O fetichismo da mercadoria - um passeio entre Marx e a ''coisificação'' do trabalho humano



Este artigo tem como objetivo fazer uma análise expositiva acerca do fetichismo da Mercadoria em Marx, correlacionando suas características com conceitos operacionais (mais que) oportunos do pensamento marxista. Dar-se-á especial atenção à alienação, à ideologia e à teoria da mais-valia, enquanto conceitos fundamentais para um enfoque crítico do caráter fetichista da mercadoria.

Nas considerações a seguir, pretende-se remeter a algumas idéias apresentadas por Isaak Rubin em "A Teoria Marxista do Valor", bem como ao ideário de Marx enquanto expoente da filosofia da política e do trabalho. Para que se possa chegar, pois, à "coisificação" das relações sociais, o que Marx chama de fetichismo da mercadoria, faz-se mister preliminarmente enfocar alguns aspectos concernentes à análise marxista do capitalismo.

A base do pensamento marxista é o materialismo histórico-dialético. Sucintamente, por materialismo se entende a doutrina filosófica que exacerba a idéia da concretude material como anterior ao mundo subjetivo, condicionando as idéias e a realidade social. Logo, é adversa à defesa apaixonada e platônica do mundo das idéias enquanto condicionantes da realidade, a filosofia idealista. Por dialética, entende-se a relação entre opostos contrários, mas interdependentes. As condições reais de existência provocam as forças contrárias (materialismo). Dessa forma, a filosofia marxista incorpora e adapta a dialética hegeliana e desenvolve um novo método de análise da história, o materialismo histórico (que será lembrado mais adiante, na análise da mais-valia). Essa compreensão dos fundamentos do Marxismo é indispensável para que se contemplem as contradições do capital (tais qual o fetichismo), exaustivamente lembradas por Marx.

Um dos sustentáculos da crítica de Marx ao modo de produção capitalista é a sua deturpação da condição humana. Essa condição provém do trabalho, que Marx define como o dispêndio de força humana sobre a natureza – uma relação dialética – a fim de transformar matéria a seu interesse. A alienação é um dos fatores que promovem a desfiguração do trabalho, logo, é algoz da condição humana. Com o advento capitalista, o trabalhador é separado dos meios de produção, é espectador da detenção privada sobre eles e se resigna a ser uma dentre muitas etapas do processo produtivo. De fato, "ele fiou e o produto é um fio"(MARX, 1989, p. 300), mas ele não se reconhece nos produtos a que "dá vida".

Como visto, o trabalhador aliena-se do trabalho, logo, perde sua essência humana e delega para outrem o poder de comandar a sociedade. O trabalhador perde o trabalho, o saber e, conseqüentemente, submete-se ao poder pernicioso do capitalismo. Essa progressiva e assustadora incorporação do trabalhador aos sustentáculos do capitalismo é um dos pilares da reificação das relações sociais. O valor das mercadorias se mostra objetivo, visto como algo inerente a elas, sendo que decorre do trabalho humano, do "fiar" de um indivíduo membro do grande corpo produtivo. A partir daí, podemos começar a delinear a percepção de Marx sobre o fetichismo, acerca das

[...] relações humanas por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana que se origina da economia mercantil e atribui às coisas características que têm sua origem nas relações sociais entre as pessoas no processo de produção (RUBIN, 1980, p.19, grifo nosso).

Percebe-se que, dessa forma, tal ilusão pode, por exemplo, enxergar os valores como uma propriedade natural das coisas. Para Marx, um perigosíssimo devaneio, pois afasta a noção do trabalho humano incorporado ao valor. Esse acréscimo do trabalho no valor traz a lume a idéia da mais-valia, a discrepância entre a quantidade de riqueza que o trabalhador acresce à produção e aquela que ele recebe. Tal contradição alimenta as bases da produção capitalista e tem relação íntima com o fetichismo da mercadoria, que pouco a pouco começa a se solidificar no presente artigo.

A taxa de mais-valia acaba por representar o resultado da exploração burguesa sobre o proletário e a ratificação da alienação do trabalho. O capitalista compra a força de trabalho do trabalhador e lhe paga determinada quantia, relativa a dada quantidade de horas. Evidentemente, o salário pago é incorporado ao preço final da mercadoria. O que se observa, no entanto, é que nada impede que o trabalhador exceda as horas que lhe são pagas, conseqüentemente incorporando mais valor à mercadoria e nem por isso sendo remunerado de maneira proporcional. Ao capitalista, é reservada uma doce fatia a mais de lucro, oriunda da exploração. É o chamado sobretrabalho, oportunamente desenvolvido por Marx em sua obra "Salário Preço e Lucro".

Pelas próprias palavras de Marx (1982, p.83),

A taxa de mais-valia dependerá, se todas as outras circunstâncias permanecerem invariáveis, da proporção existente entre a parte da jornada que o operário tem que trabalhar para reproduzir o valor da força de trabalho e o sobretempo ou sobretrabalho realizado para o capitalista. Dependerá, por isso, da proporção em que a jornada de trabalho se prolongue além do tempo durante o qual o operário, com o seu trabalho, se limita a reproduzir o valor de sua força de trabalho ou a repor o seu salário.

Reside aí um dos alicerces da crítica Marxista. Conforme já exposto, o trabalho é o pressuposto do processo de humanização, mas não o viciado trabalho oriundo do capital. Aqui, a força de trabalho do indivíduo – típica mercadoria – é vendida por um valor muito aquém do que aquele criado por esse mesmo trabalhador. Em consonância com a comparação oportunamente exposta por Marx (1982, p.84), entre trabalho servil e trabalho assalariado, tanto faz entre aquele que trabalha X dias para si e X dias, de graça, para um terceiro e aquele que exerce uma jornada diária na fábrica, X horas para si e X para o patrão. Ora, mas o primeiro trabalha para si em determinados dias e para o seu senhor, de forma compulsória, em outros dias. O trabalho pago e não pago está perceptivelmente separado. Já o assalariado imagina que o valor de sua força de trabalho é o preço de seu próprio trabalho. Assim, fica claro que "No primeiro caso, o trabalho não remunerado é visivelmente arrancado pela força; no segundo, parece entregue voluntariamente" (MARX, 1982, p84). A única diferença é, pois, a alienação que emana de uma mera relação contratual celebrada pelo trabalhador com o capitalista.

A partir disso, não restam dúvidas de que a produção da mais-valia desfigura o trabalhador e consiste em uma conveniente base à produção capitalista. O materialismo histórico viu, nesse vício da classe exploradora parasitária, a contradição fundamental do modo de produção capitalista. Aos olhos da filosofia materialista dialética, dessas contradições emana a luta de classes e a inexorável conseqüência da evolução da história. Desse modo, "aplicada aos fenômenos historicamente produzidos, a ótica dialética cuida de apontar as contradições constitutivas da vida social [...]" (OLIVEIRA e QUINTANEIRO, 2002, p.29). Engendram-se, para o materialismo histórico marxista, as condições para o padecimento do capitalismo e surgimento de outro modo de produção. É justamente por isso que Marx enxerga a luta de classes como o motor dialético da história.

É exatamente para evitar a eclosão da subversão que o capitalismo faz uso da ideologia para mascarar as reais contradições que emanam das relações homem / trabalho. A ideologia, em Marx, é a própria forma de encobrimento das relações sociais reais. Ela permeia todos os âmbitos da sociedade, criando toda uma retórica, todo um discurso para entorpecer o pensamento. Para Marx, a ideologia capitalista ofusca a relação do trabalhador com o trabalho, existente na troca de mercadorias, solidificando sua alienação quanto às reais relações humanas no mercado.

Tendo em vista a força da alienação, muitas pessoas passam a ver as mercadorias com vidas próprias, envoltas em um caráter místico. Os valores passam a fazer parte de uma suposta propriedade natural das coisas. Isso é o que Karl Marx chamou de caráter fetichista da mercadoria. A correlação íntima entre alguns dos conceitos presentes no marxismo, como a mais-valia, a alienação e a ideologia, é fundamental para uma melhor compreensão do fetichismo da mercadoria, por isso, esses conceitos são convenientemente abordados no presente trabalho.

Mas, em linhas gerais, o que Marx representou na concepção de fetichismo? Nas palavras de Isaak Rubin (1980, p.19),

Consiste em Marx ter visto relações humanas por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana que se origina da economia mercantil e atribui às coisas características que têm sua origem nas relações sociais entre as pessoas no processo de produção.

O que Marx enxergou brilhantemente, em "O Capital", foi o dispêndio de nervos, músculos e sentidos; o trabalho, essencialmente humano, converter-se em valor objetivo da mercadoria. O enigma do fetichismo dessa mercadoria se demonstra no momento em que, nas relações entre produtores, as mercadorias refletem as características sociais do trabalho como naturalmente intrínsecas às coisas. Por outro lado, "reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos" (MARX, 1996, p. 198). Coisificam-se as relações humanas e personificam-se as coisas.

Conceituar de forma plena o fetichismo que envolve a mercadoria é tarefa, de fato, complicada, obstaculizada pela própria forma como o conceito vai evoluindo ao longo da obra "O Capital". No entanto, serão aqui apresentadas mais algumas abordagens e a forma como a ideologia do capital reforça a sua propagação.

Embora o trabalho adquira forma social, pelo simples fato de os homens trabalharem de alguma forma uns para os outros, os produtores só entram em contato social quando trocam os produtos de seu trabalho. Além disso, o valor da mercadoria passa a ser visto como algo objetivo, intrínseco a sua natureza e não ao dispêndio de força laboral do trabalhador envolvido na produção. Desse modo, como bem cita Marx (1996, p.179), "Ao equiparar-se, por exemplo, o casaco, como coisa de valor, ao linho, é equiparado o trabalho inserido no primeiro com o trabalho contido neste último". A grande questão é que essa comparação é feita, embora não de forma consciente.

Nota-se, por conseguinte, que a abstração do trabalho acaba por sobrepujar a verdadeira relação social por detrás de determinada mercadoria. Quanto mais essa abstração é reforçada pela ideologia do capital, mais as mercadorias são envoltas pelo fetichismo. Fica, pois, evidente, na visão de Oliveira e Quintaneiro (2002, p.55), que

Através da forma fixa em valor-dinheiro, o caráter social dos trabalhos privados e as relações entre os produtores se obscurecem. É como se um véu nublasse a percepção da vida social materializada na forma dos objetos, dos produtos do trabalho e de seu valor.

Esse véu é convenientemente construído pela ideologia capitalista, que intenta, justamente, obscurecer as relações sociais por trás da mercadoria. Essas relações são coisificadas, enquanto as mercadorias se personificam no jogo do mercado. Desse modo, "[...] as relações sociais de produção não são apenas 'simbolizadas' por coisas, mas realizam-se através de coisas" (RUBIN, 1980, p. 26).

De posse dessas considerações, clareia-se a novamente visão de Marx, ao dizer que o caráter fetichista da mercadoria provém do caráter social sugerido como inerente às próprias mercadorias, não ao trabalho que as produz. O dispêndio de força intelectual e física por parte do trabalhador, como já visto, atribui valor aos produtos do trabalho (não raro, valor muito superior ao que é pago àquele que vende sua força de trabalho). Posteriormente, nas relações de troca as características sociais do trabalho se evidenciam. As coisas adquirem as relações sociais e as pessoas têm suas relações reificadas pela linha tênue entre as relações de produção e o movimento das coisas. Ainda em consonância com Isaak Rubin (1980, p. 24), "a coisa não só oculta as relações de produção entre as pessoas, como também as organiza, servindo como elo de ligação entre as pessoas".

A face deletéria do fetichismo ante os trabalhadores não pára por aí. Gradativamente o vício do capital e a coisificação das relações sociais potencializa a alienação do indivíduo.

O estranhamento, elemento diretamente ligado ao fetichismo, é algo que corrobora a objetificação das relações sociais. Tais relações pululam um campo metafísico, como coisas tipicamente estranhas ao controle social. Controle, aliás, que o trabalhador que produz a mercadoria, não exerce sobre ela. Desse modo, é flagrante que a alienação é disseminada pelo caráter fetichista da mercadoria. Os homens passam a entrar em relação tão só por meio das coisas que portam e no momento de sua troca no mercado. No cerne dessa prática, estão os trabalhadores que, inicialmente, alienaram-se dos meios de produção, até se alienarem do poder.

Para Marx, o estranhamento em relação ao trabalho "[...] inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência" (MARX, 2004, p.75). Ou seja, convergimos mais uma vez para a deturpação da condição humana produzida pelo capitalismo. O trabalho humano, que deveria diferenciar o homem do animal, passa de livre a algo ligado tão só à sobrevivência. Separado o trabalhador dos meios de produção, ele continuará a fiar, mas o fio que foi resultado de sua ação se distanciará cada vez mais dele. Quanto maior é essa distância, mais reificadas se tornam as relações humanas de produção, logo, mais difícil se torna ver por trás do fetichismo.

É imperioso observar, ainda, que não se trata de pressupor exploração para haver fetichismo da mercadoria, mas, de certo, a existência deste é um mecanismo que corrobora e contribui para a exploração do capital. Percebe-se que

[...] na economia mercantil, as relações sociais de produção assumem inevitavelmente a forma de coisas e não podem se expressar senão através de coisas. A estrutura da economia mercantil leva as coisas a desempenharem um papel social particular e extremamente importante e, portanto, a adquirir propriedades sociais específicas (RUBIN, 1980, p.20).

O fetichismo, portanto, apresenta-se também de forma muito real, paradoxalmente, numa realidade muito concreta ante o misticismo que envolve a conceituação da face fetichista da mercadoria. Ainda em consonância com Rubin (1980, p. 73), ele não é só um fenômeno da consciência social, mas um fenômeno da própria existência social. Percebe-se que a sociedade adere ao fetichismo a partir do momento em que se resigna perante o estabelecido, que se distancia de sua organização e produção. Ela passa a se relacionar tão somente por meio de coisas que carregam em si essencialmente trabalho. Ainda que o pensamento se subverta e passe a ver a mercadoria pelo real trabalho que nela está inserido, o indivíduo permanecerá se relacionando por meio da mercadoria, ressuscitando o fetiche. Não se trata, pois, de mera questão de consciência individual, a questão passa pelas características do modo de produção burguês. O que fica claro, conforme aduz Marx (1996, p.201), é que "Todo o misticismo [...] das mercadorias, toda a magia e a fantasmagoria que enevoam os produtos de trabalho [...] desaparecem, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção".

Em conclusão, em uma forma de produção em que o trabalhador existe substancialmente para incorporar valores através da exploração do seu trabalho e não para satisfazer suas próprias necessidades por meio da riqueza, o resultado não poderia ser outro que não a reificação das relações entre indivíduos. O presente trabalho procurou percorrer um caminho que levasse à compreensão da conexão entre o fetichismo da mercadoria e as vigentes relações de produção do capitalismo. Não à toa, procurou-se transitar entre conceitos que Marx manuseou de forma brilhante em sua análise da degradação humana promovida pelo modo de produção capitalista. Conceitos fundamentais e totalmente pertinentes ao apresentado fetichismo da mercadoria. Todos eles, tanto a alienação, a ideologia, a mais-valia e o caráter fetichista da mercadoria, correlacionam-se intimamente e, talvez, tenham de mais comum as contradições internas que representam uma possibilidade de mudança.

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996a. Livro I, tomos 1 e 2. (Coleção Os Economistas).

______. Salário, preço e lucro. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Os Economistas).

RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980.

QUINTANEIRO, T.; BARBOSA, M. L. de O.; OLIVEIRA, M. G. M. de. Um toque de

clássicos. Belo Horizonte: UFMG, 2002.


Autor: Felipe Augusto Rocha Santos


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