Interpretando o amor



255 - INTERPRETANDO O AMOR

 

- Não, menina, você não tem a mínima idéia do que seja amor, do que esta palavra mágica realmente significa!

- Mas Papai!...

- Você nem bem saiu das fraldas, ainda... e já quer falar de amor!...

- Mas Papai!...

Vendo que a conversa com minha filha estava tomando o rumo de uma desagradável discussão, resolvi amainar as velas, voltando ao início.

Ela só tem quinze anos e está apenas começando a soltar as amarras.

- O que quero dizer, é que hoje em dia só se fala em amor. Todos usam e abusam desta palavra . Quer saber? Vamos fazer um jogo. Eu vou falar de gente, de animais, de objetos e você me diz se as ama ou não; de acordo?

- Como assim, Papai?

- Por exemplo, vou dizer a palavra “Papai”  e você me diz se o ama ou não, está bem?

- Ok, mas não acho graça nenhuma, viu?

- Mamãe

- Amo!

- Pizza

- Amo!

- Ama? Pizza e Mamãe? Ama do mesmo jeito?

- Não, Papai; claro que não!

- Mas você disse que as ama – e disse do mesmo jeito...

- Ah, você está me confundindo!

- Não. Eu só quero que você veja que há diferentes formas de amar, de gostar, de apreciar, de se apaixonar, de simpatizar....

- Eu sei, eu sei que não é a mesma coisa!

- Você acha que sabe, mas como não tem prática, pode enganar-se facilmente. Acha que ama, e na verdade, sente apenas simpatia...

- Tem razão, Pai; e eu tenho culpa se existem muitos meninos simpáticos no mundo? E depois, não era disso que estávamos falando...

- Bem esta não valeu. Vamos continuar.

-  Mas não vale trapacear!

- Mas eu não trapaceei. Só falei uns nomes. Você é que disse....

- Está bem, está perdoado, por esta vez. Vamos adiante.

- Escola

- Odeio!

- Férias

- Amo!

- Bicicleta

- Amo! Mas só em dias de sol! Quando chove, odeio!

- Videogames

- Amo!

- Teu irmão

- Odeio!

- Puxa! Tem uma guerra aqui dentro de casa e eu nem sabia!

- Bem, não é guerra, mas também não é fácil suportá-lo!

- Teu amiguinho Felipe

- Amo! Amo de paixão, pai! E não é meu amiguinho; é meu namorado!

- Puxa! Já estamos indo longe assim, é? E quando é o casório?

- Por mim, até hoje mesmo! Estou louca por ele! Amo-o demais!

Achei que a brincadeira estava indo longe, afastando-se das minhas intenções  e resolvi mudar as regras.

- Bem filha. Até agora você dividiu tudo o que perguntei em duas categorias: as coisas que ama e as que odeia. Certo?

- Sim, pai, mas tem outras coisas que eu nem amo nem odeio. São indiferentes.

- Por exemplo?

- Por exemplo o cachorro do vizinho, o Bobby. Por mim, não ligo mesmo. E a moto do primo Alberto. Ele sempre me convida, mas não tenho vontade. Não me dá gosto.

- Fico contente com isso. Contente e aliviado. Um perigo a menos.

- E depois, tem os professores. Podiam mudar todos, que não sentiria falta.

- Bem; então, até agora temos três categorias: o que você ama, o que odeia e o que não faz diferença nenhuma. Ok?

- Ok.

- E isto inclui gente, bichos, comidas, lugares, circunstâncias...

- O que são circunstâncias, Pai?

- São acontecimentos: como ir a um cinema, a um parque de diversões, a uma festa...

- Entendi.

- Agora, vamos “quantificar” . Quanto você gosta, ou quanto odeia. Entre dez pontos e cem .   Pronta?

- Pronta , pai!

- Papai:

- Gosto cem! Disparado!

- Aduladora!

- Como?

- Eu disse “ aduladora” – em palavras pobres, “puxa saco” – sem hífen, agora.

  Vamos adiante: Mamãe:

- Depende. Às vezes  gosto cem, às vezes odeio cem. Em geral gosto cinqüenta.

- Não a deixe saber disso, filha.  Mas por quê? Pode me explicar?

- Sim, pai: ela é ótima quando me dá carinho, me compra coisas, me faz comidinhas boas, vem me dar a boa noite; coisas assim, você sabe, não é?

- E quando não é?

- Quando briga, quando resmunga porque uso roupas muito apertadas – mas está na moda, não é? – quando me tira à força da cama para ir à escola, quando junta no chão, no meio do quarto, todas as roupas que eu deixei pela casa. Odeio, odeio mesmo, quando ela faz isso!

- Acha injusto?

- Injusto e errado. Isso prova que é ela que me odeia.

- O que ela deveria fazer?

- Ah, dar um pouco de atenção, arrumar.... passar a ferro, sei lá... colocar em ordem no armário...

- Mas não pode interferir, não é?

- O que é “interferir”?

- É meter-se num assunto em que não se é chamado, enfiar-se no meio,  obrigar os outros a fazer o que não querem.

- É isso mesmo, pai!

- Então, em lugar da Mamãe, seria melhor ter um robô, uma máquina de arrumação. Você passa pela casa, veste as roupas, troca-se, despe-as, larga-as onde caírem, e a máquina escolhe se tem que lavá-las ou passá-las, ou repô-las no armário. Sem reclamar, sem  gritar, sem amontoar nada no meio do quarto...

- Boa, pai! Você acaba de inventar a máquina ideal para adolescentes,  quase-adultos, necessitados mais de assistência técnica, do que de broncas...

- E depois, na cozinha, colocamos uma máquina de fazer as comidas. Gritamos: macarrão! E ela tira do armário o pacote de espagueti, põe a água para ferver, o sal, os pratos na mesa, enfim, o circuito completo. Depois do almoço, a gente grita:- “Arrumar a cozinha!” e o robô joga fora o que sobrou (não há coisa pior que comer sobras do almoço no jantar) lava a louça, enxuga, guarda no armário, espana, passa a vassoura e apaga a luz. Que tal?

- Bom também este, papai. Mas o melhor é o da roupa...

- E depois, tem uma terceira maquininha; a que vem esticar os cobertores,  verificar se você está bem, se não está com febre -  trazer um copo de água;  te olhar com carinho e te desejar a boa noite, antes de apagar a luz.

- Ah, Pai, agora você está  extrapolando. Esta me gozando! Estas são coisas de Mamãe! Nunca um robô faria uma coisa dessas. E mesmo que fizesse, não teria graça nenhuma. Seria pura mecânica!

- Oh, ótimo! Chegamos onde eu queria. Na parte mecânica o robô seria insubstituível. Mas na parte afetiva, quando entra amor, afeto, carinho....

- Qual é a diferença entre os dois, Papai?

- O afeto é o que você sente, sem precisar mostrá-lo a ninguém. O carinho é a demonstração externa do afeto que você sente.

- Entendi. Eu tenho afeto por você , mas às vezes respondo com pontapés. Falta carinho...

- Verdade. Mas isso é muito freqüente. Conviver cria vícios de comportamento. A gente esquece de dizer “Eu te amo” esquece de se acarinhar, de beijar, de ficar junto.

- Ah, eu queria fazer isso com o Felipe, o tempo todo! Mas sei que vem bronca, e então, me seguro...

- “Se segura”? E esse seu comportamento escandaloso seria um “me seguro”?

- Ah Pai, os tempos mudaram. Hoje é assim. Todos os jovens mostram abertamente tudo o que pensam e que sentem...

- Pode ser... Mas penso que um pouco de recato não seria má idéia...

- O que é recato, pai?

- É exatamente o que você disse antes: “segurar-se”, manter secreta uma parte do que se sente, ter vergonha de se abrir demais e receio de levar um tapa, quando espera um carinho...

- Bom, papai. Agora você está chegando longe demais. O que pode um dinossauro saber, do que anda no coração dos garotos?

- Muito, muito. Não esqueça que este dinossauro foi um garoto, igualzinho a vocês  e que sentiu tudo o que vocês sentem. Só que tinha a obrigação de se guardar, de não demonstrar o que estava sentindo.

- Mas por quê ?

- Porque as pessoas que se dão demais, tornam-se vulneráveis!

- “Vulneráveis” seria como “malvadas”?

- Não, não. O contrário. Vulnerável é a pessoa que se pode ferir facilmente. Como você quando o Alfredo disse, claramente, que você era uma boba e não estava mais interessado em namorar com um..... ele disse  “bofe”? Foi?

- Ah, isso é outra coisa, não tem nada a ver com o  que estamos discutindo.

- Não? Pensei ter visto você triste, aborrecida, chorando...Ficou dois dias só comendo batatinhas fritas....

- Foi de raiva.

- Não. Foi uma alma ferida. Vulnerar, no velho latim, quer dizer ferir.

- Está bem, pai. Você quer ter sempre razão. Mas você é muito traiçoeiro, com as palavras. Preciso me cuidar.

- E cuide-se também com os garotos. Mantenha a guarda alta, não dê bandeira demais, não solte os seus demônios!

- Ah, Pai, finalmente! É assim que se fala! Agora te entendo. Eu te amo cem, Pai!. Duzentos, vá!

 


Autor: Romano Dazzi


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