Gavetas



 

101 - GAVETAS

de Romano Dazzi

 

Imagino que na nossa mente exista uma porção de gavetas, onde podemos guardar as lembranças, as experiências, os traumas; o passado,  enfim.

Tudo é catalogado e arquivado por assunto; falou-se em comidas, por exemplo, abre-se  a velha gaveta de receitas  e logo aparecem coisas de que nem se lembrava; pode-se  errar a dosagem, mas a descrição do fundamental – os ingredientes, a maneira de misturá-los e batê-los e cozinhá-los - está lá,  pronta,  aguardando o chamado.

O que me incomoda, porém, é saber que talvez nós também – qualquer um de nós – estejamos enfiados naquelas gavetas;

Até agora, pensava que existissem, para pessoas,  apenas duas: a gaveta dos que ainda estão vivos e a dos que já se foram.

Estes não dão mais trabalho.      

Quando abrirmos a sua gaveta, uma vez ou duas por ano, basta um rápido pensamento condimentado com uma pitadinha de carinho, duas gotinhas de saudades (nada de lágrimas - produto esgotado há tempos) e aquecer, por uns quarenta segundos, no banho-maria da lembrança.

Mesmo que eles tenham nos ajudado e guiados a vida toda; mesmo que tenham deixado saudade e sacudido nosso ser com uma comoção profunda no momento em que se foram, mesmo que, em certos momentos sintamos uma falta enorme deles, quando não existem mais os condimentos da convivência diária, os sentimentos esmaecem, as lembranças amornam, o passado fica insosso e requentado.  

 

A gaveta dos vivos, em vez, recebe toda sorte de emoções e sensações.

Notas, apontamentos e recadinhos atualizam a nossa história e reajustam o nosso relacionamento com os outros.

As pessoas guardam nelas a nossa imagem, arquivam o que pensam de nós, o que imaginam que somos, o que lembram que fizemos – ou deixamos de fazer. No fim, são eles que fazem – e que depois contarão - a nossa história.

É evidente que são opiniões incompletas, distorcidas, que não refletem de nenhuma forma a nossa realidade.

Se pudéssemos, tentaríamos corrigir todas essas opiniões erradas a nosso respeito.

      Mas acabei de descobrir que existe uma outra gaveta, na qual as pessoas põem

      os que ainda não se foram, mas que já não estão tão presentes.

      É uma espécie de Limbo.

Deixe-me explicar o que é o Limbo

As religiões decidiram muito sabiamente a destinação final de cada um de nós:

1)  As almas boas, direto lá para cima, ao Céu, de avião; durante a subida, recebem das anjomoças  harpas, violinos, camisolões brancos.

2)  Os pecadores e criminosos, direto lá para baixo, ao Inferno, despencando num elevador lotado, sem freios, sem cabos,  num abismo  infinito.  Não é a queda que assusta. É o pensamento do instante em que chegará o fundo; um  fim  que nunca acontece.

3) Os que andaram “escorregando”, sem querer, sem maldade, só porque a carne é fraca e a vida é triste, ficam presos no Purgatório -  que á uma espécie de banho público, umas termas, nas quais as almas se limpam, se arrumam, se enfeitam.

Para poder subir ao Céu, deverão mostrar um sincero arrependimento (sem tentar enganar o próximo, como aqui na Terra,  com um par de Ave Marias). Bastam uns cinco ou dez mil séculos – apenas um segundo, diante da eternidade – para iniciar a difícil subida ao Céu.

4) Mas ficou  um problema:  o que fazer dos que foram bons, mas viveram antes da “revelação” ou fora dela?. Os milhões que passaram pela vida sem saber direito das coisas, sem conhecer o Deus verdadeiro, como quer que ele se chame, porque não tiveram acesso aos diversos livros sagrados: ao Evangelho, ao Torá, ao Alcorão, ao Sutanipata,  ao Anacleto?

Não têm direito a entrar no Paraíso, porque não receberam passaporte, visto, alvará, e nem vacina tomaram. São cegos, surdos e mudos, e as religiões não os reconhecem.

Por outro lado não seria justo atirá-los ao abismo do Inferno; estão, limpos, nada teriam para pagar lá, ainda mais, pensando em termos de eternidade.      

O Purgatório, seria igualmente um local inapropriado para tais pessoas: não têm culpa para expiar

Assim criou-se o Limbo; um lugar tranqüilo, isolado, que ninguém visita, porque poucos se lembram - ou sabem - de sua existência.

Está um pouco acima do Purgatório e lá as almas puras, mas não iluminadas, vivem embaladas e perdidas no esquecimento.  

 

As pessoas de hoje, preocupadas com mil tarefas, despesas, obrigações da vida moderna, quando se esquecem de nós, colocam-nos nessa quarta gaveta – um Limbo, usado para guardar o que não serve ou o que incomoda.    .

 Ficamos um pouco assustados, a primeira vista, porque o lugar é sombrio, silencioso; escuta-se a solidão, como se fosse o sopro de um vento macio.

Não há panoramas agradáveis, horizontes distantes, brilho de estrelas, claridade prateada da Lua. Nada tem a ver com os campos verdejantes nos quais o Senhor, em sua bondade,  nos prometeu o descanso.

Começamos a ficar conscientes da nossa inutilidade.

Acabamos de cumprir nosso destino,  interpretamos o nosso papel; agora saímos da cena, no meio de um ato qualquer de uma peça  sempre renovada  e sempre diferente; já somos os quase-esquecidos, os quase-sumidos; os que, de repente, se tornaram um fardo, no lugar de um suporte. Somos os que já deveriam ter ido – mas por um capricho da vida, ainda não se foram. 

E agora,  neste nosso Limbo, sentimos saudade dos dias que vivemos; das preocupações que tínhamos; da luta pela existência, dos embates diários, de todas as pequenas vitórias e derrotas, nossas e dos nossos. Perguntamo-nos o tempo todo se fizemos tudo o que devíamos, tudo o que podíamos - e se isso foi o bastante. 

Por aqui devem ter passado nossos pais, quando nos distanciamos deles, pressionados pelo nosso próprio dia a dia, sem  dar-nos conta que estavam ainda vivos - e próximos – e que ansiavam por nossa companhia.

Por aqui passarão mais tarde , quando tivermos ido, nossos filhos e depois nossos netos, sujeitos ao mesmo destino, na inevitável trajetória  da vida.

Tomara que a passagem por esta gaveta não seja demorada. Que logo nos seja permitido ir para junto dos que se foram.

Estaremos então na agradável companhia de tantos e tantos outros, que bem conhecemos; trocaremos idéias, comentários e opiniões;  e  uma ou duas vezes por ano  receberemos nossas duas gotinhas de saudade, nossa pitadinha de carinho, nossos quarenta segundos no  banho-maria da lembrança, daquelas pessoas que ainda estão aqui embaixo.

 

 


Autor: Romano Dazzi


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