UM SEQUESTRO EM FAMÍLIA



 

235 - UM SEQUESTRO EM FAMILIA

 

Vera saiu apressada do amplo salão do Edifício Estela, na  Rodrigues Alves e virou a esquina para retirar o carro no estacionamento.

Já passava das quatro e meia da tarde e devia pegar as crianças – Alberto, um garoto sardento de 12 anos com cara de infeliz e Heloisa, uma espoleta simpática de 8 - que sairiam da escola às cinco em ponto.

Estava mais que satisfeita; acabara de receber os resultados de um check-up completo, que confirmava sua perfeita saúde.

Vera não estava convencida que as pessoas, não sentindo nada de anormal e não apresentando sintomas de alguma doença, tivessem que fazer um check-up.  Mesmo reconhecendo que manutenção é essencial, alguma coisa dentro dela  insurgia-se  contra os clínicos, que vasculham e pesquisam até que encontram algo que talvez não esteja tão bem...

Mas quando você recebe uma nota dez, como aquela, sobe às nuvens com a sua auto estima e a alegria de estar viva pinta de rosado suas faces.

É a mais perfeita expressão da felicidade.

 

Pois assim estava o humor da Vera – 45 anos com cara de 30 , dizia aquele adulador do seu médico – casada por amor, mãe de dois filhos, uma ocupação compensadora, casa, carro, empregada e uma faxineira duas vezes por semana.

Nem tudo eram flores, na verdade, na vida dela.

O casamento....bem, todo casamento deveria sofrer uma manutenção periódica, como um motor, como um carro.

            Depois de algum tempo (e no caso dela, já eram quase vinte anos – meu Deus, como o tempo passa!)  começa a ranger,  a sair da sincronia, a sofrer desgastes.

As palavras não saem com a mesma fluidez, com aquela graça que evoca amor, ternura, consideração; são cada vez menos, substituídas por grunhidos (não gostei), por encolhimentos de ombros (tanto faz), por horas de silêncio (deixe-me em paz, que mordo).

Tudo na vida envelhece, fica empoeirado, oxidado, emperrado.

Maridos, principalmente.

Só peças de museu continuam com o brilho do primeiro dia; mas precisam  ser esfregadas vigorosamente com flanelas a cada semana. E não podem ser usadas. Só olhadas de longe, sem mexer, justamente como ..... peças de museu.

E quem quer que o marido e o casamento  virem peças de museu?

            Por fim, Vera tinha deixado de lado o problema, porque não era do tipo que corre atrás de fantasmas.

      Quando chegasse o momento, reagiria de acordo. Até lá, iria levando em banho maria.

            Quanto às crianças, ela sabia que os problemas maiores chegariam dentro de um ou dois anos. Adolescentes sempre foram problemáticos, mas nesta geração que chega agora, são mais difíceis - impossíveis, diria.

            Deve ser a televisão, a internet, a escola. Nem com os amigos ficam satisfeitos. Procuram gente mais velha, mas não os pais, absolutamente.

Pessoas interessantes, que tenham segredos, mistérios; é como se procurassem um bairro de vielas tortuosas, uma noite escura, uma aventura perigosa e selvagem,  até uma simulação de autodestruição.

Difícil adivinhar o que pensam; impossível dialogar.

Entra-se em rota de colisão em cinco minutos.

Toda paciência é pouca, todo cuidado insuficiente.

Este era outro problema que Vera não queria antecipar.

Quando chegasse a hora, resolveria.

Quem sabe se, até lá, descobrem uma vacina para isso também?

Uma modificação genética, um implante, células tronco, algo assim...

 

Bem, tudo isto passava pela cabeça distraída da Vera – pois, quando se está feliz os problemas assumem cores mais suaves, em tons pastel.

 

De repente avistou um desconhecido que  avançava,  ameaçador.

Adivinhou o assalto, ainda antes que acontecesse.  

O homem era alto, grandão, brandia uma pistola enorme, cromada, assustadora. Vera notou que tinha uma grande cicatriz na face esquerda.Vinha diretamente para o ponto em que ela estava.

Instintivamente, quis correr.

Mas as pernas  recusaram-se a obedecer.

Sentiu-se perdida, entregue, sem capacidade para reagir.

Ficou parada, pregada ao chão.

Era justamente o que o assaltante esperava.

Levantou-a, de peso, sem esforço algum,  como  se fosse um galho seco e jogou-a no banco traseiro de um carro, que aguardava, com um motorista e o motor ligado.

Ela estava agarrada aos seus exames, à bolsa, ao guarda chuva dobrado , como se significassem a sua própria sobrevivência.

Poderia ter gritado, fazendo um estardalhaço no meio do estacionamento, chamando de algum modo a atenção de quem passava.

Não conseguiu.

Afogueada, aterrorizada, viu o assaltante entrar no carro e sentar ao lado dela, ameaçando-a com a pistola e ao mesmo tempo esbravejando com o motorista.

- “ Vamos, seu burro! – gritava ele – Vamos embora daqui! Toca esta porcaria!

E você, sua vaca estúpida, fica quieta e  fecha os olhos. Põe a cabeça entre as pernas. Abaixa, abaixa! Abaaaixaa, falei!” E gritava e a empurrava pelo pescoço, com toda a força. Vera apenas obedecia.

Virara de repente uma boneca de pano. Isso: apenas  uma boneca de pano.

Sem vontade própria,  sem músculos, sem movimentos , solta, frouxa,  largada.

O homem era um indivíduo asqueroso, obsceno – agora ela o estava gravando na memória, fixando suas bochechas inchadas, as mandíbulas poderosas e proeminentes, as orelhas de abano, mas acima de tudo os olhos – olhos malvados, cruéis, de um criminoso, de um doente.

Seria capaz de fazer-lhe qualquer coisa, fazê-la sofrer, ferí-la, machucá-la, estraçalhá-la . Fazê-la sangrar até a morte, pelo mero prazer de dominar um outro ser, de sentir-se dono, senhor de outra vida humana.

Todos esses pensamentos terríveis passaram na cabeça de Vera em uma fração de segundo.

Logo sentiu-se morrer. Desmaiou, perdendo de um instante para outro a consciência das coisas, navegando em uma dor forte, que lhe prendia a respiração  e lhe apertava o pescoço.

Nem percebeu quando o carro, apenas alguns segundos depois, arrancou violentamente, fez uma apertada curva a esquerda e despencando pela Rodrigues Alves, rumou para o Ibirapuera.

Vera bateu a cabeça, sacudida pelos movimentos descontrolados do veículo e sua boca começou a sangrar. Mas ela não percebeu nada. Estava a milhares de quilômetros de distância, completamente inconsciente.

Apesar do trânsito complicado, os assaltantes ganharam a Sena Madureira, entraram na Domingos de Moraes, e rumaram diretamente para o Jabaquara. 

Mais adiante, na Avenida Armando de Arruda Pereira, estariam a salvo.

Dezenas de favelas, uma entrando na outra, barracos amontoados, ruas estreitas, becos, morros, picadas sem saídas, punham a salvo qualquer criminoso perseguido pela Polícia.

Parecia que o traçado fora feito justamente para proteger quem estivesse fugindo. 

Mas neste caso, não havia necessidade de se apressar ou de se esconder. 

O assalto fora perfeito. 

Nem um movimento suspeito, um grito, um  rebuliço qualquer.

A mulher estava em poder deles, desmaiada, e nunca conseguiria descobrir onde estava, ou reconhecer os assaltantes.

Aquele desmaio providencial ainda a estava protegendo.

Na favela, um outro carro – com certeza furtado– os aguardava.

Diante de uma dezena de pessoas que desviavam o olhar, mas não conseguiam vencer a curiosidade, transferiram Vera para este carro e encaminharam-se para Diadema. 

Ninguém abriu a boca - nem  a abriria.

Vera continuava desmaiada.

Com medo do chefe, que os aguardava poucos quilômetros adiante, deixaram a mulher desmaiada no banco de trás do carro  e ficaram ambos  no  da frente, entrando triunfalmente num beco, quase imperceptível, na estrada de terra que costeava uma descida abrupta..

O Governo  as autoridades, a polícia, nada sabem do que há lá dentro, nos barracos amontoados, nos corredores estreitos, onde não se consegue passar  com um móvel maior que uma cadeira. 

Tudo é desmontado para se poder entrar e remontado dentro do barraco.

Um homem gordo não passa – simplesmente entala.

Uma mulher grávida nos últimos meses muda-se para um barraco mais próximo da rua.

Vera foi transportada por um corredor fétido, estreito, escuro, encoberto por três andares de construção instável, de tijolos à vista, que não poderia ser visto  do alto, em caso de uma batida policial.

Pequenas janelas, fixadas por um pouco de massa, poderiam ser facilmente removidas por alguém em fuga, despistando assim os policiais - caso tivessem a coragem de se aventurarem  nesse dédalo.

O chefe – outro cafajeste altão, de modos bruscos e mãos enormes - vestia camisa branca, paletó e gravata e calçava finos sapatos, com certeza  italianos, roubados quem sabe onde. 

Ele mandou que deitassem  Vera num sofá, único  móvel do cômodo, além de duas modestas cadeiras de palha. 

O chefe pagou os dois assaltantes e dispensou-os com poucas palavras, incisivas, mas apenas sussurradas:- “Livrem-se dos carros. Já!”

Deixou duas garrafinhas de água no chão, ao lado da moça, fechou a porta cuidadosamente e se foi.

 

Vera saiu do torpor muito tempo depois. Sua mente recusava-se a aceitar o que acontecera. Nada estava muito claro , mas aos poucos ela ia readquirindo uma noção das coisas.

Arrastou-se até uma porta baixa, num dos cantos, onde esperava encontrar o banheiro. Não havia água e o mau cheiro era insuportável.  Viu as garrafinhas de água e resolveu molhar um pouco as têmporas e o lábio que tinha parado de sangrar mas conservava o gosto azedo do sangue.

 

Não havia o que fazer. Só pensar.  Pensar e esperar. Esperar e arquitetar algum plano de fuga. Por sorte, não estava amarrada nem algemada. Tinha ouvido dizer que reféns são sempre amarrados, para evitar fugas ou luta.

Mas ela não estava em condições de pensar em uma fuga.

Não andaria cinco metros, antes de ser agarrada e recolocada no quarto abafado.

Não tinha visto o rosto do chefe, nem seu aspecto sofisticado e – até certo ponto – elegante.

A pergunta que a assustava agora, era o que seus assaltantes pretendiam.

Num assalto comum, no meio da rua, eles pegam a bolsa, alguma sacola, o celular e dão o fora, deixando a vítima transtornada e incapaz de reagir.

Mas este tinha sido um rapto, um sequestro, planejado, organizado e certamente ela não tinha sido pega ao acaso. Ela era uma vítima escolhida,  deliberadamente. Algo que a incomodava demais.

Fosse ela rica, uma dona de indústria, uma juíza, uma policial, uma figura destacada da política ou da sociedade,  entenderia.

Chantagem, interesses contrariados, vingança,  entrariam nas hipóteses.

Mas não era o caso dela.

Chegou a imaginar que fosse tudo um engano.

Queriam outra pessoa, quem sabe alguém parecido com ela.

Depois retornou com o pensamento ao momento do assalto; e concluiu que era ela mesma que queriam. 

Sem sombra de dúvida.

 

Como agem os seqüestradores, em casos como este?

Foi procurar, no fundo da mente, detalhes estúpidos, que lhe pareciam de repente importantes neste seu caso.

Duas hipóteses muito claras abriram caminho na sua cabeça: a primeira, que ela serviria de moeda de troca; a segunda que, resolvida a parte monetária, ela seria sacrificada imediatamente.

A vida dela não valeria um centavo.

Um refém é sempre um estorvo.

Deve ser mantido sob controle permanente; deve ser alimentado; pode precisar de medicamentos; pode ter uma crise nervosa, ou alguma reação imprevisível;  pode gritar, fazer um barulhão, tentar fugir, pôr fogo nos móveis,  pode agredir quem o vigia, tentar o suicídio, quebrar as torneiras e provocar uma pequena e incômoda inundação, usando apenas um pedaço de pau, ou de ferro disponível.

Enquanto está preso, ele vê observa, fixa pormenores, os rostos de quem o controla. Em duas palavras: É uma batata quente.  

Por isso, se não há a intenção de matá-lo, ele será amarrado, vendado, algemado, mantido sob sedação.

O que terá naquelas garrafinhas de  água que lhe deixaram?

Melhor não beber, não comer, não aceitar absolutamente nada, enquanto for possível.

Quantas horas pode-se ficar sem comer? E pior ainda, sem beber? 

Por outro lado, quanto menos cuidados tomarem com ele, mais certo o seu fim; num momento qualquer, alguém vem, dá um tiro (quanto barulho faz um tiro? Até onde poderá ser ouvido? E o que importa isso, uma vez que ela estaria morta, definitivamente riscada da face da terra, naquele segundo?)

 

Uma raiva impotente surgiu nela, aos poucos, subindo com uma maré incontrolável; quanto mais raiva sentia, menos medo havia em sua mente. Queria agora violência, a todo o custo; tão logo conseguisse, queria cobrar o preço da sua humilhação, do pavor, do sofrimento que tinha experimentado.

Atacaria a unhadas e mordidas, sem medir consequências,  o primeiro que lhe aparecesse pela frente.

 

Já era noite funda e Vera estava tensa, acesa;  a adrenalina que pulsava em seu sangue não baixava.

Os sentidos aguçados, como os de um animal acuado.

Todo o seu ser colocando defesas impensáveis na aposta pela sobrevivência.

 

Mas aos poucos,  essa tensão foi cedendo lugar ao cansaço. 

O muro de proteção, que erguera idealmente à sua volta, desfez-se, no que lhe pareceu  uma nuvem de neblina.

O frio da noite encontrou-a respirando agora pausadamente, e aos poucos o sono – um sono agitado, mas reparador – a envolveu irresistivelmente. 

 

Pela manhã cedo, acordou dolorida e friorenta.

Estava com os membros tensos, mas o sono fizera maravilhas; em dois segundos estava novamente consciente de sua situação, analisando as hipóteses feitas na noite anterior.

Refrescou-se com um pouco de água  e percebeu que estava com fome. Tomou a decisão de ficar quieta, com os sentidos atentos, procurando captar todos os detalhes possíveis; de não se mexer, de não se agitar, de não acordar os que, certamente, a estariam vigiando, de não lhes chamar a atenção.

 

Enquanto isso, revisava os detalhes de sua captura. 

Vindo do subconsciente, recuperou uma imagem, pressentida por uma fração de segundo, de um rapaz, postado perto da esquina, num movimento involuntário, quando ela aparecera.

Podia não ser nada. Mas quanto mais refletia, quanto mais voltava àquele momento, mais claro lhe parecia o gesto de alerta.

Quem era? Como poderia identificá-lo?

E voltava, voltava, tentando focalizá-lo. 

É interessante como a mente trabalha, no inconsciente; como pode ser realimentada com imagens, exatamente como um disco gravado. 

Não podia ter certeza, mas começou a ter a idéia de já ter visto aquele rapaz; parecia – apenas parecia - um ajudante do supermercado, que uma vez lhe tinha levado em casa as compras. 

Não sabia seu nome, mas poderia reconhecê-lo.

Subitamente o chefe do bando apareceu.

Vera  via-o pela primeira vez e imediatamente começou a gravar mentalmente o seu rosto, a roupa,  os sapatos finos, enfim, todos os detalhes que podia captar.

Posso morrer, pensava, mas levo para o céu uma informação correta .

Se houver anjos policiais lá em cima, vão poder agarrar este malandro facilmente.

O homem vestia outro terno, mas continuava com a mesma elegância de cafajeste e calçava os mesmos sapatos, inconfundíveis,  do dia anterior. 

Certamente queria impressionar, valorizar sua figura e sua posição diante dela,  coitada, insegura e com a vida pendendo por um fio.

Ele a apostrofou, com uma voz profunda, envolvente, macia; começou por perguntar-lhe quem era – mas ele já sabia tudo a respeito de sua vida; possuía uma ficha completa.

 –Mas como pode ser isso? -  perguntava-se Vera, sem conseguir entender.

O mundo moderno acabou com a privacidade, é verdade; a menina simpática que lhe aparece na porta com uma pesquisa, ou oferecendo pequenos brindes, está levantando dados,  captando elementos, assimilando informações que mais tarde servirão a alguém – eventualmente até contra você.....

Mas as informações que o Chefe possuía – e das quais fazia uso, reduzindo a pó as eventuais defesas de Vera – eram tão pormenorizadas, que provavam a interferência de alguém muito próximo.

 

E finalmente, horrorizada, Vera entendeu tudo.

Eram tantos detalhes, tantas pequenas coisas, que só podia ser  o marido, que havia urdido aquela trama !

 

Era por isso - e só agora ela entendia – que nas últimas semanas perguntara pormenores, tirara cópias de documentos, pedira uma procuração, fora atencioso e até carinhoso com ela e com  as crianças. 

 

Alguns telefonemas estranhos vinham-lhe agora à memória.

Bendita mente fotográfica, bendita aquela atenção subconsciente, que garantira a sobrevivência da raça e que agora, não usada, se encontra apenas em poucos últimos exemplares da espécie.

 

Montou rapidamente o quadro. Rafaela, a secretária, que nos últimos tempos  mandava frequentemente o Ludovico, filho de um casamento fracassado, para brincar com o Alberto, estava aos poucos esgueirando-se para dentro de casa, de sua casa, como uma cobra venenosa.

 

Vera entendeu que esta descoberta tanto podia ser sua salvação, quanto a sua  morte. Mas estava agora jogando com alguma carta própria.

 

Precisava urgentemente de uma boa estratégia.

E a boa, a melhor estratégia seria a de se familiarizar com o algoz, jogando um jogo de gato e rato, esperando que o chefe fosse tão tapado quanto o Tom e  ela tão esperta quanto o Jerry .

O momento fundamental, o clímax, a cena mãe, em um sequestro,  é o da troca de trunfos.

O assaltante está com um refém. Deve receber a compensação, o pagamento combinado, antes de se livrar da “batata quente”. 

O contratante, por sua vez, precisa ter certeza que o pacto será cumprido, antes de pagar.

O perigo, para ele, é  que o refém não morra; o plano todo seria revelado e todos iriam para a cadeia. Mas, uma vez morto o refém, não há mais necessidade de pagar nada.

Estes pensamentos amontoavam-se na cabeça da Vera, enquanto respondia distraidamente às questões que o chefe lhe colocava.

 

- “ Jogue um contra o outro! Mostre como este tipo de pacto não vai funcionar; o marido é traiçoeiro – está mais que provado – e não vai soltar nunca o dinheiro (a propósito, quanto vale minha cabeça? Estou curiosa de saber...)– Era a razão, fria, impecável,  que lhe falava ao ouvido..

 

- “ Tente comover o homem, com  o pensamento dos filhos órfãos, dependendo de um pai desnaturado  e traiçoeiro...” sugeria o bom senso intuitivo, tipicamente feminino.

 

Nos dois casos, a palavra chave era “traiçoeiro”.

 

Como se estivesse falando sozinha, começou a comentar, chamando a atenção do chefe. Ela nem olhava para ele. Falava como se estivesse em transe:

- “Ele é traiçoeiro; traiu a mim,  trairá você, tantas vezes quantas quiser. Mesmo que você  me mate, que faça o serviço sujo, é ele que vai ganhar.

Está só esperando o telefonema fatídico, aquele com o qual você dirá a ele que está tudo acabado e pedirá a recompensa. 

Ele vai denunciá-lo, vai colocá-lo na cadeia, vai persegui-lo, vai fazer você sumir.

Ele é um homem importante, você é um bandido.   Quem vai ganhar?  Que chances você acha que tem?

 

Aos poucos, o chefe foi assimilando o significado das  palavras de Vera.

Caiu literalmente em si.

- “ Para traidor, traidor e meio!  - afirmou, quase aos gritos.

 

Vera passou para a segunda parte da ofensiva

- “ faça de conta que me matou” disse com tranquilidade, como se estivessem para matar um rato. “ e veja o que acontece. Você não tem nada a perder; se eu estiver certa, em meia hora a favela vai estar cercada. Você tem um plano de fuga? “

Ela estava agora no comando da operação. Estava com as rédeas e começava a dirigir a coisa toda.

-“Tenho, sim, e muito bom, por sinal,” – respondeu o chefe.

-“ Então vamos; o que está esperando? Qual é o plano? Onde  meu marido deve entregar o dinheiro?

-” No shopping Santa Cruz!”

- “ No Shopping Santa Cruz?!! Não acredito! Que falta de imaginação!”

- “ Foi ele que decidiu...” respondeu o chefe, quase a tentar uma justificação.

- “ E quanto é?” arriscou ela...

-“ Ah isso não digo, não. De repente a coisa vai mal  e você não morre!.....”

- “ A coisa vai mal se eu morrer!! Pense bem! “ Sua vida depende da minha sobrevivência, pode crer! Cuide bem de mim, e eu cuidarei bem de você. Que marca de cigarro você fuma?

- “ Nenhum. Parei faz dez anos.

- ” Bom. Agora dê o telefonema. Diga que sofri, esperneei, mas no fim morri.

    Diga que você até ficou com pena de mim. Peça que ele vá ao shopping com a grana, já, que você está com pressa.”

 

O chefe, agora completamente subjugado ao raciocínio claro de sua vítima,  pegou no  telefone; Foi Vera que digitou os números.

-“ Alô, aqui é o chefe. O trabalho foi feito. Espero-o em meia hora no local que combinamos..... Sim, está acabado, como o senhor encomendou. Meia hora, então. Até logo.”

- “ Aposto minha vida que ele vai aparecer com uma dúzia de policiais e ainda vai querer fazer bonito!”  – exclamou Vera.

- “ Sua vida, por enquanto, não vale tanto assim!” – atalhou o bandido.

- “ Então vou ficar quieta” – e engoliu em seco, lembrando quão precária era a sua condição.

 

 Chegando ao Shopping, o chefe mandou um de seus “meninos” - um adolescente pouco esperto – pegar uma caixa de sapatos na praça da alimentação.

 

Pouco depois, o menino voltou, ofegante, assustado, com a língua de fora e os olhos esbugalhados.

 “ Patrão, patrão! Nunca vi tanta policia junta!”

 “ Vamos cair fora daqui!” disse o chefe dirigindo-se ao motorista.

 

Quando chegaram, Vera foi peremptória:

- “Preciso ficar aqui mais dois dias. Preciso saber o que o meu maldito marido vai fazer. É outro momento perigoso. Preciso agir com todo o cuidado!”

 

O marido tinha certeza que Vera tinha sido morta pelos criminosos.

Bastaria livrar-se deles, avisando a Policia. Foi o que ele fez.

Mas a coisa não correu como ele pretendia.

O garoto que devia pegar o dinheiro deu no pé antes que pudessem pegá-lo.  Se o marido fornecesse alguma pista sobre os assassinos, a policia descobriria facilmente toda a trama.

 

Teve que ficar em silêncio, aguardando que o corpo dela fosse encontrado.

Mas o corpo não apareceu.

E os seqüestradores entenderam que nunca receberiam o resgate, com Vera viva ou morta.

Decidiram então vingar-se e puseram a boca no mundo.

O marido foi preso e ainda aguarda julgamento, enquanto curte a acolhida carinhosa dos colegas em vários distritos policiais da capital. 

Dizem as más línguas, que alguém pagou para que o homem tivesse uma receptividade calorosa.

Com certeza, ele nunca vai esquecer.

 

Vera, depois do acontecido, reencontrou toda a solidariedade dos filhos e da família. 

Teve que refazer alguns exames, é verdade, por causa do grande susto, que  podia ter mexido com ela.

Mas continua com nota dez com louvor, e está mais feliz do que antes.

E mais livre, também. 

A ação de divórcio corre  rapidamente e alguns candidatos já se apresentaram querendo casar com ela.

Mas ela já recusou polidamente o primeiro deles, porque calçava um par de sapatos italianos, extremamente elegantes, mas muito, muito suspeitos....    

 

    


Autor: Romano Dazzi


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