque de recolher e acaba passando a noite do lado de fora da cidade. Não quis submeter-se aos castigos que o esperavam e deixa, então, Genebra.

Encontra auxílio em Madame De Warens, que torna-se sua amante e torna-se católico por sua influência.

Em 1740 passa a tutorar os filhos do irmão de Condillac (quando torna-se seu amigo), mas malogra na tarefa. Escreve sobre a "educação natural".

Sobrevive por um tempo como professor de música. Com a morte do pai, Rousseau recebe uma pequena herança, o que traz um alívio financeiro para sua vida.

Conhece Diderot e d'Alambert, se envolve com os enciclopedistas e acaba se envolvendo no projeto escrevendo verbetes relacionados à música.

Apaixona-se muitas vezes sem êxito.

Em 1745 assume vida conjugal com Thérèse le Vasseur, a criada de quarto do hotel onde morava. Teve com ela, sucessivamente cinco filhos os quais foram todos enviados para um orfanato, atos justificados em seus livros por falta de condições financeiras e saúde. Somente em 1768 ele casou-se com ela numa cerimônia civil.

Em 1749, Diderot publica sua Carta sobre os Cegos, na qual expressa claramente posições ateístas. Por esse motivo foi preso durante três meses em Vincennes, onde Rousseau o visita quase diariamente. É a caminho de uma dessas visitas que Rousseau se depara com a questão "Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes¨, da Academia de Dijon. É aí que Jean-Jacques recebe a emoção criadora responsável por torná-lo quem hoje conhecemos.

Recebe em 1750 o primeiro prêmio da Academia de Dijon, quando começa a fama que o faria sentir-se tão perseguido.

Em 1756 envolve-se com uma mulher que é motivo de chacota entre seus amigos e por esse motivo briga com Diderot. Entra em conflito também com d'Alambert ao criticar um texto escrito por ele na Enciclopédia. Escreve um romance, A Nova Heloisa e também as obras teóricas que marcarão toda a história da teoria política e da pedagogia: o Emílio e o Contrato Social, entrando em atrito com autoridades políticas e eclesiásticas. Sua prisão é então decretada e ele foge.

Em 1764 é atacado por Voltaire em um panfleto intitulado O sentimento dos cidadãos, no qual é atacado como hipócrita, pai sem coração e amigo ingrato. Sempre tentando se justificar ante a sociedade, Rousseau começa a escrever as Confissões. Nos dois últimos anos de vida escreveu os Devaneios de um caminhante solitário.

Morre em dois de julho de 1778, dois meses após mudar-se para Ermenonville.

Contexto Histórico

A vida de Rousseau compreende de 1712 a 1778, ou seja, boa parte do século XVIII. Conhecida como a Era das Revoluções, já que as lutas entre o antigo e o novo estouraram pela Europa e América.

No velho continente deve-se dar importância para duas transformações grandiosas: uma econômica (a Revolução Industrial, que originou o capitalismo e modificou o meio de produção) e uma ideológica (o Iluminismo, que aboliu o teocentrismo e trouxe a racionalidade para os estudos naturais e humanos). É importante salientar que Rousseau foi considerado um iluminista, podendo, entretanto, ser classificado pré-romântico por acreditar que o progresso degenerava o homem e por não considerar a razão absoluta.

Outro fato marcante do Século XVIII não aconteceu na Europa, mas sim na América, foi a Independência das Treze Colônias, influenciado fortemente pelas idéias iluministas provenientes da Europa.


Rousseau e a Estátua de Glauco

Em 1753, ao diligenciar-se por responder a questão proposta pela Academia de Dijon sobre a origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural, Jean-Jacques Rousseau se depara com "uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor e (...) uma das mais espinhosas a que possam responder os filósofos; pois como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens se não se começar a conhecer a eles mesmos?"

Neste momento, Rousseau é remetido ao "Conhece-te a ti mesmo" de Sócrates e decide procurar em si mesmo e, não na história, a origem humana, porque compreende que tornar-se objeto de sua própria observação é essencial para a questão que deseja solucionar.

Jean-Jacques critica os filósofos que tentaram retornar ao estado primitivo, argumentando que todos eles "transportaram para o estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade".

Entretanto, compreende a dificuldade de tal ato no parágrafo quarto do prefácio de seu discurso, quando escreve: "(...) sem que para ninguém seja fácil chegar ao término, pois não constitui empreendimento trivial separar o que há de original e de artificial na natureza atual do homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido e provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente".

Ainda sobre a dificuldade de retornar ao estado original, escreve: "E como o homem chegará ao ponto de ver-se tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram ao estado primitivo ou nele mudaram?"

Após admitir a dificuldade da reflexão que está prestes a fazer, Rousseau lança mão da metáfora platônica que nos permitirá compreender com mais clareza o âmago da questão a que o autor se propõe a responder:

"Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do que a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível e , em lugar de um ser agindo sempre por princípios certos e invariáveis, em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual seu autor a tinha marcado, não se encontra senão contraste disforme entre a paixão que crê raciocinar e o entendimento delirante."

Para Jean Starobinski, o mito bifurca em duas versões: uma que afirma que a alma humana degenerou, sofreu uma alteração quase total e outra –atribuída ao 'por assim dizer' e ao 'quase' de Rousseau- que acredita que o homem, apesar de encoberto por véus superpostos, a natureza primitiva persiste intacta. A versão mais severa é proposta por Rousseau em diversos momentos em sua obra. Ele afirma muitas vezes que o mal era sem retorno. O 'mal' seria a degeneração, depravação, corrupção que o homem sofre com o movimento da história que "é um obscurecimento, é mais responsável por uma deformação do que um progresso qualitativo."

Todavia, segundo o comentador, "Rousseau se opõe com todas as suas forças à angústia da alteração interior, e luta pela salvaguarda de sua identidade." É nesse momento que Jean-Jacques replica contando para si mesmo uma versão otimista da parábola da estátua de Glauco, embasada na idéia de natureza oculta: "o mal vem de fora, mas permanece fora", o que é corrompido é apenas o exterior.

Deduz-se que, se o mal é exterior, há um homem bom interior e anterior. Se o próprio Rousseau chega à conclusão de que o homem original é bom, é inevitável questionar como pôde ele escrever que é a sociedade que o degenera, se a sociedade nada mais é que um aglomerado de homens.

Mas antes de responder a tal questão, vamos à outra inerente a compreensão do pensamento de Rousseau: afinal, no que consistiria essa degeneração? Para o filósofo, a alma humana, no estado de natureza, encontra suas paixões apenas nas necessidades físicas e possui dois princípios anteriores à razão: o amor-de-si, que interessa ao nosso bem-estar, e a piedade, que "nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes".

E é justamente a essa 'alma humana' que se degenera a que se refere Starobinski em sua interpretação do mito, para quem "o mal exterior é a paixão pelo exterior" .

Salinas Fortes, detendo-se mais na questão originada pela festa primitiva, a busca pela estima pública resultante da vida social, o "ser" versus "parecer", refere-se a esse mal como uma perversão adquirida, a duplicidade humana. Escreve que "o "homem do homem" (...) é essencialmente ator."

"A distinção entre o Ser e o Parecer não está dada de uma vez por todas (...)", trata-se de um processo decorrente do movimento da história, como já foi citado anteriormente. Evidencia-se isto em: "(...) pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível (...)"

É esse o grau máximo de degeneração: a pitié enfraquece e o amor-de-si transforma-se em amor-próprio e o indivíduo torna-se "quase irreconhecível", torna-se narciso. Sobre isso, escreve Jean-Jacques: "Para proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade se era."

O amor-próprio, aludido por Rousseau como "furor de se distinguir", ainda segundo Salinas, é fruto da vida em sociedade que origina comparações que o homem primitivo não está em condições de fazer. Isso ocorre, porque, ao contrário do movimento de transporte da piedade, me transporto até o outro "para dele me distinguir e para suplantá-lo." "A origem deste mal", escreve ele, "pode ser designada: é a passagem para a vida em sociedade."

E finalmente torna-se possível compreender a questão "como pode a sociedade corromper o homem sendo ele bom?": a vida em sociedade provoca alterações na essência humana, a corrupção acontece no homem em relação, não no homem individual.

Rousseau percebe que "o que diferencia o selvagem do civilizado é que o selvagem vive em si mesmo, ao passo que o civilizado (...) sempre fora de si não sabe viver senão na opinião dos outros e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento dos outros". É essa degeneração dos desejos e paixões evidenciada pela perda de autenticidade quando o homem faz-se social que tornam a razão delirante a que se refere Jean-Jacques no final do parágrafo em que expõe o mito.

Ele conclui, então, que a desigualdade é quase nula no estado de natureza e que é o afastamento do primitivo -"(...) em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual seu autor a (alma) tinha marcado (...)"- o responsável pelo "estado presente" de desigualdade "dissimulada sob uma máscara de igualdade de direito", como escreve Fortes. Conclui, também, que retornar a esse estado primitivo, recuperar sua pitié procurando o bom selvagem dentro de si mesmo, é a única maneira que um indivíduo tem de salvar-se.

Bibliografia

-Rousseau, J-J.: Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, In Pensadores.

- FORTES, Luiz Roberto Salinas, In Paradoxo e o Espetáculo – Política e Poética em Rousseau, Discurso Editorial, 1997, São Paulo.

- STAROBINSKI, J.: Jean-Jacques Rousseau, In A Transparência e o Obstáculo, Cia. Das Letras, 1991, São Paulo.

Outras fontes:

http://www.culturabrasil.pro.br/rousseau.htm


Autor: Amanda Noronha Fernandes


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