A Procissão Descambou Ladeira Abaixo



Chegou a semana santa. Tabuí era toda respeito. Ninguém cantava, ninguém ria, ninguém assobiava, homem não mexia com mulher e a recíproca, dizem, era verdadeira. Providência ninguém bebia.

O Manezinho, na sexta-feira santa, convidado de última hora, influenciado pela conselheira dona Ivani, resolve participar da encenação da paixão que o padre Anacleto organizava todo ano na subida da serra da Tormenta. O grande papel do Manezinho era ser soldado romano carregando um chicote.

Três da tarde, sol de rachar, ia o povo de Tabuí ladeira acima em procissão. Todo mundo lá. Até dona Eunice veio de longe com uma penca de filhos. Coroné Hélio, com os olhos fundos de mal dormidos, tinha saído da toca de recém-casado com a menina Patrícia. Professora Sterzinha segurava numa mão o gêmeo catarrento Pedrim e, na outra, o gêmeo Alvim, com um galo na testa. Os dois, de camisa vermelha e calças curtas listradas de verde e amarelo. Suspensórios azuis. A Eriquinha, com vestido de chita e precata roda, garrada na saia da mãe, ia atrás, limpando com as costas da mão o nariz, que teimava em escorrer, e chutando o calcanhar do Pedrim que só não caía porque grudunhava na mão da mãe. O Dió era o comandante da turma paramentada da Conferência Vicentina. Seu Josafá, dono do Bar Beirão, mais conhecido como Copo Sujo, seguia a procissão trocando, de vez em quando, umas idéias com o prefeito Waldir. Dona Sandra, a endinheirada dona do Ateneu lá da cidade vizinha, se fez presente com um bando de molecas e moleques uniformizados, todos do jardim de infância. Coisa fina mesmo. O fazendeiro Zé Mariano resolveu sair da fila com o nhô Felipe de Paula enquanto tentava fechar um negócio de compra, venda ou troca de garrotes por cachaços. Seu Manoel tava brigando com dona Judite porque esta, distraída, olhando o movimento, trombara nas costas dele, num momento em que a procissão dera uma parada. -"Pois, pois, ó mnina! Não olha por onde anda, opá!". O estudante, futuro médico Chiquinho ia, todo de branco, olhando pro céu e sonhando com o hospital que um dia iria montar em Tabuí. Seu Brioso, cansado de ser lambe-lambe, não perdia, todo orgulhoso, um ângulo bom para, com a sua triplex, fazer a história da cidade. A Lu, chefe da Legião de Maria, puxava as cantigas com a voz mais afinada que surgira por aquelas bandas. O Dalton era o encarregado da matraca. Subia e descia o morro, - enquanto a procissão só subia -, arrancando até um chorinho da matraca sagrada. O André, dono do Açougue Vaca Profana, ia remoendo o pensamento, caçando uma maneira de inventar uma lei para extinguir com a Semana Santa, que acabava com o seu lucrinho, já minguado.

Pois bem. O Manezinho sentou praça na procissão como soldado romano. Junto com ele mais uma reca de soldados, uns apóstolos, umas mulheres, o padre Anacleto e o Jesus Cristo. Era a turma da frente da procissão. Subindo o morro. Suando bicas. O Cristo, um morenão forte, tava quase entregando os pontos, tamanho o peso da cruz. Mesmo assim, ia em frente, puxando o povaréu e xingando o carpinteiro.

 - Carpinteiro viado! Bem que podia ter feito uma cruz de pendão de piteira, mas não. Faz logo de cerne de aroeira!... disgramado!

 O Manezinho, depois de - mesmo proibido - tomar umas talagadas da Providência pra criar coragem, tá lá atrás do Cristo com o seu chicote. Aí resolve puxar conversa.

 - Anda mais depressinha aí, ô Jesuis!

 Jesus, suando de monte, fedendo inhaca e puto da vida, olha pra trás pra ver de onde vem o atrevimento e quase desmancha o pobre do Manezinho com o olhar. Aí é que aconteceu o reconhecimento. Manezinho descobre que Jesus Cristo é o Rajão, o safado do homem que lhe tomara a primeira e única namorada que tivera na vida. Andou matutando um pouquinho e decidiu, falando com seus botões:

 - É hoje, gente! Esse Cristo me paga!...

Aproximou-se mais do Rajão e, de leve, assim como que para experimentar a reação, dá-lhe uma chicotada. Rajão estranhou, mas aceitou resignadamente aquilo, sem entender bem de onde vinha. Outra chicotada. Mais forte. Rajão olhou por baixo da cruz, para trás, procurando padre Anacleto para achar uma explicação. O vigário tinha colocado um lenço pra tampar a careca e seguia contrito rezando seu rosário e nem viu o desespero do Jesus Cristo. Mal Rajão vira pra frente, vem outra chicotada. Ardida. Aí é que ele viu e reparou no franzino do Manezinho. Olha pra ele pedindo clemência. "Émuitumiação prum fi de Deus, sô!"... A procissão continua. Quase todo mundo em silêncio, absorto em seus pensamentos e orações, alguns rezando contritamente. E, lá na frente, o chicote comeu mais uma vez.

 - Pára com isso, ô mardito nanico dos infernos!

 Quase ninguém ouviu, a não ser o próprio Manezinho, um ou outro soldado, e o Carlão, que fazia o papel do apóstolo Pedro. Rajão cuspia fogo pelos olhos e bafo pelas ventas. Manezinho deu um sorriso amarelo, um tempinho, e lasca sem dó outra chicotada que estalou na poupança quase nua do JC.

A dona Cristina, cozinheira das mais afamadas, dona do restaurante "Garrote Moído", que virou Madalena, estranhou aquela cena fora dos conformes. A Cremilda, que fazia o papel de Maria, a mãe do Homem, também estranhou a afronta ao filho. O Fábio Gomes, o apóstolo João, ficou com um pé atrás ao ver a cena.

Foi aí que desandou tudo. O Rajão, no desespero, jogou a cruz prum canto e pulou pra cima do Manezinho. Este, vendo que correr pra baixo era melhor que correr pra cima, desembesta ladeira abaixo, com o Cristo nos calcanhares. Dona Cristina, adivinhando que era briga, corre atrás dos dois para apartar a desavença, seguida logo atrás por Maria toda desconsolada. Os apóstolos Pedro e João, entendendo tudo, vendo que o negócio ia ficar feio, levantam as saias e correm também para não deixarem ninguém matar ninguém em plena sexta-feira santa. Padre Anacleto, quando descobre que alguma coisa não ia bem, vendo a frente sem o Cristo, levanta a batina até a cintura e se manda atrás dos seis, querendo esclarecimento. Os outros atores, que nem ensaio tiveram, pensando que aquilo era parte da encenação, se mandam também, ladeira abaixo, tropeçando uns nos outros. E o povo, ah, o povo! Assim que os primeiros da procissão dão com aquela correria, vêem o padre Anacleto correndo atrás de Jesus Cristo, começam a se perguntar - o que que se sucede?. E, sem entender nada, tratam de fazer meia volta e desabam também a correr ladeira abaixo. Dona Sterzinha, dona Eunice e a diretora Sandra perderam meninos no meio daquela embolada toda. Uniforme branco de meninos do Ateneu perdeu a cor. Prefeito Waldir gritava "calma, gente!" mas, por via das dúvidas, sem entender o motivo da correria, resolve ligar o motorzinho das canelas ladeira abaixo. Felipe de Paula perdeu-se do Zé Mariano quando tratavam dos finalmentes para trocar umas galinhas magrelas por 10 jacás de milho. Coroné Hélio, no meio da poeirada toda, ficou rodando, meio tonto, e gritando "benhê! Cadê ocê!". Seu Manoel só aí é que parou a discussão com dona Judite, porque um se perdeu do outro, cada qual caçando refúgio para se esconder do perigo iminente. O retratista Brioso foi o único que não correu. Ficou no meio daquela gentalha em fuga, triste, olhando pra sua triplex despedaçada no chão. Foi assim que a procissão se inverteu. No lugar de chegar lá em cima da Tormenta, foi parar no barraco do Manezinho. Padre Anacleto chegou a tempo, ainda, de livrá-lo das garras do Rajão que, com uma mão só, segurava-o pelo pescoço, sugigando-o contra a parede, enquanto seus pezinhos balançavam a meio metro do chão.

Autor - Eurico de Andrade ([email protected])
Autor: Eurico de Andrade


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