Circo Lando



Tia Zulmira encontrava-se absorta em pensamentos quando Tatiana, atabalhoada, entrou da rua gritando, falando, perguntando tudo ao mesmo tempo. – Ta chegando um circo! Você vai ao circo? Você já foi alguma vez a um circo? – Ô sangria desatada! Que é isso menina, quer me matar de susto?

A nostalgia em que tia Zulmira estivera submersa antes do susto, dera-se por conta da propaganda da visita do tal circo que já se espalhara pela cidade. A ultima vez que esteve num espetáculo circense foi quando reencontrou Sabino, que havia morado numa casa geminada à sua, ainda quando eram crianças, mesmo assim o reconheceu. Conversaram, relembraram coisas, prolongaram o papo, ela descobriu que ele estava novamente morando na cidade, combinaram se encontrar outro dia e outro, e outro...

Zulmira tornaria-se muito amiga de Marta, que já estava as voltas com Joselino, irmão de Sabino, que era moço sério e queria se casar. Casaram-se todos naquele mesmo ano, Zulmira e Sabino em maio, Marta e Joselino em novembro. Dona Augusta, mãe de Sabino e Joselino, quem Zulmira se lembrava por causa dos doces que ela fazia, falecera no ano anterior e o remédio para os moços foi mesmo se casar.

Marta, que não chegou a conhecer dona Augusta, deu graças a Deus quando Joselino chegou com a notícia de que havia arrumado emprego na capital. É que a convivência com seu Ambrósio, o sogro, não estava das melhores, ele sentia muita falta da esposa e vivia implicando com tudo.

Os anos se passaram e Zulmira não teve filhos, enquanto marta teve Antonio, Pedro, Everson e Tatiana, todos nascidos na periferia da cidade grande.

Joselino tinha um emprego de marceneiro e ainda trabalhava em casa nos finais de semana. Os meninos mais velhos ajudavam bastante. Marta fazia fachinas, mas mesmo assim a situação era sempre difícil, sustentar quatro filhos numa cidade grande não é tarefa das mais simples.

Um dia Marta não teve com quem deixar Tatiana, pois a creche comunitária não funcionou. A solução foi levá-la consigo ao trabalho já que dona Izabel, uma das patroas, não se importava com a presença de crianças, porém, ela não fazia idéia do tamanho do problema que arranjaria ao mostrar uma caixinha de música para Tatiana. Foi a primeira vez que esta viu uma bailarina. Apesar de seus quatro anos de idade, foi de uma decisão irredutível quando se apoderou da caixinha. Fazia um escândalo a qualquer menção sobre uma possível devolução daquele objeto de desejo. Somente quando o sono a arrebatou definitivamente é que foi possível a restituição de posse da bailarina.

Quando Tatiana acordou já estava chegando em casa. Não encontrando a caixa sentiu-se enganada e por pouco não fez outro escândalo. Mas, represália mesmo sofreu quando chegou em casa. Aquele episódio, apesar de ter sido esquecido logo por ela, marcou fortemente seu subconsciente.

Durante a infância a imagem quase mitológica da bailarina, que freqüentava periodicamente seu imaginário, foi substituída aos poucos pelo conhecimento real sobre o que é ser bailarina de verdade: freqüentava um curso comunitário de dança e balé, mas com o passar do tempo o intreresse foi diminuindo até a chama expirar-se, principalmente por que a família, pela convergência de motivos diversos, teve que voltar para Quintana, uma cidadezinha, digamos, cheia de graça*, onde tudo começou.

A morte de seu Ambrósio, uma das razões do retorno de Joselino, entristeceu muito a casa de Sabino e a vida do casal passava como se fosse uma torneira gotejando os dias. Tempo insípido que durou quase um ano, apesar das pouca e tumultuadas visitas dos filhos de Joselino. Até que a notícia da chegada de um circo agitou toda a cidade, menos a indisposição de Sabino.

Marta, que sentia falta do movimento da cidade grande, apesar da violência e da falta de dinheiro, que ajudaram na decisão da família de voltar às origens, achou que faria bem deixando Tatiana e Everson acompanharem a tia Zulmira, que queria muito ir ao circo.

Assistiram ao espetáculo do sábado que teve palhaços, trapezistas, equilibristas, mágico e domador de leões.

O dono do circo era o palhaço Lando, que, muito argucioso, anunciou para o ultimo dia uma apresentação surpresa, criando a maior expectativa no público.

No domingo toda a cidade ficou sabendo de que a última apresentação seria um balé, o que animou Joselino, que sentiu saudades das apresentações da pequena Tatiana em seu início na associação comunitária. Marta também se animou muito com a idéia de toda a família ir assistir o espetáculo que prometia ser ótimo. Até Sabino resolveu desentocar-se. E o dia teria sido o melhor dos últimos tempos, não fosse o inesperado desfecho na segunda feira:

Tatiana, dez anos depois do escândalo por causa de uma caixinha de música fez exatamente o contrário ao sentir-se novamente fascinada; fugiu na calada da madrugada e partiu com o circo que, em se tratando de paixões,  lhe acendeu uma nova e reacendeu uma antiga. Desta vez não foi uma bailarina, mas um bailarino que arrebatou seu coração de sonhadora.

Referencia ao poema Cidadezinha Cheia de Graça, de Mário Quintana.

Manoel Brandão Nobilli


Autor: " Valdir Emanoel Colo "


Artigos Relacionados


BrevÍssimo Poema Do Amor Que Se Foi

Ser Como Ser...

Não Há Impossível

Sorrir é Ser Feliz

DiÁlogo De Botequim

A Espera (ii)

A Criação