OS DIREITOS ATINGIDOS PELA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE NAS PRISÕES CAPIXABAS



1.1 INTRODUÇÃO

A confecção deste artigo advém da necessidade de fazer mais um alerta sobre a desumanidade da pena privativa de liberdade, que apesar de nos ser mostrada diuturnamente, ficamos inertes frente aos horrores cometidos contra os encarcerados. Todos os dias os jornais publicam notícias estarrecedoras como, por exemplo, de uma penitenciária de Cariacica, onde deveria haver 34 presos há 240[1] ou de que detentos na Serra são mantidos presos em contêineres[2] apertados que chegaram a ser apelidadas de "micro-ondas" por não terem janelas nem o devido arejamento, gerando assim, um calor intenso e insuportável ao detentos. Nem mesmo animais deveriam ser mantidos em locais como estes. Façamos das palavras de André Luiz Moreira, do Conselho de Direitos Humanos da OAB/ES as nossas: "Parece que o governo perdeu todo o pudor e se contentou já com esse tipo de situação".[3] O governo retirou a "máscara" e já não demonstra vergonha e nem tenta fazer essas coisas às escondidas, pois nós cidadão estamos aceitando com normalidade esses tipos de situação e de tratamento a seres humanos.

Esses atos de barbárie contra a humanidade são apenas a ponta do iceberg e por mais inacreditáveis que possam ser, estão bem perto de nós, mas não vemos ou talvez, não queremos ver, talvez porque seja inconveniente ou "feio" aos nossos olhos, mas o que esquecemos, é que essas barbáries não afrontam apenas o preso em si, mas toda a humanidade e com isso, abre precedentes perigosos.

Esse total desrespeito por parte do Estado às regras mínimas para a manutenção de uma subsistência do preso dá azo à novas infrações, mas dessa vez em outras áreas em que o Estado deveria atuar, como a saúde, educação, entre tantas outras. Será que isto já não está acontecendo no nosso país? Será que a assistência à saúde e à educação do cidadão livre está cada vez mais escassa assim com a do preso? Isso acontece porque somos coniventes com os flagrantes desrespeitos à Constituição e ao mínimo de moral que se pode esperar de uma administração. Igualmente, essa situação só pode mudar, com a participação ativa da sociedade, cobrando de nossos governante posições concretas e eficientes aptas a combater essa situação.

Apesar de diversos autores internacionais e nacionais como Foucalt, Dotti, Bitencourt, entre tantos outros denunciarem a tempos a falência da pena de prisão, ela continua sendo a mais utilizada em todo o mundo, mas o que é pior, não é sua permanência, em especial no nosso ordenamento, mas sim, a maneira como é executada na maioria das prisões brasileiras e do mundo, de forma desumana e atroz, sem um mínimo de apego às garantias constitucionais.

O principal embasamento legal deste trabalho, ao lado da Constituição, é o artigo 3º da Lei de Execuções Penais[4] que prevê: "Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei." e o artigo 38 do Código Penal[5] prescreve que: "O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral." Esses artigos dispõem que nenhum direito do preso que não seja atingido pela sentença possa ser restringindo durante seu acerto de contas com a sociedade e com o Estado na prisão. Nenhuma sentença pode retirar a dignidade, a humanidade, e até mesmo a vida de alguém, mas será que é realmente isso que acontece quando alguém é condenado e vai para um das cadeias do Estado? Penso que o próprio leitor ao final do artigo possa responder a essa pergunta.

1.2 A FUNÇÃO DA PENA

Existem várias teorias que tentam explicar a função da pena. Entretanto, segundo Mônica de Azevedo[6], os fins da pena baseiam-se em duas expressões latinas atribuídas à Sêneca: quia percatum est e ne peccetur. A primeira significa "pune-se porque é pecado", é voltada ao passado e é correspondente das teorias absolutas ou retributivas, a segunda significa "pune-se para que não se peque", é voltada ao futuro e corresponde às teorias relativas ou utilitárias.

Dizer que a pena pune quia percatum est e justifica-se no passado é dizer que a pena não tem vistas a qualquer fim, seu escopo é simplesmente de retribuir um mal causado com a aplicação de outro mal que é a sanção. É como se fosse uma forma de penitência. Seguindo o escólio de Ferrajoli[7], as teorias absolutas, são aquelas em que vêem a pena como um fim em si mesma, como uma compensação ou retribuição ao delito cometido. Possuem ainda, um valor axiológico inerente, a pena não é um meio, mas sim dever metajurídico a ser aplicado ao infrator da norma, tendo este como seu fundamento.

As teorias absolutas podem ser comparadas às leis de Talião, em que segue ao adágio do "olho por olho" ou malum proter malum, bonum proter bonum. O professor Gilberto Ferreira[8] ainda aduz que as teorias absolutas são fundadas num dever exclusivamente moral e ético, ou seja, quem fez o mal deve receber o mal. Elas não buscam na pena qualquer utilidade. A pena tem exclusivamente caráter retributivo.

No caminho totalmente oposto, encontram-se as teorias relativas. Segundo elas, a pena tem uma função utilitarista, ressocializadora, com o objetivo de evitar que o ex-preso cometa novos crimes quando sair da prisão. Para Ferrajoli[9], segundo as teorias relativas, as penas não são um fim em si mesmas, elas são o meio para um fim utilitário, que é a prevenção de futuros delitos. Por isso dize-se que elas são voltadas para o futuro. Elas visam a recuperação do condenado para evitar danos futuros. Ou seja, pune-se ne peccetur ou pune-se para que não se peque.

Entretanto, o nosso código penal brasileiro não adota nenhuma dessas teorias. Através da interpretação do art. 59 do código penal brasileiro podemos concluir que ele adota as teorias ecléticas, mistas ou unificadoras, que como o próprio nome diz, unifica ou engloba as duas teorias anteriores, pois o citado artigo determina que a pena seja suficiente para reprovação (teorias absolutas) e prevenção do crime (teorias relativas). De acordo com essa teoria, a pena tem tanto a função de prevenir a prática de futuros delitos através da ressocialização do detento quanto a função de retribuir o mal causado impingindo um castigo ao detento. Entretanto, segundo Gilberto Ferreira[10], o nosso código é mais retribucionista do que prevencionista.

No §5º, do art. 121 e no §8º do art. 129, o legislador optou pela discricionariedade do juiz em aplicar a pena ao criminoso que, com a prática do crime, já tiver sofrido o bastante para pagar pelo mal cometido, não necessitando mais da pena para expiar seu crime e deixando de lado o fim utilitário da pena, que seria a aplicação de práticas corretivas que prevenissem que o criminoso reincidisse no crime.

Entendo que não há o que criticar essa posição do legislador, pois como é cediço, com as nossas prisões no estado em que estão, a pena não cumpre nenhuma de suas funções declaradas acima. Nas penitenciárias do Espírito Santo, como em quase todas penitenciárias do Brasil, a pena não cumpre sua função ressocializadora, elas não têm condições de lograr essa pretensão com prisões que não ofereçam o mínimo de dignidade, sem assistência à saúde, a educação entre tantos outros serviços necessários para ressocializar ou até mesmo socializar, pois muitas vezes essa pessoa nunca realmente esteve inserida na sociedade. O estado das prisões brasileiras, em especial as capixabas, é até mesmo, difícil de descrever tamanha sua desumanidade. Numa pesquisa realizada com presos pelo professor João Baptista Herkenhoff[11], "Nenhum dos presos ou ex-presos entrevistados acredita que a prisão recupere alguém. A prisão é percebida como um lugar de castigo, exclusivamente".

A pena também não cumpre sua função retributiva, pois quem "manda" na prisão são os presos. As celas superlotadas fogem ao controle dos poucos carcerários e policiais encarregados de fazer a segurança[12], sendo que a calma na prisão pode ser abalada a qualquer momento virando o cenário de freqüentes rebeliões. Outro fator que reforça a descrença de que vá ser punido é a corrupção por parte de diversos servidores públicos encarregados de fazer cumprir a lei e a função retributiva da pena, como os carcerários, policiais entre tantos outros servidores de todos os Três Poderes. Nos últimos meses fomos surpreendidos, até mesmo, com denúncias de juízes e desembargadores não só do Espírito Santo[13], como também de outros estados[14], em esquemas de compra de sentenças. Aumentando ainda mais a descrença não só do povo como também do próprio criminoso no Judiciário.

Além disso, em sua maioria, as penitenciárias e delegacias capixabas são inseguras, nelas ocorrem fugas freqüentemente, o que deixa os policiais inconformados[15]. É muito dispendioso e frustrante para a polícia que tem um grande gasto financeiro, de pessoal e de tempo para investigar o crime, chegar até o acusado, prendê-lo, para pouco depois ele fugir. Por último cabe ressaltar a demasiada morosidade do Judiciário em julgar os crimes. Numa pesquisa recente divulgada pelo CNJ[16], constatou-se a existência de mais de 68 milhões de processos no Brasil em tramitação. Foram encontradas Justiças estaduais à beira do colapso, sem infra-estrutura, sem pessoal, sem condições de atender a população. Para o espanto, foi encontrado, até mesmo, um processo de estupro de 1987 que ainda não foi concluído. Tudo isso comprova que a pena não tem o efeito de dissuadir (teoria absoluta) as pessoas para que não cometam um delito.

Com isso, podemos concluir que a pena não cumpre nenhuma de suas funções declaradas pela teoria adotada pelo nosso código penal. Todavia, doutrinadores de renome já vem nos alertando para as funções escusas da pena. O professor Gilberto Ferreira[17] vem confirmar a falência do sistema carcerário e a real função da pena

Realmente, deixe-se de ser hipócrita. Com um sistema carcerário falido; com uma política de arroxo cada vez mais massacrante, com proteção das elites e desprezo da maioria da população; com uma distribuição de renda que só beneficia os mais abastados; com uma política de saúde pública e educacional baseada em orçamentos miseráveis, o verdadeiro objetivo do sistema repressivo não poderia ser outro, senão o de manter os interesses de um capitalismo selvagem, perverso, insensível.

Ou seja, o sistema penal foi feito para a elite manter o sistema capitalista vigente. Ele serve para controlar as multidões de pobres insatisfeitos com a precária forma de subsistência à qual são obrigados a viver em face do abandono estatal mantendo essa massa de miseráveis no seu lugar, nas periferias, nas favelas, nas prisões ou qualquer outro lugar, desde que longe da elite.

Destarte, pode-se concluir que do jeito que está, a pena, ao contrário do que se espera, não tem nenhum efeito benéfico, mas sim nocivo à sociedade. Como é cediço, a prisão tornou-se a universidade do crime e mais um fator que contribui para isso é a não realização da individualização da pena.

1.3 A INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

Muitos julgadores brasileiros, de todas as instâncias, estão deixando de lado os critérios para a fixação de uma pena individualizada a cada criminoso, e estão criando uma tendência de padronização das penas, o que não me parece ser correto, pois longe de ser uma discricionariedade do juiz, a individualização da pena é um dever do julgador e um direito do acusado.

A individualização da pena é um direito expresso tanto na Constituição em seu art. 5º, XLVI quanto no Código Penal do art. 59 ao 76 e em legislações esparsas como a Lei de Execução Penal do art. 5º ao 9º. Portanto fundamentação legal é o que não falta ao julgador para que aplique a pena ao caso concreto e de acordo com suas peculiaridades. A individualização da pena não pode deixar de ser usada sob pena de ensejar arbitrariedades por parte do julgador e injustiças com relação ao acusado. Na mesma esteira, Guilherme Nucci[18] aduz que a individualização da pena é o direito do condenado de receber a pena justa, sem qualquer padronização, adequado ao caso particular, o que naturalmente é esperado em vista da personalidade ímpar de cada ser humano. Além disso, o autor acrescenta que a individualização deve ser observada em três âmbitos diferentes: o legislativo, o judiciário e o executório.

Entendemos que no âmbito legislativo, a individualização segue no sentido de, na elaboração do tipo penal, o legislador atendendo as características habituais e gerais de quem geralmente comete aquele determinado delito, determinar o regime de cumprimento, a pena e o tempo de cumprimento adequado para que a pena cumpra suas funções de reprovar e ressocializar o delinqüente. Observando que a pena cominada no tipo penal deve estabelecer o mínimo e máximo de pena ao transgressor, para que no âmbito do judiciário, o julgador possua certa elasticidade para adaptar a pena às peculiaridades do fato e do criminoso.

A última etapa, sem retirar a importância das demais, é, a meu ver, uma das mais importantes e é a que vem passando por mais problemas, que é a etapa executória. Todos os três âmbitos são imprescindíveis para que a individualização logre seu devido êxito, mas não adianta nada o legislador cumprir seu papel atribuindo penas adequadas ao tipo, o juiz individualizar a pena cominada pelo legislador ao caso concreto, mas na hora de executar a pena, as prisões não têm condições de cumprir o que a lei e as sentenças determinam.

Em suma, em penitenciárias que mantém na mesma cela ou mesmo em áreas de convivência comum presos provisórios com presos condenados, homicidas e de alta periculosidade, ou até mesmo em cadeias que mantém no mesmo prédio homens e mulheres[19] por total falta de vagas e de pessoal como as nossas, não tem condições materiais de cumprir o preceito constitucional da individualização da pena. Assim, esse desrespeito à individualização é uma condicionante para muitos outros direitos do preso sejam suplantados.

1.4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO PRESO

Não cabe neste artigo esgotar a matéria sobre os direitos dos presos, por isso mesmo não abordaremos todos os direitos dos presos, até porque são muitos os direitos que são negados pelo Estado. A intenção deste artigo é apenas fornecer ao leitor os contornos gerais da trágica situação carcerária, principalmente do Espírito Santo.

Os presos, assim como todo homem têm seus direitos assegurados pela Constituição[20] e pelos Tratados e Convenções internacionais que o Brasil faça parte como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), a Resolução n. 14 da ONU que dispõe das regras mínimas para o tratamento do preso no Brasil e a Regra 31 da ONU que trata das regras mínimas para o tratamento dos reclusos. Como o Brasil não obedece as regras dos tratados e convenções que ratificou a comunidade internacional está autorizada a intervir, podendo até mesmo impor sanções ao país descumpridor para que o compila a cumpri-las, o que também, infelizmente, não acontece. No entanto, vamos nos focar no que o ordenamento pátrio resguarda.

No caput do art. 5º a Constituição resguarda o direito à vida e à segurança, mas o Estado não consegue fornecer segurança e garantir a vida nem mesmo a quem encontra-se livre, quanto mais aos que estão presos. Desta forma, o que acontece é que, na realidade, muitas vezes o Judiciário praticamente acaba condenando um suspeito (presos provisório), que pode ser julgado inocente, à morte ao colocá-lo junto com presos já condenados e muito perigosos, violando também o inciso XLVII, alínea "a" que veda a aplicação de penas de morte.

Todavia, não é somente nesses casos que pode considerar que o preso foi condenado à morte, muitos presos necessitam de atendimento especiais e hospitalares que geralmente lhe são negados levando-o à morte ou pelo menos a uma morte prematura. Não pretende-se dizer que o juiz, ao sentenciar, almejava a morte do preso, ou que a morte do preso seja culpa do juiz, porém o juiz sabe da realidade das prisões e como dizia o saudoso jurista Herkemhoff[21], "reduzir o aprisionamento a casos absolutamente extremos tornou-se para o juiz uma questão de consciência." O juiz não pode ser conivente e deixar essas atrocidades passarem por seus olhos sem fazer anda. Sobre os presos provisórios Herkenhoff[22] ainda aduz que o aprisionamento de alguém pela Justiça já é uma violência, violência ainda maior é a prisão de quem ainda nem foi julgado.

Quanto ao inciso III, XLVII, alínea "b" e XLIX, a Carta de 88 veda a submissão à tortura, tratamento desumano ou degradante e a aplicação de penas cruéis e o respeito à integridade física e moral. Todavia, com vistas ao tratamento fornecido aos presos, não é difícil chegar à conclusão de que não é isso que acontece na verdade. Denúncias de tortura nas cadeias[23] viraram praxe e o pior é que a maioria da população aprova essa prática, a tortura quase que já vem acompanhada com a pena. O tratamento desumano e degradante das prisões sem o respeito à integridade física e moral, sem alimentação e vestuário adequado, sem um local adequado conjugado com as torturas feitas por agentes do Estado e até mesmo pelos próprios presos pode ser considerado uma pena cruel.

O inciso XLVIII trata da individualização da pena, dá qual já tratamos, e demonstramos que o seu desrespeito enseja a mistura de presos provisórios com presos condenados, de mulheres com homens, de presos perigosos com presos de menor periculosidade. Tudo isso impede a ressocialização do preso e resulta em mortes, violência, entre tantos outros desrespeitos aos direitos do preso.

Por último, o inciso L garante às presidiárias condições adequadas para permanecer com seu filho durante a amamentação. Novamente a realidade mostra uma situação muito diferente do papel. Nos presídios femininos, em sua maioria, não há creches ou berçários, nem remédios e assistência hospitalar e as crianças são expostas às imundices de uma cela o que já acarretou em mortes de crianças nos presídios capixabas[24].

Outro direito imprescindível do preso tamanha sua importância para a reabilitação do preso é seu direito ao trabalho. Através do trabalho o preso pode fica livre do ócio o que poderia levá-lo a pensar em coisas no mínimo fúteis, além disso, o preso recebe pelo serviço e assim, pode ajudar a família do lado de fora e forma o pecúlio para quando sair, o que também é um direito dele (art. 41, IV). O trabalho é tanto uma obrigação (art. 31 da LEP) quanto um direito do preso (art. 41, II, da LEP), e através dele o preso pode remir sua pena. Para cada três dias trabalhados, computa-se menos um na pena do preso. Mas o grande problema é que, apesar da importância do trabalho para a reabilitação do preso, o Estado falta com seu dever e na maioria das prisões ele não fornece trabalho, e quando fornece, ele não é suficiente para todos. Nesse caso, assim como Rogério Greco[25], defendemos que, como o trabalho é um direito do preso, se o Estado não proporcionar trabalho aos presos, eles têm o direito de ter sua pena remida como se trabalhando estivessem.

1.5 O SISTEMA PRISIONAL CAPIXABA NA ATUALIDADE

Os presídios capixabas já se tornaram sinônimo de superlotação, segundo dados colhidos pelo professor Carlos Eduardo Lemos[26], nos anos de 2004/5 todos os presídios do estado do Espírito Santo haviam 3680 vagas para 5221 presos. Nas delegacias de polícia do estado haviam 952 vagas, mas elas abrigavam 1833 presos. No total, em todos os estabelecimentos penais, haviam 4632 vagas para alojar 7054 detentos, o que resultava num déficit de 2422 vagas. Entretanto, se levarmos em consideração que, delegacias de polícia não são locais adequados para alojar presos permanentes, esse déficit aumentaria para 3374 vagas, mais que o dobro das 3680 vagas dos presídios. Esses números são alarmantes, mas são de 2005, tamanho o descaso do Estado, a situação provavelmente deve estar muito pior. Todavia, existem estabelecimentos penais em situação muito pior que a demonstrada por esses números. No DPJ de Vila Velha[27], por exemplo, 264 presos ocupam um lugar onde deveria haver apenas 36, ou seja, há mais de 7 presos por vaga. Desta forma, para se alojarem, os presos têm que fazer "andares" dentro da cela, instalando várias redes até o teto da cela e fazendo revezamento para dormir, enquanto metade fica de pé a outra metade fica deitada e vice-versa.

Na maioria dos estabelecimentos penais capixabas não há ordem, as fugas[28] e rebeliões tornaram-se rotina e, além disso, em muitos deles, os presos andam livremente pelo pátio[29] em qualquer horário e sem algemas. Segundo o fugitivo do presídio de Viana recapturado Jucelino Araújo de Jesus[30] "Lá todo mundo anda armado, com pistola, com revólver... Vai e volta na rua quando quer", ele ainda completa "Qualquer um vai embora fácil. É só chegar lá e querer ir embora. Não tem vigilância nenhuma não". Situações como essa, colocam em risco a segurança dos policiais que em pouco número freqüentemente são alvos de tentativas de torná-los reféns[31], dos próprios presos que são assassinados dentro dos presídios e delegacias e também dos moradores ao redor destes estabelecimentos que se sentem apavorados diante desse caos do sistema carcerário capixaba. Locais como este são "bombas relógio" prontas para explodir a qualquer momento.

Diante dessa situação do sistema carcerário, em vez de buscar medidas alternativas de contornar esse mal, o Legislativo acatando aos anseios da sociedade, adota uma postura de endurecimento das penas aumentando-as cada vez mais, abarrotando ainda mais as prisões já em situações degradantes. Essa raiva da sociedade ansiosa por leis mais duras e pouco importando quanto ao tratamento dado ao preso além de desumano não é inteligente. Endurecer as penas e tratamento dado ao preso só faz com que o preso, ao sair da prisão, se torne também mais duro e violento contra própria sociedade aplaudiu o tratamento desumano dado a ele.

Além de que o dinheiro gasto na construção de presídios e na contratação de policiais e carcereiros poderia ser utilizado em áreas sociais. Esse é outro grande problema, ao transferir o dinheiro que deveria ser usado em áreas sociais como a saúde, educação e na geração de emprego para a segurança pública, o Estado está deixando de investir na qualidade de vida e na criação de oportunidades para seus cidadãos o que irremediavelmente poderá levá-los ao crime. Esse acaba se tornando um ciclo vicioso, o Estado vai investindo cada vez mais em segurança e deixando de lado o social, aumentando cada vez mais a população de miseráveis e criminosos, o que inexoravelmente precisará de mais prisões para aprisionar e conseqüentemente mais dinheiro que será retirado de outras áreas como as sociais.

No entanto, uma centelha de esperança foi acesa nos dias 16 e 17 de maio, dia em que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)[32], órgão de execução penal vinculado ao Ministério da Justiça, vistoriou dois presídios em nosso Estado, a Casa de Custódia de Viana (CASCUVI) e o Presídio de celas metálicas de Serra. Essa vistoria gerou esperança no sentido de esperar-se que ela angarie mudanças em nosso Estado.

Durante a vistoria da CASCUVI constatou-se que os detentos não recebiam assistência religiosa e a assistência jurídica foi tida como inexistente, pois não há nenhum defensor público ou advogado dativo conveniado pela OAB no estabelecimento, além de haver apenas 3 defensores públicos em todo o Estado para o contingente de mais de 7.000 presos no Estado. A administração da CASCUVI informou que há dois "assessores jurídicos" para o atendimento dos presos, fato este que foi desmentido pelo preso. O inspetor, em diligência pessoal, descobriu que os "assessores jurídicos" nem mesmo eram inscritos na OAB.

Nos três pavilhões do referido presídio não há grades nas celas e os presos dos três pavilhões ficam misturados sem qualquer agente penitenciário ou policial entre eles, seja de dia ou à noite. Não há qualquer cuidado com higiene no estabelecimento, larvas, ratos e restos de comida eram encontrados por toda parte. Não é oferecida qualquer atividade laboral e nem assistência médica ao detento. Não há qualquer segurança ao preso ou ao visitante. Além de haver denúncias de tortura e até mesmo de esquartejamento no presídio. Ainda foram flagrados muitos casos de doenças de pele nos presos, fato que corrobora a inexistência de assistência médica.

Após a inspeção da CASCUVI o membro do CNPCP dirigiu-se para outra grande mazela do sistema penitenciário capixaba, o presídio de celas metálicas (containers) da Serra. Assim como em Viana, o presídio não possui assistência médica, jurídica, não há atividade laboral e também encontrava-se superlotada. Segundo depoimentos, a temperatura no local chega a 45 graus no verão. Foram dadas denúncias de comida podre e de violência. Os inspetores presenciaram uma tentativa de fuga sem êxito de um preso escondido numa lata de lixo e também um preso com um tiro no olho e outro com marcas de bala na barriga

Depois de presenciar todo tipo de violação dos Direitos humanos, da Constituição e da Lei de Execuções Penais, o presidente do CNPCP e responsável pelas vistorias realizadas no ES, Sérgio Salomão Shecaria em reunião com autoridades, locais não vislumbrou qualquer interesse por parte delas na solução dos problemas identificados no relatório, por isso o CNPCP pediu ao Procurador Geral da República a intervenção federal em todo o sistema de segurança pública do estado do Espírito Santo com base no art. 34, VII, "b" para que se assegure o respeito aos direitos humanos, além de entrar com ação contra o secretário estadual de Justiça Ângelo Roncalli para apurar denúncias de omissão diante de denúncias de tortura dentro dos presídios. O CNPCP também pediu ao Conselho Nacional do Ministério Público e ao Conselho Nacional de Justiça que investigue a conduta dos juízes e promotores responsáveis pela fiscalização dos presídios.

Em linhas gerais, a intervenção federal afasta temporariamente a autonomia de determinado ente federativo com o fito de preservar a existência e a unidade da Federação, a União. A Constituição autoriza, em seu art. 34, inciso VII, alínea "b" que a União intervenha nos Estados para assegurar os direitos da pessoa humana. A realidade demonstra que é premente a necessidade de intervenção em nosso estado.

O pedido de intervenção federal ainda está sendo apreciado, mas o CNJ também realizou vistorias nos presídios capixabas, e graças a esses esforços a CASCUVI foi interditada e será desocupada. Esse é um grande passo para que os direitos humanos do preso voltem a ser respeitados em nosso estado e aponta o movimento do Judiciário em apurar a omissão principalmente do Executivo, mas também de membros do Judiciário quanto ao tratamento do preso.

1.6 CONCLUSÃO

Infelizmente, como bem demonstra este artigo, o nosso belo Espírito Santo é palco das mais variadas formas de desrespeitos aos direitos humanos dos presos. Exemplos trágicos dessa situação foram mostrados, como por exemplo, a utilização das celas "micro-ondas" ou a manutenção de homens e mulheres no mesmo prédio, entre outros. Isto mostra o abandono do povo capixaba, incluindo-se entre o povo sua população carcerária, pois os presos não perdem ou pelo menos não deveriam perder a cidadania e a dignidade no momento em que são presos. Como dizia João Baptista Herkenhoff[33]: "A prisão em si é uma violência amparada pela lei. O desrespeito aos direitos do preso é uma violência contra a lei." e cada vez mais, a sociedade cega pela raiva vem sendo conivente com esse desrespeito.

Entretanto, este mês nós vislumbramos tentativas reais de mudança dessa realidade infame. O CNJ conjuntamente com o CNPCP tem dado exemplos de luta pelo respeito à dignidade humana e ao Direito, precipuamente à Constituição. Isso nos mostra que existe uma Justiça comprometida com o bem do cidadão e é Justiça que esperamos que apague de nossa memória os vergonhosos casos de corrupção e descaso do Judiciário.


[1] PRESOS sofrem em presídio no Espírito Santo. Disponível em: <www.noticiacompleta.com.br>. Acesso em: 23 de abril de 2009.

[2] PRESOS são mantidos em contêiner no ES. Disponível em: <www.oglobo.com>. Acesso em: 23 de abril de 2009.

[3] Ibidem.

[4] LEI nº 7.210, de 10 de julho de 1984. Disponível em: <www.planalto.gov.br> Acesso em: 30 de abril de 2009.

[5] DECRETO-LEI nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em 20 de maio de 2009.

[6] AZEVEDO, Mônica Luis de. Penas alternativas de prisão: os substitutivos penais no sistema penal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2005, p. 81 e 82.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andres Ibanez. Madrid: Trotta, 2000. p. 253."Son teorías absolutas todas las doctrinas retribucionistas, que conciben la pena como fin em sí mismo, es decir, como castigo, compensación, reacción, reparación o retribución del delito, justificada por su valor axiológico intrínseco; por consiguiente no um médio, y menos aún um coste, sino um deber ser metajurídico que tiene em si mismo su fundamento."

[8] FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 25.

[9] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andres Ibanez. Madrid: Trotta, 2000. p. 253. "Son por el contrario teorías relativas todas las doctrinas utilitaristas, que consideran y justifican La pena solo como um medio para La realización del fin utilitario de la prevención de futuros delitos."

[10] FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 31.

[11] HERKENHOFF, João Baptista. Crime: tratamento sem prisão. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2ª ed.1995. p. 95.

[12] PRESOS andam livremente em pátio de Delegacia em jardim América. Disponível em: <www.folhavitoria.com.br>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

[13] TRIBUNAL de Justiça decide investigar juízes acusados de vendas de sentenças. Disponível em: <www.folhavitoria.com.br>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

[14] JUÍZES do MA são acusados de vendas de sentenças. Disponível em: <www.folhavitoria.com.br>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

[15] 'A gente trabalha muito para perder eles' desabafa policial no Espírito Santo. Disponível em: <oglobo.globo.com>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

[16] PAÍS tem 68 milhões de processos judiciais em tramitação. Disponível em: <g1.globo.com>. Acesso em: 19 de maio de 2009.

[17] FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 29 e 30.

[18] NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 10.

[19] EM São Mateus, cidade do Espírito Santo, homens e mulheres dividem a mesma cadeia. Disponível em: <oglobo.globo.com>. Acesso em: 23 de abril de 2009.

[20] CONSTITUIÇÂO da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em 20 de maio de 2009.

[21] HERKENHOFF, João Baptista. Crime: tratamento sem prisão. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2ª ed.1995. p. 86

[22] Ibidem, p. 36.

[23] LAUDO comprovaria tortura em presídios do Espírito Santo. Disponível em: <noticias.terra.com.br>. Acesso em: 20 de maio de 2009.

[24] CRIANÇA de seis meses morre em presídio no Espírito Santo. Disponível em: <g1.globo.com>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

[25] GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. v.1. p. 520.

[26] LEMOS, Carlos Eduardo Ribeiro. A dignidade da pessoa humana e as prisões capixabas. Vitória: Univila, 2007. p. 41.

[27] APÓS rebelião no DPJ de VV, sete detentos são transferidos para presídio. Disponível em: <gazetaonline.globo.com>. Acesso em 23 de abril de 2009.

[28] DETENTOS fogem de presídio no Espírito Santo. Disponível em: <oglobo.globo.com>. Acesso em: 23 de abril de 2009.

[29] PRESOS andam livremente em pátio de delegacia de Jardim América. Disponível em: <www.folhavitoria.com.br>. Acesso em: 26 de abril de 2009.

[30] FUGITIVO de presídio de Viana relata: "Lá todo mundo anda armado". Disponível em: <www.folhavitoria.com.br>. Acesso em: 20 de março de 2009.

[31] PRESOS tentam fazer polícias de reféns em rebelião no município de Cariacica. Disponível em: <www.folhavitoria.com.br>. Acesso em: 25 de março de 2009.

[32] SHECARIA, Sérgio Salomão. Relatório de visita ao Espírito Santo. 2009. Disponível em: <www.mj.gov.br>. Acesso em: 26 de maio de 2009.

[33] HERKENHOFF, João Baptista. Crime: tratamento sem prisão. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2ª ed.1995. p.36.


Autor: Felipe Cancelieri


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