Mistério em Veneza



 

250        -  MISTÉRIO   EM   VENEZA

 

 

Veneza não é a mesma cidade, nestes meses de inverno.

É triste, silenciosa; não que pareça morta, mas está adormecida, em um estado de letargia.

Os pombos agitados e famintos,  que alegram a praça de São Marcos nos  meses do verão, ficam agora ariscos e encolhidos, parecendo pequenas bolas de algodão sujo, sob os telhados antigos, tentando resistir ao vento frio e à fome -  porque agora ninguém se lembra deles.

Os turistas sumiram completamente – como sempre. 

Mesmo os mais românticos e apaixonados acabam sucumbindo ao chamado de uma boa lareira e ficam durante dias encorujados nos quartos dos hotéis.

Lá folheiam guias e consultam mapas, onde aprendem pormenores sobre a cidade, que nunca descobririam passeando por ela.

O pessoal que faz serviços eventuais nos hotéis e restaurantes, volta para casa  antes do inverno: são garçons, camareiros, arrumadeiras, guias....

A cidade fica vazia, nua, transformada no esqueleto de uma festa que acabou e que demorará alguns meses para retornar. 

 

Os gondoleiros, não.

Ficam lá, fiéis aos seus barcos, repintando-os, enfeitando-os, consertando as marcas deixadas pelos  turistas – e pelos  choques inevitáveis com outros barcos, no tumultuado tráfego do verão.

Há poucos passageiros, nessa estação; às vezes demora dez minutos, antes que se junte meia dúzia de pessoas, apressadas e friorentas, que precisam  atravessar o canal.

Em compensação, como há poucas lanchas a motor, sofre-se menos com as marolas.  De fato, quando passa uma lancha, as gôndolas se desgovernam, tendo que pular três, quatro ondas, antes de voltarem ao seu ritmo.

É praxe, nestas ocasiões, que os gondoleiros levantem a voz, soltando epítetos irrepetíveis; faz parte da cor, do folclore local, do encanto único desta cidade.

E como quase não há ruídos, os palavrões no inverno adquirem uma força, um  significado único.

 

 

Bem, chegou o momento de apresentar-lhes meus heróis:

 

Bepi, um rapaz alto, musculoso, bem humorado, pele curtida ao sol e vento, olhos azul claro, caráter decidido e orgulhoso.

É um típico “veneziano”  por origem e língua; por paixão e profissão: um “gondoleiro”,  aquele remador solitário, equilibrado de pé  na popa do seu instável barquinho, enquanto cruza o Canal Grande.

 

A segunda figura é  a sua amada Marieta, fiel companheira de todas as horas,  ágil e obediente ao seu comando, mas também preguiçosa e dorminhoca, quando parada num “rio” sem trânsito; preta, brilhante de ponta a ponta, dez metros de comprimento, 380 quilos; é uma barca original, tradicional,  desengonçada:  uma gôndola.  

 

A terceira figura deste triângulo chama-se Marieta, também; por brincadeira, tem o apelido de Marieta Dois; é  a namorada loirinha , bonita e sensual, que todos adoram; mas ela só tem olhos para o Bepi, o homem dos seus sonhos, com quem casaria já, se ele quisesse, se eles pudessem, se as famílias,  dela e dele,  não se opusessem.

Como diz a canção, que Bepi canta quando está remando:

“os meus não querem, os dela também não... ”

Que fazer?

 

Esta Marieta Dois é uma revolução.  Apesar do frio e da umidade, ela vive agitada, inventando modas; quer a todo o custo encontrar uma maneira de levar o Bepi ao altar, antes que o inverno acabe.

Mas Bepi não  tem dinheiro; ainda deve a taxa do sindicato e umas prestações do barco; e é um rapaz sério, incapaz de dar um pulo no escuro.

Enquanto não tiver o mínimo indispensável, nada de casamento.

Não vai querer morar debaixo de uma ponte.

 

 

Entre tantos turistas que transportou no último verão, havia um árabe, de meia idade, com óculos de lentes grossas, cercadas por um fino aro preto.

Parecia um estudioso, um filósofo.

Ficou observando o Bepi por um tempo, admirado, surpreso; por fim, sugeriu-lhe  que fosse até a Igreja de Santa Agnese, em Dorsoduro, um bairro bem próximo.

Segundo o turista, seu rosto era cópia fiel de uma figura pintada no quadro: mesmo rosto, mesma idade, mesmo olhos, mesma expressão.

A lembrança dessa recomendação, perseguiu Bepi até que, neste dia traquilo, decidiu satisfazer sua curiosidade.

Desamarrou o barco e, tendo a Marieta como única passageira, afastou-se com alguns rápidos e decididos golpes de remo. 

Chegaram em poucos minutos à Igreja e procuraram o quadro. Mas a Igreja tinha sido reformada e o quadro não se encontrava mais lá.

Apenas um velho frade os recebeu, confirmando a semelhança.

Tendo convivido com a imagem por tantos anos, acabara gravando-a memória. Mostrou ainda uma grande fotografia antiga, em preto e branco, que revelava muitos pormenores.

 

O quadro retratava Sua Serenidade o Doge Domenico Contarmi, ao assumir o mais alto cargo político de Veneza, em 1659.

Seguindo uma longa tradição, os 41 eleitores do conselho supremo deviam beija-lo nas faces, em sinal de submissão, como parte da cerimônia que o coroava.

Embora fossem representantes do poder da Sereníssima, eram um bando de pescadores incultos, sujos e malcheirosos.

O rosto do Doge, um nobre desdenhoso,  refletia bem a sua repulsa.

Pior que tudo, muitos deles eram traidores, prontos para fazer desaparecer quem se opusesse à vontade deles. Alguns com certeza já estariam conspirando contra o novo Doge.

A política interna de Veneza, durante vários séculos, foi marcada pelos choques contínuos e cruéis entre os poderosos.  Ninguém mandava realmente na Sereníssima; e o jogo do poder envolvia centenas de cidadãos.

Começava-se a ouvir algo a respeito de algum importantão; sussurros apenas, comentários sobre má administração, comércio , tráfico, enriquecimento ilícito; aos poucos eles cresciam tanto, que não se poderia ignorá-las; viravam denúncias, investigações secretas, processos sigilosos e no fim, condenações rigorosas.

Não haveria defesa possível.

Se tivesse sorte, o corpo do réu apareceria na Laguna, esfaqueado por desconhecidos desordeiros.

Se não, o condenado seria retirado da Sala secreta do julgamento, no suntuoso palácio ducal e atravessaria a Ponte dos Suspiros, para nunca mais voltar. 

As prisões, do outro lado da Ponte, eram pequenos cubículos, no andar superior,  tão baixos que neles não se podia ficar de pé; o teto, feito de chapas de chumbo,tornava  o calor insuportável. O condenado, culpado ou não, encontrava uma morte lenta e cruel.

Por isso, os venezianos não gostam tanto quanto os turistas, da Ponte dos Suspiros. Não conseguem associá-la aos namorados.

Aqueles suspiros tinham razões bem diferentes.

 

Naquele quadro, além do sósia do Bepi, havia outras figuras significativas; eram três nobres,  envolvidos numa daquelas tramas.

Eles preferiram não contratar um assassino profissional – fácil, prático e barato, naqueles tempos, em Veneza, mas executá-lo pessoalmente 

E quem era este “sósia” do Bepi? Apenas um próspero, mas não rico, negociante de tecidos.

Era justamente esta prosperidade, esta tranquilidade econômica, que fazia dele o alvo ideal para uma cilada.

Ele foi colhido de surpresa, à traição, na madrugada de 4 de dezembro de 1660; levou três punhaladas e morreu antes de receber qualquer socorro.

Única pista, três rosas brancas, que só agüentaram dois dias e murcharam.

Aconteceu no Campiello Bárbaro, uma pracinha agradável, onde as pessoas conviveram ao longo dos séculos, trocando idéias, exercendo suas atividades.

E onde, 340 anos depois, a gôndola do Bepi ficava amarrada, sob a ponte, à espera de passageiros, que em qualquer outro lugar tomariam um táxi.   

A partir do momento em que pôs os olhos naquele quadro, a mente do gondoleiro não conseguiu descansar.

-“Estou preocupada com você, Bepi, “- dizia suavemente Marieta, tentando encontrar a razão de suas atitudes estranhas – O que está acontecendo?”

- “ Nada!” respondia Bepi –“ Quer dizer...tudo! Oh Marieta, ajude-me, tenho um problemão a resolver, eu sei, eu percebo.  Mas não sei que problema é! Está ligado àquele quadro, preciso resolver, preciso fazer alguma coisa, senão vou ficar louco!”

- “Parece que já está louco, meu amor! Louco varrido! Venha, vamos sentar no barco, e você me conta tudo!.

Marieta saltou elegante para a gôndola e levantou a cortina da “felze” entrando num pequeno ambiente muito aconchegante.

A “felze” é a cobertura da parte central da gôndola; é usada no inverno, para proteger os passageiros do frio e, às vezes, no verão, para dar privacidade a algum  parzinho apaixonado.

Marieta e Bepi  acomodaram-se  no assento estofado, puxaram um cobertor a continuaram a conversar.

-“ Então, o que é todo este mistério? O que há? Você não me ama mais?”

Os olhos do rapaz diziam que não, mas traiam uma grande desconforto.

Ele não estava bem; alguma coisa grave estava acontecendo.

-“ Não, não! Não é nada disso, Marieta – Você sabe que eu a amo,  quero fazê-la feliz, quero passar a vida toda ao seu lado...menos quando estou remando...”

-“ Que é durante o dia inteiro, por sinal! Que mal eu fiz, para me apaixonar  por um gondoleiro? São todos malucos, não se salva um!...”

O queixume insólito teve o dom de  provocar um sorriso do rapaz  e quebrou o gelo.

-“ Desde que vi o quadro, parece que estou enlouquecendo, Marieta!. Aquele rapaz parecido comigo quer me dizer alguma coisa, mas não consigo entender; não consigo acreditar! Acho que estou ficando louco!

-“ Já sei! “ atalhou Marieta “tudo está pressionando você: o frio, as dívidas, eu mesma, os turistas loucos..... você precisa de umas boas horas de descanso! Vou preparar um chá bem forte, você toma uma aspirina e se enfia na cama já, já. Amanhã vai estar em ordem de novo!”

Bepi não teve como recusar. Foi para casa, tomou a bebida quente – que caiu muito bem – deitou e dormiu.

Eram quatro horas da tarde. 

Até as oito, Bepi dormiu calmamente, recuperando-se.

A partir daí, porém, parecia – se alguém pudesse vê-lo – um cabrito doido.

Pulava e se virava na cama, falava e se agitava.

Este rebuliço durou mais de uma hora; em seguida acalmou-se estranhamente e entrou “em alfa”, passando logo para a sub consciência.

As horas passaram depressa; acordou sem esforço algum, novinho em folha, como Marieta dissera. Eram sete horas da manhã.

Logo viu um papel no chão.

Ele normalmente anotava os assuntos suspensos, antes de dormir, para resolvê-los de manhã.

Mas este papel era estranho: tinha apenas três palavras, escritas com letra incerta, por uma criança talvez, seguramente não  por ele; eram três nomes de famílias vênetas: Forlani, Zavattini, Contin .

Então lembrou-se de todos os pormenores de seu sonho e saiu correndo a procurar Marieta.

Sentaram-se novamente na gôndola, o frio roendo os pés e o nariz de ambos; Bepi estava agitadíssimo, como se acabasse de ter uma visão.

-“ O que? Assassinato? Vingança? Perdão?  De que está falando, meu amor? Não estou entendendo nada! Meu Deus será que havia alguma coisa errada com aquele chá?...”

“Não, Marieta! Presta atenção: Eu SOU aquele cavaleiro da quadro. É por isso que sou tão parecido com ele.  Ele pediu-me um grande favor. E prometi  cumpri-lo. Agora, ajude-me a localizar as  pessoas que têm estes três nomes....”

-“ Mas são nomes comuns! Haverá centenas de famílias com estes sobrenomes, em Veneza ! Vai ser uma procura insana, inútil! E depois, mesmo que você encontre um, o que vai dizer:

-“ Sabe, eu sou aquele cavaleiro que vocês conheceram, no quadro da igreja.....”

- “ Não brinque com isso, Marieta! Este é um assunto sério! Eu FUI assassinado, por estes três cavaleiros...ou melhor, por três pessoas que viveram, como eu, em meados de 1600 e que me mataram....quero dizer...o  mataram!!!.

-“ A história toda é muito maluca, Bepi. Vamos procurar um médico!”

-“ Não! Eu sei perfeitamente o recado que devo transmitir. Você só me ajude a encontrar onde estão. O resto é comigo!  Então, quer me ajudar?”

O ar dele era tão peremptório, o tom tão decidido, que Marieta logo se rendeu.

Foram ao posto telefônico, procuraram por mais de uma hora, e no fim descobriram: três pessoas com aqueles sobrenomes, sem dúvida ligadas umas às outras:

            “Forlani, Zavattini, Contin – Transportes Rápidos,  Limitada”

O casal navegou até o local. Entraram num edifício antigo, reformado e modernizado. O elevador levou-os ao terceiro andar.

Uma secretária quis saber a razão e os detalhes  da visita, mas Bepi não tinha como explicar. Poderia dizer:

- “Venho de 1660 e quero saber se são vocês que me mataram aqui perto, no Campiello.....alguns anos atrás...” 

Ou então:

“Vocês não me conhecem, mas sou aquele rapaz que foi esfaqueado por vocês três, há trezentos e tantos anos....”

Não. A aproximação deveria ser muito mais “light”.

Devia evitar de qualquer maneira assustá-los, pois poderia por tudo a perder. Mas, tudo o que?...”

Quando foi recebido, depois de muita demora,  sentou-se, suspirou e começou a repetir mecanicamente uma ladinha monótona:. 

“Meu nome é Bepi Dal Prá  - Bepi Dal Prá – Dal Prá – Dal Prá - Dal Prá .....

Por fim, perguntou: “Este nome lembra-lhes alguma coisa?” 

Enquanto isso, observava as reações dos três; espiava se estariam procurando botões de campainha ou de alarme...

Esperava, francamente, que não conseguissem avisar ninguém, nem pedir ajuda para leva-lo a um manicômio.

 

Não aconteceu nada disso. Os três pálidos, assustados, olhavam para ele e para a Marieta, incapazes de pronunciar uma sílaba.

Por fim, com uma voz tremida, um deles perguntou:

- “Mas como souberam que estávamos tentando......”

O segundo logo retrucou:

- “É impossível!  Nada aconteceu – até agora!”

Romano Dazzi


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