O CORPO, A PERFORMANCE E A IDENTIDADE



O corpo (humano e social) passa a ser questionado ao longo do século XX. Pois a sua fragmentação parcial possui seus pilares assentados nos pensamentos de Nietzsche, Freud e Marx, que atingiram e desarranjaram o âmago epistemológico, psíquico/existencial e político/econômico das sociedades nas quais viveram e pensaram. Ainda assim, esses autores/pensadores foram incorporados como ícones essenciais da sociedade, onde posteriormente se originou o movimento operário, o feminismo, as vanguardas históricas, os movimentos de liberação sexual.

A partir desse histórico podemos perceber, e ainda em Michel Foucault (1987), no mundo contemporâneo o corpo é simultaneamente fonte de prazer e alvo da disciplina. As transgressões e a rotina saudável polarizam a tensa relação que nos mantém. Do prazer ao espetáculo (exibição) flutuam hoje, muitas noções de beleza. Nesse conjunto de possibilidades ainda triunfam, ao menos como valor ou repertório dominante, a suposta beleza dos atores, modelos, jovens e a luta do resto majoritário para conquistá-la ou mantê-la com dietas, exercícios, plásticas, próteses, roupas, acessórios. Trata-se de um modelo fundado na lógica do consumo, pois reduz o prazer físico ao âmbito da beleza e da juventude.

Desse modo o meio cultural contemporâneo torna-se crítico em relação a esse modelo e aos que o precederam, posto que ainda ativos. São também críticos em relação à sua disciplinarização para o consumo. Considerando que a politização do corpo pelas expressões artísticas contemporâneas, podemos tomá-las como vias para uma compreensão dessas novas funções.

ARTE DO CORPO

Na história da arte da performance, logo na década de 1920, quando Duchamp se deixava fotografar como Rrose Sélavy, seu trabalho de arte com o corpo mais próximo da performance se comparado à produção de body art "Tonsure" (1919): cortes de cabelo registrados como obra.

Essas ações realizadas pelos futuristas, dadaístas e outras realizadas pelos surrealistas são apontadas e legitimadas dentro da história da arte como as primeiras manifestações da arte da performance. Glusberg (1987), define a ação do artista francês Yves Klein, "Salto no vazio" (1960), como um dos movimentos iniciais daquilo que viria a ser performance no mundo. Segundo o próprio Glusberg, em A arte da performance, ela pode ser vista como um desdobramento da body art: uma manifestação artística caracterizada pela referencia direta ao corpo, à roupa, aos objetos pessoais, aos fluidos e fragmentos corporais do artista. Destarte,

A body art é primariamente pessoal e privada. Seu conteúdo é autobiográfico e o corpo é usado como o corpo próprio de uma pessoa particular e não como uma entidade abstrata ou desempenhando um papel. O conteúdo dessas obras coincide com o ser físico do artista que é, ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão estética. Os artistas eles mesmos são objetos de arte. (SANTAELLA, 2003, p. 261)

Experimentações realizadas entre 1960 e 1970, aparecem como performances, por exemplo, Gilbert & George conferem novo caráter a esta linguagem utilizando-se do conceito de escultura viva e da fotografia. O grupo Actionismus, de Viena, dá ênfase ao caráter ritualístico, este grupo reúne Rudolf Schwarzkogler, Günther Brüs, Herman Nitsch, entre outros artistas.

Para situar o Brasil nesse contexto artístico, o artista Flávio de Carvalho, foi o prenúncio da arte da performance, no início da década de 1950. Em São Paulo o Grupo Rex, criado por Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Carlos Fajardo, José Resende, Frederico Nasser, para citar os mais importantes, realizaram uma série de happenings, por volta de 1963. Hélio Oiticica nos anos 1960 com os "Parangolés", apresenta uma relação com a performance arte por sua ênfase na execução e no "comportamento-corpo". Entre as décadas de 60 e 70, Arthur Barrio mesclou ações/situações com a exposição do corpo em diversos cenários urbanos. Sempre adotando uma postura política e ideológica muito clara contra a repressão, a violência e o medo, vividos no país durante esse período. Tendo caráter de imprevistos e incertezas de existência, esse trabalho elaborado desde o início como arte, foi registrado anos depois em um "Caderno-livro", atualiza e explora o que até então seria conhecido como uma live art e performance.

Já a partir dos anos 1980, surgem no cenário nacional os artistas Guto Lacaz com "Eletroperformance II" (1983); Renato Cohen com suas pesquisas e espetáculos multimídia, por exemplo, "Tarô-Rota-Ator" (1984), O Espelho Vivo-Projeto Magritte (1986); Otávio Donasci e suas "Videocriaturas"; Eduardo Kac na performance "Time Capsule" (1997); Maria Beatriz de Medeiros e o Grupo Corpos Informáticos em performances e ações como a instalação intitulada "Estar" (2005). A partir de uma sala de estar real montada na 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, o grupo Corpos Informáticos interagiu em telepresença com diversos internautas durante o evento.

Recordando uma artista muito significativa no panorama da performance brasileira, a artista Márcia X, que explora as relações entre a arte, o erotismo e religião na performance "Pancake" (2001). Também têm figurado entre nomes da arte da performance na atualidade brasileira Marcelo Cidade, Marco Paulo Rolla, Laura Lima, entre outros.

O CORPO SOCIAL

Em decorrência da intensa exploração da temática da identidade na teoria social, é que podemos perceber como o corpo pode ser percebido nas artes visuais. Um corpo possivelmente (re)cortado, (re)apresentado, (re)desenhado, (re)configurado ou simplesmente fragmentado. E a sua identidade despedaçada na pós-modernidade pelo "descentramento" do sujeito, como aborda Hall (2006).

Configurada a partir de três concepções de identidade, Stuart Hall, apresenta uma noção ou tenta sugerir uma possível identidade cultural na pós-modernidade. O sujeito do iluminismo baseado numa concepção da pessoa humana como indivíduo centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior. O sujeito sociológico ou moderno reflete o desenvolvimento da complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação entre as pessoas importantes para ele. O sujeito pós-moderno não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente, sua identidade torna-se uma "celebração móvel", diz Hall (2006, p. 13), formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpretados dentro do sistema cultural.

Desse modo, podemos dizer que a identidade é algo que se forma ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes, e não é algo que existe desde nosso nascimento. A identidade permanece sempre incompleta, sempre em processo, em formação. A identidade surge não de uma certeza identitária que já está dentro de nós, mas "de faltas" de inteireza, como sugere Hall (2006), que é preenchida a partir de nossas relações com o exterior.

Anos após as experimentações realizadas com o corpo pelos artistas das vanguardas históricas, a arte da performance tem sido percebida como uma das linguagens mais expressivas do cenário artístico do final do século XX e inicio do século XXI. Atualmente o conceito de identidade é explorado com freqüência nas produções artísticas, o corpo tratado como sagrado, como informação, mediado e modificado pelas tecnologias legitima (re)apresentações do corpo em questões políticas, estéticas, cientificas, culturais e sociais. O corpo que está presente na performance expressa a sociedade em que vivemos, a sua complexidade, a sua fragmentação através das marcas culturais, identitárias, políticas e que torna-se passível de transmutações. Este corpo também agrupa uma capacidade de guardar as situações que vivemos anteriormente, que estamos vivendo e que possivelmente iremos vivenciar. Assim, ele estabelece uma relação entre o corpo natural frente ao corpo artificial.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

CURRICULO

Caue de Camargo dos Santos: acadêmico do curso de Licenciatura Plena em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria/ RS. Artista performático, curador e pesquisador em artes visuais. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura – GEPAEC. [email protected]


Autor: Caue de Camargo dos Santos


Artigos Relacionados


Arborização: Prática De Educação Ambiental Com A Comunidade

Áreas Verdes: Necessidades Urbanas

Viver Em Curitiba

Alfabetização Ecológica

Sexualidade Na Adolescência - Puberdade

Estágio: A Oportunidade Do Primeiro Emprego

Educação Ambiental - Meio Ambiente