Pluralismo Jurídico, Direito Alternativo e Direito Achado na Rua - O Direito em Face de Seus Determinantes Sociais



"Que não triunfem os inertes!" - Bobbio

Este breve trabalho tem como objetivo precípuo a abordagem da correlação entre os conceitos do pluralismo jurídico, Direito Alternativo e "Direito achado na rua", enquanto fundamentais para o (re)pensar do Direito em relação às evoluções, involuções e contradições da sociedade.

Tentaremos, sem a pretensão de esgotar o tema, convergir esses temas para uma análise do Direito sob as lentes do "Direito vivo" de Eugen Ehrlich e da contemplação da estrutura jurídica enquanto fenômeno sócio-cultural, criado e recriado a partir das mudanças que pulsam dentro do seio social, sob o prisma de que o fenômeno jurídico é uma estrutura que deve ser contemplada além das cancelas do legalismo1 e do Estado.

Valendo-nos do ideário do notável professor Antônio Carlos Wolkmer, iniciamos nosso percurso com a conceituação do pluralismo jurídico, enquanto contrário à inexorabilidade do Estado como fonte exclusiva de toda a produção do Direito. Dessa forma, "trata-se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que pleiteia a supremacia de fundamentos ético-político-sociológicos sobre critérios tecno-formais positivistas" (WOLMER, 2001, p.7). Em consonância com essas palavras pontuadas por Wolkmer, impõe-se encarar o pluralismo jurídico a partir da multiplicidade de manifestações normativas num mesmo espaço político-social. Esse caráter múltiplo decorre justamente do reconhecimento de que o Direito estatal, perante a complexidade, instabilidade e contradições das atuais sociedades, é apenas uma dentre inúmeras fontes de direito.

Mas, dadas essas constatações, em que cenário deve ser contemplado o fenômeno do pluralismo jurídico? Faz-se mister enxergar sua pertinência em face da ineficácia do atual aparato jurídico tecno-formal perante relações sociais cada vez mais imprevisíveis; daí a importância do reconhecimento de manifestações normativas fora da égide estatal e oriundas das necessidades e particularidades dos novos sujeitos sociais.

Desse modo, o que pretendemos defender é que, se o Direito deve ser enxergado como reflexo de uma estrutura pulverizada também pelo conflito entre múltiplos atores sociais (WOLKMER, 2007, p.1), é lógica e plenamente possível a existência de normas derivadas de fontes diversas, desde que reiteradas nas práticas e interações sociais.

Poderíamos remeter, pois, ao que versa Ehrlich (1986, p.27-29), quando concebe o Direito como um produto espontâneo da sociedade, sendo que cada uma delas cria internamente a sua própria norma jurídica. É precisamente esse o "Direito vivo", desapegado dos grilhões dogmáticos, doutrinários e estatais; proveniente da vida concreta dos indivíduos. Desse modo, Ehrlich traz a lume um direito que se volta para o solucionamento dos conflitos intersubjetivos de uma forma mais equânime e eficaz. Ora, fica-nos flagrante a oposição à ciência jurídica dominante, preconizadora do direito positivo enquanto receptáculo de toda a lei.

O Direito Vivo de Ehrlich nos denuncia o perigo que representa esse desprestígio à pluralidade de fontes de direito, vício inculcado na maioria dos operadores da área jurídica. Esse apego quase absoluto às leis é o devaneio do Direito moderno. De acordo com o brilhante pensamento do autor, "querer encerrar todo o direito de um tempo ou de um povo nos parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma correnteza em uma lagoa" (EHRLICH, 1980, p.110). Valorizar, pois, essa noção, é optar pela defesa de um direito moribundo e negar o direito vivo, isto é, o direito na plenitude de seu dinamismo, advindo diretamente das relações sociais.

Eis por que entendemos muitíssimo pertinente pontuarmos o ideário do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em seus escritos em "Para uma Revolução Democrática da Justiça". Boaventura traz como alicerce o desafio de se construir uma sociedade justa e atenta a todas as classes sociais e às peculiaridades que as circundam. Tal proposta passa pela superação desses paradigmas inerentes ao campo jurídico e que contribuem para a perpetuação de um Direito estático, frio e talhado pelas vicissitudes do normativismo absoluto.

É justamente nesse contexto que podemos adentrar o segundo elemento do nosso trinômio: o "Direito achado na rua". Preliminarmente, devemos aqui contemplar a rua justamente como o palco das organizações populares, o espaço fértil às mobilizações e aos clamores do povo. O "Direito achado na rua", expressão cuja nascente encontra o brilhante ideário de Roberto Lyra Filho2, emerge do pluralismo jurídico na medida em que nasce, não do ventre do Estado, mas do clamor dos oprimidos e das práticas dos novos sujeitos sociais.

Dessa forma, urge que a rua seja vista não como mero espaço físico, mas como o espaço simbólico por intermédio do qual os indivíduos se convertem em coletividade; é nela que surge um povo que vocifera por seus próprios anseios; é ela que pertence ao povo. Portanto, é no bojo do pluralismo jurídico não-estatal que surge esse Direito dos oprimidos, oposto àquele Direito estaticamente codificado em normas e distante da dialética social. Em harmonia com Wolkmer (2002, p.100) – amparado no pensamento de Lyra Filho,

[...] o Direito não mais refletirá com exclusividade a superestrutura normativa do moderno sistema de dominação estatal, mas solidificará o processo normativo de base estrutural, produzido pelas cisões classistas e pela resistência dos grupos menos favorecidos.

Há que se observar, pois, o que atenta Wolkmer a respeito da contribuição do "Direito achado na rua": ele se insere justamente na proposta desse Direito novo que vai ao encontro da capacidade popular de se afirmar como agente determinante e não só determinado por esta ou aquela estrutura estatal. É assim que a escória do corpo social se mostra soberana quanto à afirmação de seus interesses, visto que manifestam, nas relações sociais, formas jurídicas completamente novas, desformalizadas e contrárias à inércia do Direito posto em códigos.

Faz-se mister, ainda, observarmos que as contribuições de Lyra Filho e do "Direito achado na rua" propiciaram – timidamente, é verdade – uma reconstrução criativa nas faculdades jurídicas. Impossível não lembrarmos das idéias de Mauro Cappelletti, quando menciona a necessidade de se investir em uma melhor formação dos estudantes de Direito3. Essa proposta de reflexão sobre a atuação jurídica dos novos e mais variados sujeitos sociais encontra as mentes inquietas dos acadêmicos do campo jurídico e impulsiona a análise das experiências populares de (re)criação do Direito.

Em suma, urge a compreensão do "Direito achado na rua" a partir da identificação da rua enquanto palco no qual se manifestam práticas sociais e, por conseguinte, a partir do qual surgem direitos fora do baluarte estatal e condizentes com os desideratos dos novos sujeitos sociais. Ademais, busca-se justamente definir novas categorias jurídicas a partir das reiteradas práticas sociais inovadoras e propagadoras de novos direitos – aproximando-se da perspectiva do Pluralismo Jurídico, quando atenta para a existência de mais fontes jurídicas do que se está de fato revelado.

Nesse cenário de realce do processo de formação normativa em função das especificidades de sujeitos sociais emergentes, é de plana conveniência abordarmos a polêmica que envolve o Direito Alternativo. Como terceiro elemento de nossa análise, esse movimento traz a lume uma proposta diferenciada no que tange à interpretação e aplicação das leis pelos juízes. Seus desideratos trazem em si justamente uma alternativa aos paradigmas da ciência jurídica, desnudando uma harmonização entre o Direito e seus determinantes sociais.

Na marcha de nossa análise do Direito sob as lentes da perspectiva crítico-sociológica, o Movimento de Direito Alternativo evidencia justamente uma preocupação em restabelecer o Direito enquanto propiciador da construção de uma sociedade mais justa e efetivamente democrática. Trata-se de uma proposta que teve seu germe no Rio Grande do Sul, em meados da década de 90 e se opõe à cultura jurídica tecno-formal-normativista, de apego absoluto à lei. Entre os objetivos do Direito Alternativo, ao contrário desse caráter, está a proposta de um esforço hermenêutico no sentido de aproximar o texto legal do caso concreto – evidenciando, pois, clara preocupação quanto aos sujeitos preteridos pelo aparato jurídico dominante e cujos interesses, contradições e necessidades são mais facilmente encontrados no "jus-rueirismo".

Assim, o movimento se aglomera acerca de uma nova forma de ver, ler e interpretar o Direito. Em consonância com o célebre professor Amilton Bueno de Carvalho (apud, WOLKMER, 2002, p.142), um dos precursores do Direito Alternativo, trata-se da utilização, por intermédio da interpretação diferenciada, "das contradições, ambiguidades e lacunas do Direito legislado numa ótica democratizante". Desse modo, o magistrado busca flexibilizar a aplicação da norma em face dos dados reais da sociedade, levando em conta, por que não, o direito vivo, achado na rua e próximo da consecução da justiça social.

É imperioso, ainda, observarmos que o volume de críticas dirigidas ao Direito Alternativo é gigantesco. Atribui-se a ele o estereótipo de um movimento de juristas contrários à lei e interessados em julgar a gosto próprio, sem quaisquer critérios legais4.

Contudo, há que se perceber que, a despeito dos ataques – geralmente inconsistentes – dirigidos aos juízes simpáticos a esse movimento, ele não representa uma subversão total ao direito positivo, mas uma crítica à exacerbação positivista que se mostra conveniente às classes dominantes e automatiza a atuação dos magistrados ante os casos concretos. O professor Antônio Carlos Wolkmer, já citado aqui, esteve no germe desse movimento, cuja revolução passa, ainda, pela proposta de coadunação entre ordenamento jurídico e um Direito mais equânime, socialmente adaptado e atento às contradições sociais. Ademais, é flagrante sua aversão ao capitalismo e sua intenção de criar uma sociedade efetivamente democrática.

Aproximando-nos do fim do nosso percurso, poderíamos dizer que a característica que talvez seja o ponto axiomático do Direito Alternativo reside justamente no pluralismo jurídico, uma vez que, conforme exposto, não cabe apenas ao Estado o papel de criação do Direito. Essa pluralidade tem como sustentáculo a noção de um Direito vivo, transformador e transformado pela sociedade. Dá-se, então, atenção ao Direito achado nas ruas, fora da esfera estatal e compromissado com as camadas desfavorecidas, aproximando-se, assim, da efetiva democratização da sociedade. Os três elementos de nossa análise resgatam, pois, o entendimento, partilhado por autores como Luís Alberto Warat, Antônio Carlos Wolkmer e Boaventura de Sousa Santos (cavaleiros errantes em meio a uma multidão de paladinos da inércia), de que o Direito deve ser visto a partir de seu potencial transformador e interdisciplinar. Ele não subsiste sozinho; o fenômeno jurídico deve estar numa constante reinvenção e adaptação ante as particularidades e contradições sociais, confirmando o Direito enquanto reflexo de uma estrutura pulverizada também por manifestações organizadas de poder e conflitos entre toda uma multiplicidade de autores sociais.

Impõe-se, pois, compreender o trinômio "pluralismo jurídico/Direito alternativo/Direito achado na rua" como uma estrutura única, aproximada de uma concepção de justiça mais democrática, humana, plural e socialmente comprometida. Essa idéia passa pela noção de que as fontes de produção de direitos são muito mais vastas do que se poderia pressupor por intermédio de leis e códigos. Ademais, passa pelo entendimento de que a capacidade de um juiz de atender às demandas da sociedade cada vez mais multifacetada é tão mais forte quanto sua vontade de atuar de forma interdisciplinar e não-automatizada, voltado para o direito emergente dos conflitos e manifestações dos excluídos; o direito nascido da rua.

Eis que, só quando estiver imersa no ideário coletivo a concepção de que o Direito não só conforma a realidade, mas, numa relação dialética, também é transformado por ela, poder-se-á compreender o papel social do Direito dentro da sociedade. Os muros robustos do legalismo e da visão estática que assolam o campo jurídico só ficam mais próximos de serem transpostos quando também se enrobustece a noção de um pluralismo no qual as classes oprimidas e suas relações com o mundo também se tornam fontes de direito. Da criação e recriação do Direito, das ruas e da interpretação diferenciada dos magistrados ante os novos sujeitos da esfera social, nasce a esperança de uma sociedade mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Brasília: UnB, 1986.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A formação dos magistrados e a cultura jurídica. In: ______. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007. p.66-78. (Coleção Questões da Nossa Época, v.134).

WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001.

1 Em harmonia com Roberto Lyra Filho, não se confunde legalidade com legalismo; este transforma aquela em fetiche, reduzindo o Direito a um conjunto sistemático de leis e desconsiderando tudo o que foge do monopólio estatal.

2 O advogado Roberto Lyra Filho (1926-1986) foi o fundador do que ele proclamou "Nova Escola Jurídica Brasileira", propondo a prática da "ilegalidade não-selvagem" em oposição ao legalismo; esse combate se daria com o exercício do "verdadeiro direito" – achado justamente na "rua".

3 Mauro Cappelleti, em sua renomada obra "Acesso à justiça", expôs a problemática acerca do ensino jurídico enquanto fundamental à proposição de um modelo de acesso à justiça efetivamente democrático e atento às particularidades sociais.

4 É célebre o episódio em que o Jornal da Tarde, de São Paulo, em outubro de 90, trouxe um artigo cujo título estampava: "Juízes gaúchos colocam direito acima da lei". Em vez de desmoralizar o grupo de estudos alternativista, deu impulsão ao início do movimento.


Autor: Felipe Augusto Rocha Santos


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