As “crises” contemporâneas como pressupostos de uma crise verdadeira: insegurança internacional e violação de Direitos Humanos



Falar em crise mundial, no cenário em que vivemos hoje, exige cautela. Até a mais benevolente das tentativas de correlacionar crise com questões de violação de direitos e insegurança global pode esbarrar em uma questão preliminar e pertinente: o que devemos compreender como “crise”?

A partir dessa indagação, tornar-se-ia comum o uso das aspas. Para respondê-la, poderíamos remeter ao ideário de Marilena Chauí em “O que é ideologia”. A autora aduz que, na perspectiva marxista, a ideologia – em linhas gerais – representa um véu de encobrimento da realidade, um discurso criado para enegrecer e entorpecer o pensamento coletivo. Tornam-se verdades absolutas e irrefutáveis as verdades próprias de determinados grupos. A partir desse prisma, não seria absurdo dizermos que o próprio conceito de crise é, sim, ideológico.

As “crises” circundam nossa rotina, proliferam-se nos noticiários e causam constantes e renovadas celeumas sociais. A crise econômica é, talvez, o mais axiomático exemplo: diz-se “crise” apenas no momento em que se desnudam os problemas do capitalismo financeiro. Elas aparecem como parte integrante de uma retórica que reflete o desespero do grande círculo empresarial e sugere que tudo antes estava na mais plena calmaria. De certo, nunca esteve.

Em face desse cenário, é curiosíssimo ver como essas “crises” declaradas são inigualavelmente impactantes.  Isto é, as verdadeiras crises sempre assolaram o mundo; os Direitos Humanos sempre foram pisoteados; a intolerância e a apetência pela barbárie só se exacerbaram e a igualdade e o respeito só diminuíram. Ora, mas isso praticamente não é divulgado. O mundo só se agita quando mídia, políticos e classes altas convergem acerca de um medo – que geralmente lhes é próprio e se aproxima do receio de mudança da ordem constituída. Um ótimo exemplo que flagra os dias atuais é o sinal de colapso do neoliberalismo. Ele mesmo, que há pouco surgiu como o paladino do capitalismo, dá sinais de padecimento. Os governos saem de sua inércia e injetam bilhões em seus bancos. Mas, acalmem-se, esperançosos, o altruísmo governista acaba por aí, não se estende a áreas sociais.

Assim, medidas “emergenciais” são tomadas, a “segurança” é incrementada, os bancos recebem vultosas quantias para serem salvos de sua falência... a insegurança é geral. Todos são massacrados pelo medo, pela idéia imposta de que estamos diante de uma crise sem precedentes. Uma queda percentual na bolsa recai como um míssil sobre o pensamento da população e é encarada como grande tragédia (ainda que a grande maioria sequer saiba o que ela representa). Aqui, mais uma vez, escancara-se a questão ideológica exposta por Marilena Chauí. Uma verdade própria e conveniente de alguns poucos é disseminada e aceita como própria de toda uma coletividade. “Fechemos nossos olhos para todo o resto, a Wall Street está em queda livre!”. Sim, é mais ou menos assim, excluindo o sutil fato de que essas verdades são impostas de maneira velada, suave, beirando o imperceptível.

Nesse plano, poderíamos resgatar aquele fato que foi disseminado como a mais cruel das atrocidades cometidas contra a vida humana. 11 de setembro de 2001, o atentado às torres do World Trade Center. Sem dúvida, trata-se de um evento catastrófico, em que milhares de vidas foram perdidas, direta ou indiretamente. O que se refuta, no entanto, é a maneira como, a partir dessa tragédia, foi-nos imposta a idéia de um inimigo absoluto e perigoso: o mundo deveria convergir para a eliminação dos algozes da liberdade norte-americana. No entanto, curiosamente, a própria nação da “Mighty Eagle” daria início a uma gigantesca restrição às liberdades humanas. A pátria mais poderosa da Terra fora ferida de morte e a resposta deveria ser proporcional – ou maior.

 Em face disso, convém-nos vislumbrar a maneira perspicaz – e ideológica – como os norte-americanos convenceram grande parte do mundo a se unir ao seu ideal heróico, de contra-ataque aos agressores da humanidade, ainda que isso implicasse a violação de direitos de tantos outros inocentes. A resposta ao 11 de setembro seria, pois, baseada no argumento da força, não na força do argumento. E o mundo compactuou com essa idéia.
Os EUA, os mesmos de Hiroshima e Nagasaki e do Vietnã, mostrando-se verdadeiros especialistas na arte belicista, decidem promover uma caçada infrene a todos aqueles considerados como ameaças a sua ordem. Evidentemente, as consequências foram sentidas primeiramente pela população, que viu sua vida se tornar um retrato próximo do que Orwell delineou em 1984. Não só a população ianque, mas a de todo o mundo, viu-se imersa em um mar de insegurança. Os EUA lançaram mão de todas as medidas possíveis para impedir novas investidas do “inimigo”. A CIA, o FBI, bem como tantas outras instâncias representativas do poder norte-americano, passaram a ter controle ainda mais absoluto sobre a vida dos cidadãos, numa vigília intensa e legitimada pelo governo. Mas, de acordo com seu ornamentado discurso, eles não estavam ameaçando a liberdade ou a privacidade da sociedade; a todo o momento, reiterava-se a justificativa de que se tratava de plena questão de segurança nacional.
Em face do exposto, não estamos questionando as medidas emergenciais para conter novos ataques, mas, sim, a retórica adotada pelos EUA para promover uma ação beligerante totalmente contraproducente. Vejamos: dizia-se ser  necessário combater a ameaça terrorista, quando, na verdade, estava-se dando início a uma empreitada que só aumentaria nos países atacados o ímpeto de uma futura represália e o sentimento anti-americano. E sequer mencionamos, ainda, que esse discurso heróico contra o “monstro terrorista” escondia uma das verdades mais inexoráveis da guerra: inocentes perderiam suas vidas, dos dois lados.

Fica mais que evidente que a insegurança que passou a permear o mundo desde o fatídico 11 de setembro não se esvaeceu. Pelo contrário, ela aumentou. A guerra no Iraque, por exemplo, mascarada pelo ideal de “restaurar a segurança global”, evidenciou um efeito assustadoramente contrário. O conflito acendeu no povo do oriente uma ojeriza profunda aos norte-americanos e reinstalou violentas disputas internas pelo poder (poder simbólico, diga-se de passagem, uma vez que os EUA ainda mantiveram armas e controle fincados em território iraquiano). Enquanto isso, a aventura da águia americana pelo Iraque perdura por anos e, ao longo deles, milhares de soldados foram recrutados sob o mais florido e nacionalista dos discursos, convenientemente moldados para ocultar os reais motivos daquela conveniente empreitada.

De fato, todo esse discurso de combate à ameaça terrorista concedeu um efeito legitimador às ações dos EUA. Somada à sua política imperialista e unilateral, os entraves ao início da guerra foram facilmente transpostos. A crescente “crise” na segurança global, alegada por Bush e por seus partidários, serviu como ótimo substrato para a invasão.

Com o unilateralismo e o apetite voraz pelas guerras, os EUA e as nações que compactuaram com suas ações passaram, ainda, a dar anuência a um poder exagerado de seus exércitos. As próprias políticas crescentemente expansionistas favoreceram a atuação dos militares e, por conseguinte, propiciaram o avanço de práticas repugnantes, tais qual o uso corriqueiro de tortura contra os prisioneiros iraquianos.  Porém, ainda mais chocante foi a infrene violação a direitos de pessoas que não tinham qualquer envolvimento com a guerra. Enquanto ao redor das nações mais ricas se disseminava a justificativa de promoção de uma efetiva segurança global, crianças iraquianas eram mutiladas pela carnificina da guerra. Não nos cabe aqui entrar em números, que, por sinal, são assustadores.

Nesse momento, poderia surgir a velha indagação: onde estaria a atuação da ONU? No atual cenário de militarização e políticas fortemente unilaterais, a ONU perde cada vez mais sua legitimidade. Ora, só pelo fato de a assembléia geral da entidade ser composta por membros do governo dos Estados, e não pela voz de seus povos, o questionamento anterior já perde sua força. Não à toa, a Declaração Universal dos Direitos Humanos vai padecendo ante os imperativos belicosos e imperialistas que deturpam a condição humana. Nem restam dúvidas de que essa negligência aos Direitos Humanos contribui sumariamente para a insegurança geral.

Fica-nos claro que, a despeito de uma ordem mundial baseada no “multilateralismo” e no respeito aos Direitos Humanos, estamos vislumbrando a expansão dos sustentáculos da influência estadunidense sobre todo o mundo. A insegurança que surge a partir das sugestões de “crise” aumenta, contraditoriamente, em decorrência das próprias propostas de solução dessas “crises”. Como efeito, verdadeiras crises de desrespeito e intolerância generalizadas se proliferam por todos os cantos, das mais ricas às mais pobres nações. As respostas concedidas por intermédio do argumento da força recrudescem o ódio e o sentimento de vingança, transformando todo o mundo em um grande barril de pólvora.

Paulatinamente, o discurso ideológico sustentado por tantos anos pelos Estados Unidos começa a revelar suas verdades ocultas, desnudando uma potência movida pela lógica da guerra e por um ímpeto imperialista cada vez mais ávido. Porém, a despeito de tendências reveladoras, o que ainda prepondera é um cenário de violência infrene, de ataques sanguinários desmedidos, cujas armas milionárias fazem pouco uso de seu recurso de mira. O que importa é o potencial destrutivo; a delimitação do alvo é secundária. Vivemos um momento em que essa realidade é comemorada, em que esses grandes ataques são festejados pela humanidade. Afinal, é um “mal necessário”, é a “empreitada norte-americana contra o terror e pela paz”. A humanidade crê nesse discurso e confia nas ordens que emanam de dentro da barbárie da guerra.

Diante de todas essas dolorosas constatações, faz-se mister, ainda, salientar que o sentimento de insegurança não decorre tão só das ações beligerantes dos EUA. A violência, a intolerância e a violação constante dos Direitos Humanos nascem do seio de esferas menores, nas relações individuais e familiares. Não só de guerras entre nações vive a insegurança; ela e o desrespeito à vida também têm como nascente os mais diversificados planos. Seja no âmbito religioso, étnico ou econômico, a humanidade padece diante se sua própria afeição à selvajaria.

Uma conclusão mínima que podemos tirar de todo esse contexto, é que grandes resultados começam com mínimos esforços. A começar, a retirada do véu ideológico que encobre a realidade das guerras já revelaria à humanidade que elas não trazem vencedores, só perdedores. As “crises” utilizadas para legitimar essas atitudes repulsivas só aumentam a insegurança e ocultam as verdadeiras crises do respeito e da observância aos Direitos Humanos. O que se deve ter como objetivo precípuo é a sugestão de Bobbio, quando diz que a paz não deve ser vista como um período entre guerras, mas como um momento em que as guerras não mais serão uma alternativa – uma paz perpétua, em harmonia com Kant. A realização desse objetivo passa pela noção de que, quando uns poucos, com suas vozes tímidas, unem-se a outros sedentos pela verdadeira consecução da pax humana, suas vozes se tornam mais imponentes e aptas a vociferar contra as chagas da humanidade.

Autor: Felipe Augusto Rocha Santos


Artigos Relacionados


Sobre A Crise

Da Sensação Do Místico

O Discurso / Mídia / Governo

Qual é Mesmo A Abreviatura De “mestre”?

Saiba Mais Sobre O Livro “sinais De Esperança”

Três Nomes Que Carecem De Oficialização

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri