Fotografias de estante



- Vê, meu querido, esta aqui. Tantas são as lembranças que me traz! – comentava ela, apontando a fotografia em questão para direcionar meu olhar atento.

Era Tia. Única irmã de algum dos meus pais – não me recordo bem qual deles. Como dizia minha mãe, em tempos de guerra não se pergunta a origem dos aliados. Bastava-me saber que Tia significou ajuda durante o trânsito de dificuldades que tivemos de enfrentar.

Requisito atenção ao “durante”, pois Tia era adepta à filantropia. A todo o momento noticiava, quantitativamente, o tamanho de sua ajuda aos outros; por exemplo, quanto dinheiro havia saído de sua mão para dar brinquedos a algumas crianças que, pobrezinhas, ao menos tiveram alegria naquele momento. Em outras palavras, ela se considerava a personificação da nobreza de espírito e atitudes. Problema havia no fato de que, fosse um inseto ou uma pessoa, seu sentimento de piedade era o mesmo. Nós também fomos seus insetos por um tempo.

Estranho mundo onde a inclusão de um algarismo nulo faz a bonança novamente dissolver-se na tempestade. Foi assim que, por decisão superior, certo dia ao preço do aluguel de nossa casa foi acrescentado um zero à direita.

Analogias são belas, e ainda as usarei muito, mas podem ser bastante irreais. O que aconteceu com os números, neste caso, foi análogo apenas em metade à nossa situação. Todas as reclamações que ousamos proferir foram igualadas a zero. Mas valor nenhum foi acrescentado a coisa alguma por causa disso. Os contra argumentos do dono também nada valiam, principalmente no quesito veracidade. E, no entanto, o zero dele tinha tanto poder quanto desejasse. Eis um bom exemplo de como as ciências exatas podem ser essencialmente parciais.

Verdade era que este homem, que mais cobrava aceitação de pretextos do que dinheiro, arranjou quem alugasse o terreno por uma quantia ainda maior do que a cobrada pós-ajuste. O único inconveniente eram alguns indivíduos que ali compuseram seu lar – um casal com um filho, parecia-lhe. Não, não era nenhum problema, o senhor comprador podia permanecer tranqüilo. Proprietário de renome sabe lidar com esse tipo de investimento.

A ironia do zero nos esmagou. Deixamos a casa para trás. Ou talvez fora a casa que nos expulsou pela porta da frente, antes de ter metade de sua estrutura derrubada, ampliada e reerguida. A reforma drástica retirou nossos resquícios de vida, antes impregnados por todas as paredes, chão e teto. As paredes... Creio que desmoronaram rápido. Sentimentalismo demais, dizem, enfraquece as mais fortes estruturas. Assim morreu nosso lar.

E nós, meros desabrigados de conveniência, procuramos amparo na casa de Tia. Casa provisória, decerto, e havia um acordo sutil em meio a tudo. Ela nos dava moradia, e nós éramos os necessitados a quem a sua consciência assistia e suspirava tranqüila e ciente de sua própria bondade.

Naquele momento ela me mostrava um álbum de fotografias antigas. Estávamos ambos sentados em minha cama provisória, e isso era suficiente para que pudéssemos dissecar memórias confortavelmente.

Eram lembranças anteriores ao meu nascimento, mas que facilmente tornaram-se minhas posses. Todas eram retratos de pessoas jamais por mim vistas. O que mais me fascinava era o fato de a eternidade poder estar estampada em formas quadrangulares.

Posso dizer, no entanto, que essa eternidade é um bocado seletiva. Primeiro pois fotografias não se geram espontaneamente. Segundo porque, vez ou outra, Tia aumentava a velocidade do folhear as páginas do álbum, alegando que algumas páginas continham fotos que em nada me interessariam. Se ela não queria que eu as visse ou se ela mesma temia que as imagens lhe sussurrassem o passado, isso não posso assegurar. Talvez seja mais adequado afirmar ambos os motivos. Talvez não.

O maior medo de Tia era que suas lembranças indesejáveis arrumassem moradia em mentes de outros corpos. Ela sempre se vangloriava por sua enorme capacidade de ordenar as obscuridades transitórias de sua própria cabeça; era capaz de deixar as boas frações de seu passado sempre expostas e com fácil acesso, como se na estante das reflexões ela conseguisse mover suas estatuetas preferidas – da prateleira do pretérito para a prateleira do presente. E lá elas ficam, até que, por questões de estética interior, Tia resolvia redefinir o lugar de algumas memórias. Mas em estante alheia não é possível tocar diretamente. Sendo assim, melhor seria se ela não me desse nenhuma cópia de estatuetas escondidas para serem depositadas nas minhas prateleiras. Sabe-se lá onde eu iria colocá-las.

Apesar da seleção prévia, apreciar as fotografias aprovadas continuava sendo uma magnífica experiência.

- Cuidado com onde coloca a mão! – alertava ela, enquanto afastava meus dedos das velhas páginas – não percebe que o encostar de sua curiosidade provoca manchas eternas de efemeridade? Apenas observe, menino. Para isso bastam os olhos.

As imagens não nos apetecem com o contato físico, e sim com o visual. Não poderia um cego reviver o vivido com um álbum de fotografias, por mais que ainda lhe restasse outros sentidos senão a visão. Tudo o que poderia sentir é a fria e lisa textura do papel fotográfico. E sobre este ficaria a mácula das digitais. Sujeira das mãos de outrem sobre o que havia de menos passageiro na vida de Tia: seria como se sua própria alma fosse apalpada e marcada por mãos intrometidas.

- Consegue perceber? – continua em tom de suspiro – O mundo antes era assim, amarelo, fosco e às vezes desfocado, exatamente como nessas fotografias. As pessoas não sorriam, porque tudo era demorado e melancólico. Se você quisesse uma foto dessas, tinha que congelar o próprio corpo na posição durante um, dois, vários minutos. E não há sorriso que agüente o passar do tempo. Estão sérias, essas pessoas. Seriedade antes era atitude nobre, glorificada. Era de praxe aprender a ser velho logo no berço, como se pudéssemos rejuvenescer com o passar do tempo – tão sonhada, a juventude!

“Não, não faça essa cara, como se adivinhasse o que irei dizer, e pior, como se discordasse. Na morte é que a gente nasce, renasce, vive. Imagine só, poder finalmente ter aquela liberdade prometida somente aos que não tem mais destino! Mas, bem, talvez você ainda seja velho demais para compreender. Um dia você aprende que o passar do tempo não é ruim só porque ele cansa sorrisos. Ele nos dá é a falsa esperança de um dia sermos capazes de mantê-los. A vida é assim, cínica, de poucas palavras. E, folgada, ela espera que você a interprete e seja por ela enganado.”

“Sendo assim, melhor é recorrer a essas fotografias. Ao menos são retratos fiéis de um segundo do tempo. Não mentem, e de tão sinceras fazem recordar o que não se espera ou se quer. Amo-as, mas malditas sejam pela maldade”.

As estatuetas de Tia estavam empoeiradas. Há muito não são limpas, restauradas, reorganizadas. A ela agradava a organização atual da estante. E as fotografias aos poucos se assimilavam a essas lembranças. Sujas, de tão intocadas, elas passavam mesmo a impressão de que a poeira sempre estivera ali.

- Veja só, é a foto que eu procurava! Lembra-se desse dia? Foi quando tivemos nosso primeiro jantar juntos, aqui em minha casa, depois de me dispor a ajudar você e seus pais, meu querido. Olha como você está bonito!

- Mas... Tia, nós nunca tiramos fotos juntos, aqui.

Que sabem, afinal, os insetos? Percebi que memórias constam apenas em registros e mentes. Tia fechou ambos e nunca mais tocou em sua estante.


Autor: Mariana Fujisawa


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