Tripoli, 1940



 

 

 

Trípoli (Líbia) 1940

 

Minha irmã, vinte e poucos anos, recém casada, vivia lá, quando a Líbia era uma colônia italiana.

Morava confortavelmente  numa casa nova, onde planejava viver por muitos anos.

Todas as quartas feiras reunia-se com três amigas para o chá da tarde.

Quando não se tem muito trabalho ou preocupações, a “cerimônia” do chá é um meio de colher informações,  trocar conhecimentos e combater a solidão.

Faziam um inocente jogo de cartas, transcorriam três ou quatro horas em boa companhia.

Os maridos trabalhavam no distrito policial.

Trípoli era então uma cidade pequena e vivia-se em paz.

Uma tarde, as  moças começaram a conversar sobre o futuro – cada uma esperava algo diferente da vida.

Eu quero ficar aqui para sempre - dizia Anita – e ter três ou quatro filhos. Carmem rebatia: Eu não quero filhos, por agora. Só daqui a alguns anos. Mas sonho com uma casa nos Estados Unidos.  Lia se disse amarrada ao marido e iria para onde ele quisesse. E por fim Felícia, comentava que tinha encontrado a felicidade onde estava e que não gostaria de dar um passo fora dali.

Por fim,  alguém puxou o nome de um jovem beduíno, especialista – dizia-se -  na leitura do futuro.

As moças ficaram logo interessadas e com a aprovação dos maridos organizaram uma “consulta”. 

 

Na quarta feira seguinte, um rapaz moreno, alto, forte, vestindo um Kafka  caqui,  cabeça e rosto ocultos sob um véu azul, batia à porta da casa de minha irmã.

 

 -“ Sou Ali” – declarou amigavelmente -  “Minha prima Fátima disse-me que vocês gostariam de conhecer o futuro!”

Sacudiu o que pôde da areia acumulada em suas vestes, desfez a larga tira de pano azul que lhe envolvia a cabeça e retirou finalmente o véu que usava – o tagelmust -  explicou.

As moças  apresentaram-se, por sua vez, sorrindo educadamente : Anita, Carmem, Lia e Felícia.

Ali tinha uma fisionomia simpática, sorriso franco, dentes perfeitos, modos de cavalheiro; passara uns tempos estudando em Oxford – e dava para notar.

Acocorou-se no chão, à moda dos beduínos, enquanto observava as moças.    

- “Creio que lhes devo algumas explicações” – falou com uma perfeita pronúncia italiana, dirigindo-se às quatro moças – temos hábitos diferentes dos seus e não quero chocá-las.

Pertenço à tribo dos  Homens Azuis, dos quais, creio, já ouviram falar.

A nossa pele, como vêem, não é azul, apenas reflete o véu que usamos. 

Somos Tuareg, nômades, de origem Bérbere.

Eu sou um Haggarem; de estirpe nobre, portanto.

Lia, a mais curiosa, perguntou logo:

-  “Como aprendeu a ler as cartas, Ali? ”

- “Pesquisar o futuro é uma arte que  está na minha família desde sempre.

Fomos perseguidos por muçulmanos e turcos, mas nunca desistimos.

Minha avó, em 1911, previu a queda do Império Otomano.

Foi presa, julgada, fuzilada.

Mas ela estava certa; o império caiu no ano seguinte. 

Eu nasci depois disso  e foi minha mãe que me iniciou na adivinhação.

Não há nada de mágico ou oculto, nesta arte.

Não invocamos espíritos ou fantasmas, nem forças superiores.

Mas precisa-se de treino, sensibilidade, uma percepção que vem mais do nosso íntimo, do que do exterior. 

É uma forma de comunicação, de entrosamento, que abre algumas portas na nossa mente. E  esta arte é transmitida de geração em geração pelas mulheres.

Elas são seres sensíveis, perceptivos, profundos.   

-E acrescentou, com um leve sorriso : - “Nós, os homens,  somos guerreiros altivos e orgulhosos, mas temos que cuidar   dos dromedários!.”

É por este motivo que  os Tuaregs,  vivem sob um regime de matriarcado. 

São as mulheres que mandam; e nós obedecemos.

Quando casei, minha noiva trouxe tudo o de que precisávamos: tenda,  objetos, mantimentos; eu providenciei meu enxoval, constituído por vinte dromedários, que ficaram fazendo parte da família – digo, do patrimônio da família.

Mas um dia, há poucos meses, ela ficou interessada em um comerciante que nos visitava frequentemente – frequentemente demais, devo reconhecer.

Ela pediu o divórcio e, de acordo com nossa tradição, ficou com tudo,  incluídos os dromedários. e eu fiquei sem teto, sem nada.

Vivo desde então às custas de minha irmã, até que possa refazer minha vida.  

Esta é a nossa lei, são as nossas normas.

Vivemos no deserto, mudando o tempo todo de um lugar para outro.

Criamos e vendemos dromedários, mas não lhes escondo que, ocasionalmente,  roubamos e saqueamos quem se aventura nas trilhas do Sahara.

Aprendi que todas as sociedades humanas tem feito isto, ao longo de muitos séculos, em todas as partes do mundo ..  

Carmem levantou-se indignada:

–“ Nós não! Jamais! Minha família nunca  assaltaria ninguém!

- “Então se não eram assaltantes, eram assaltados! – atalhou Ali, com seu melhor sorriso; e concluiu:  - “Coitados!....”

Todos riram e o assunto foi superado.

Mas o sabor desta coisa nova, desses costumes tão diferentes, do matriarcado numa sociedade primitiva, de uma submissão aceita pelo homem, atiçou a fantasia das moças e marcou presença pela tarde toda – e depois.

 

Logo , Ali abriu a sessão, começando a se concentrar; seu rosto franziu-se, seu corpo inclinou-se, as mãos crisparam-se .

Tirou de uma bolsa de pele que trazia, um baralho de grandes cartas de tarô, e as dispôs na mesa.   

As 22 figuras, algumas ridículas, como o Louco, o Apaixonado, a Imperatriz; outras assustadoras, como a Morte, o Diabo, o Enforcado., postas alinhadas, em círculo, propiciando o início do jogo, foram depois cobertas,  embaralhadas e cada moça escolheu, na sua vez,  quatro cartas.

Elas não queriam saber do passado; ansiavam por desvendar o que aconteceria daí para frente. Queriam receber notícias do dia que ainda não amanhecera.

Anita e Carmem logo receberam uma ducha fria. A vida de ambas iria mudar, seria virada pelo avesso; viria chumbo grosso, mas não haveria ferimentos, lutas, mortes. Apenas um grande sobressalto, uma espécie de terremoto. 

Mas quando chegou a vez de Lia, Ali calou-se e seu rosto demorou para voltar ao normal. Abriu-se depois, a custo, em um cativante sorriso, como se tivesse resolvido um problema sério e disse:

- “Não vejo nada de especial. Mas são só cartas ! É apenas um jogo, um passatempo,  depende de nossa interpretação, de nossa disposição , de nossa sintonia. Não vale a pena preocupar-se com estas bobagens!...

Mas uma sombra de tristeza ainda se mantinha agarrada aos seus lábios, pairava no fundo de seus olhos, pesava fisicamente nos seus ombros.

Só alguns meses depois, quando as coisas começaram realmente a acontecer, quando o futuro trouxe seus frutos, as moças lembraram daquela expressão estranha, daquele momento de desconforto do Ali. Teria adivinhado algo que não quis revelar?

Logo em seguida, refeitos da emoção, acomodaram-se para o chá.

Ali pediu que o tomassem sem usar as colherinhas e esperou que todas acabassem.

O olhar dele deteve-se por longo tempo no fundo de cada xícara, enquanto as moças, ardendo de curiosidade, ficavam irrequietas, nervosas .

Novamente, ele desculpou-se; agora, não pelo que tinha dito – ou deixado de dizer; mas pelo que via no futuro.

- “Anita e Carmem: vejo uma viagem por mar. É um navio, cheio de gente e vocês deverão estar juntas. Não consigo saber para onde ele vai....Mas tudo correrá bem.”

Carmem ficou muito feliz; o marido prometera-lhe um cruzeiro, para comemorar o  aniversário de casamento. Que agradável confirmação, saber que o projeto se realizaria! 

Anita nada comentou; ficou pensativa e introvertida, afetada pelo resultado, em dúvida sobre o que pensar.

- Não gosto de incertezas! – dizia.

- Mas então não devia tentar desvendar o futuro! –respondeu o Ali. – O futuro, mesmo que você consiga distinguir algumas sombras, é sempre cheio de incertezas. Mas é a nossa curiosidade, que não nos deixa em paz!...”

Antes de examinar as outras xícaras, Ali ainda se dirigiu a Carmem e perguntou: “Como vai chamar o seu menino?”

Surpresa, estática, abalada, Carmem perdeu o fôlego.

“Como sabe disso?” – perguntou incrédula - “Nem eu tenho certeza disso ainda!”

“Você deixou que eu lesse o seu futuro, lembra-se? No seu futuro tem um garoto, que chegará logo logo; prepare-se então, para esta grande felicidade!”

Todas ficaram quietas,  correndo atrás dos pensamentos que rodopiavam em suas cabecinhas.  

Por pouco que acreditemos nestas “artes” ou “ciências”, elas fazem parte do desconhecido – e o desconhecido assusta-nos, mais que qualquer outra coisa.

Na xícara de Lia, o Ali não conseguiu enxergar nada, segundo disse. Mas seu olhar estava turvo, quando levantou a cabeça. E não quis falar nada. Lia ficou decepcionada, amuada.

Mas a surpresa maior foi da Felícia: -

- “Uma longa, longuíssima viagem, se prepara para você” – sentenciou Ali lentamente.

-  “Pelo visto, todos vamos viajar!” exclamou a moça, animada e alegre.

- “ Mas a sua viagem será diferente” – concluiu Ali – será no lombo de um dromedário! Veja aqui, você mesma!” – e estendeu a xícara. No fundo, claramente, destacava-se a figura de um dromedário – podia ser um camelo, pensou Felícia.

Depois, refeita do susto, comentou: -“ Um dromedário! Mas pode ser que o compre, que o ganhe numa rifa, que o receba de herança, que o encontre na rua; não diz ai – e apontava para a xícara – que ele vai ser o meu táxi! – Eu nunca montei num dromedário na vida e duvido que algum dia vá experimentar!”

 - “Sempre tem uma primeira vez!” - disseram em coro as outras moças.      

A reunião se desfez, Ali pediu novamente desculpas pelas notícias desagradáveis,  mas todas deram pouca importância ao fato. Afinal, era um rapaz         

simpático, tinha-as entretido por alguns momentos, não tinha jeito de charlatão, nem a autoridade de um feiticeiro, e muito menos, o preparo e a fala solta de um profissional.

Foi agradável, simplesmente. Mas cada uma foi para casa carregando algo a mais; tinham dado uma primeira, tímida mordida no futuro e agora queriam saber e experimentar mais, muito mais.

Era o primeiro dia de junho de 1940.

Dez dias depois, a Itália estava em guerra e nada continuaria igual ao que era.

Fechava-se um livro, abria-se outro.

 

Uma semana depois daquela fatídica quarta feira, os dois policiais, maridos de Anita e de Carmem, encontraram-se na delegacia. Havia um clima de suspense; notícias, boatos, informações contraditórias cruzavam-se sem parar.

Um telegrama esperava por eles.

Era a ordem de retirada imediata dos civis relacionados na categoria “B”.

Era o grupo em que estavam incluídas as esposas dos policiais

Elas embarcariam nos dois últimos navios a deixarem Trípoli, apinhados de pessoas em fuga, totalmente perdidas e inseguras.

Os navios as aguardavam no porto, com as máquinas sob pressão, já prontos para zarpar.

Entre as nove da manhã  e o meio dia, Anita e Carmem, confusas, assustadas e quase em estado de choque, tiveram que abandonar tudo o que tinham e embarcar, levando apenas uma mala cada uma, com destino a Nápoles.

Lia e Felícia decidiram permanecer em Trípoli. Tiveram que assinar um documento liberando as autoridades da responsabilidade quanto à sua segurança e sobrevivência.

Dois dias depois, em 10 de junho, às dez da manhã, a guerra era declarada. 

Às 14 horas, o primeiro raid de aviões ingleses, os primeiros mortos e feridos, todas pessoas que nada tinham a ver com essa guerra maluca.

Lia ficou em Trípoli durante a guerra toda. Perdeu o marido, junto com o da Felícia, quando a delegacia foi bombardeada e destruída. Eles, segundo lhes foi contado, morreram instantaneamente – nem deu nem  tempo de perceberem.

Lia ajeitou-se, dando aulas, fazendo comidas, preparando remédios caseiros.

Um grupo de ex-policiais nativos a assaltou e acabou por violentá-la.

Custou muitos meses de cuidados, para ela voltar a uma certa normalidade. Contou com o carinho de uma fiel empregada sudanesa, e com os chás caseiros – mas nunca mais quis olhar no fundo das xícaras.

Cinco anos depois, acabada a guerra, foi repatriada.

Nada estava mais como a tinha deixado e custou muito para  se reencontrar.

Continuou lutando contra tudo, tentando levar a vida da melhor maneira.

Sabia fazer tantas coisas, tinha aprendido tantos truques, que lhe foi fácil conseguir sua independência. 

Mas lá dentro, alguma coisa tinha-se quebrado, para sempre.

A garotinha que tinha saído do ninho para casar, tinha-se transformado, em poucos anos, em uma madura senhora, que trazia nos traços o sofrimento e a solidão daqueles tempos.

Quanto a Anita e Carmem, apesar do caos da volta, apesar das poucas notícias que recebiam sobre os maridos, apesar de terem perdido tudo o que tinham em Trípoli, retornaram ao normal.

A raça humana é a mais adaptável na face da terra.  Deve a isso sua sobrevivência. A parte mais difícil é ajustar-se aos outros seres humanos....

Carmem, como já tinha sido previsto, teve um menino que, ao fim da guerra, já freqüentava a pré-escola.

Quando finalmente se reencontraram, no dia primeiro de junho de 1950, exatamente dez anos depois daquela tarde de chá, sentaram-se a uma mesa de uma confortável confeitaria, em Roma.

Cada uma contou suas aventuras e desventuras, dos dez anos passados.

Felícia também tinha uma história; a mais interessante e a mais incrível.

Depois de uma primeira semana de bombas e vôos rasantes dos aviões ingleses, já sozinha, viúva e sem meios, ela estava desesperada.

Ali, apaixonado por ela desde o primeiro dia, procurou-a; e a  convenceu a sair de Trípoli, seguindo-o, deserto adentro, até o Senegal.

Ali tinha uma grande experiência das trilhas invisíveis do deserto. Sabia todos os dias onde estavam, e onde deveriam estar no dia seguinte.

Não carregavam muitas coisas, além da tenda, nos dois dromedários do Ali. Viajavam de noite e descansavam de dia.

Armavam a tenda ao amanhecer, procurando algum lugar com palmeiras, água e sombra, que nem sempre encontravam.

Andavam em zigue zague, despistando qualquer possível assaltante.

Escondiam-se de  soldados de todos os exércitos, que passeavam pelo Sahara naqueles tempos

Evitavam os Gebel, maciços que podem superar dois mil metros e nos quais pode-se morrer de frio, nas lindas noites estreladas.

Preferiam os baixios, seguindo ao longo dos Uadi, onde o calor é mais suportável e o vento sopra menos forte.

O deserto muda de nome, quatro, cinco vezes; mas é sempre o mesmo mar de areias e de rochas.

Você pode se perder e  andar em círculos  por semanas seguidas, sem perceber.

As estrelas e a bússola são os únicos instrumentos de sua sobrevivência. 

Durante as tempestades de areia, abrigavam-se em buracos, cavados ao lado dos animais . 

Passaram muita fome , muita sede, muito medo.

Desceram para o sul, 900 quilômetros, até a fronteira do Niger, depois outros 900 pela fronteira da Argélia; mais 1000 quilômetros, pelas planícies do Mali, onde já existem savanas com vegetação rasteira.

Foi uma festa, quando chegaram finalmente ao Lago  Faguibine, próximo de Tumbuctu, já nas nascentes do Rio Niger. Ficaram mergulhados na água morna por dois dias.

Tinham percorrido 3000 quilômetros e deixado para trás oito pares de dromedários esgotados.

Foram dez meses de viagem, a uma media de 10 quilômetros por dia. 

Descansaram por três meses, preparando-se para a ultima etapa da viagem.

Dakar, destino final, ficava ainda 1500 quilômetros a oeste. 

Mas já havias rotas, estradas, vida no caminho. E esta parte final foi ate agradável.  Em quatro meses conseguiram chegar.

Em Dakar Ali tinha parentes e amigos. Os Tuareg vivem espalhados pela África toda  e se amparam uns aos outros.

Para alguém que não sabia e nem queria saber nada de dromedários, foi uma experiência e tanto.

Mas Felícia aprendeu muito mais coisas, sobre solidariedade,  cooperação sobrevivência, amizade.  E sobre amor.

As suas  descrições bem humoradas encantaram todas.

Ela comentava ironicamente: quando o dromedário dá um passo,  avança cinqüenta centímetros e o passageiro recebe uma sacudida e uma batidinha. Foram nove milhões de sacudidas com batidinha!

Não há coluna e bumbum que aguentem!...

Mas a coisa mais importante que lhe aconteceu, foi Ali.

Talvez o futuro estivesse mesmo nas cartas do Tarô  e no fundo da xícara de chá; talvez o destino reservasse mesmo uma grande  surpresa.

Eu prefiro pensar que Ali e Felícia fizeram seu próprio destino e ficaram felizes e orgulhosos de cumpri-lo.

Afinal, que diferença há entre passar dois anos atravessando o deserto ou atravessando a cidade, de um bairro a outro? Nenhuma: a solidão, os perigos, a fome, a sede, o desconforto,  são os mesmos.

Se você encontrou sua alma gêmea, ir até o fim do Sahara será apenas uma aventura maravilhosa, uma experiência inesquecível.

Tomara que você encontre seu Homem Azul . E tomara que seja um nobre, um príncipe Azul; como Ali, um Príncipe simples, um Homem nobre, que levou Felícia pela mão, pelos difíceis caminhos do deserto, para a felicidade.   


Autor: Romano Dazzi


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