Conseqüências Da Descriminalização Do Cheque Sem Provisão De Fundos



CONSEQUÊNCIAS DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE ESTELIONATO MEDIANTE EMISSÃO DE CHEQUE SEM PROVISÃO DE FUNDOS.

Nas palavras de Paulo Cezar de Souza Quieroz, descriminalizar significa “retirar de certas condutas o caráter de criminosas”[1].

Vale dizer, afastam-se tais condutas do âmbito da competência penal, desclassificando-a como crime.

Ocorre que a descriminalização não significa necessariamente em tornar lícita uma conduta ilícita no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, a descriminalização não implica em liberalizar os comportamentos descriminalizados.

A dinâmica que deve permear a ciência jurídica, em consonância com as transformações sócias, tem a necessidade de estar alinhada com a letra “fria” da lei.

Assim, o Direito Penal não tem eficiência em desempenhar plenamente o controle social, em razão de sua falta de alcance aos aspectos estruturais.

O custo social ao qual submete-se o cidadão, frente ao Direito Penal, é bastante elevado, havendo a extrema necessidade de apontar, criteriosamente, na seara penal, condutas realmente relevantes[2].

Desse modo, justifica-se a tendência de descriminalizar determinadas condutas, frente à sua ineficácia no ressarcimento do dano e o desproporcional custo social empreendido.

1. CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS.

A descriminalização do estelionato fundado na emissão de cheque sem provisão de fundos representaria uma importante evolução no sistema jurídico penal como um todo.

A forma de se pensar o Direito Penal seria concebida a partir do interesse real e satisfação da vítima.

Seria então desmascarado o falso e ineficaz caráter “preventivo” do Direito Penal, em situações de razão estrutural e de pequenas dimensões, no que se refere aos direitos fundamentais.

As aludidas transformações teriam desdobramentos bastante relevantes e imediatos no ordenamento jurídico, que serão melhor analisados a seguir.

1.1. DESAFOGAMENTO DA DEMANDA PROCESSUAL PENAL.

Notoriamente a despenalização do cheque assume propósitos de descongestionamento dos juízos criminais, haja vista não ter mais previsão legal que justifique a tutela penal.

A Justiça Criminal Penal ficaria então menos pesada, possibilitando uma produtividade um pouco mais satisfatória para tutelar direitos e situações em que a gravidade seja pertinente.

O aparato judicial – tribunais, juízes, polícia etc. – não precisaria ser direcionado para uma conduta sem importância penal.

O trabalho dos entes judiciais seria otimizado, assim como o cidadão normal, chamado por Mirabete[3] como “homem médio”, não mais estaria correndo o risco de sofrer um processo penal abusivo e descabido, em virtude de um ato cotidiano, qual seja, emitir um título de crédito.

Não obstante, importante pontuar que, conforme evidenciado na pesquisa de campo junto à Delegacia de Defraudações, a grande maioria das queixas relativas a emissão de cheque sem provisão de fundos não implica nem mesmo no oferecimento de denúncia.

Assim, restando evidenciado o desvirtuado sentido da norma penal postulada no artigo 171, IV do Código Penal, qual seja, um meio de pressão, constrangimento e coerção para o adimplemento de um débito assumido em um título de crédito, não há pertinência em manter tal conduta tutelada na esfera penal.

 1.2. LIMITAÇÃO DO PAPEL DA NORMA PENAL.

A descriminalização da emissão de cheque sem provisão de fundos estaria em consonância com o sentido precípuo do direito penal mínimo, em que a tutela penal só tem pertinência em casos eminentemente necessários e urgentes.

Significaria, pois, antes de uma limitação expressa no texto legal, o início de uma limitação de amplitude principiológica do operador do Direito.

A norma penal descrita no artigo 171 do Código Penal estaria limitada aos casos de estelionato em que seria necessária uma determinada perícia do agente para realizar o crime como, por exemplo, uma falsificação.

Assim, um cidadão comum, que tem como hábito cotidiano emitir cheque, não estaria propenso a sofrer um processo penal em razão dessa prática.

A limitação, decorrente da descriminalização do estelionato mediante emissão de cheque sem provisão de fundos, teria reflexo não só na aplicação da norma, mas também no pensamento do jurista acerca do Direito Penal e na vida do cidadão.

O Direito Penal estaria alinhado com a sua precípua função de tutelar os direito fundamentais, constantes na Constituição Federal, em razão da gravidade e urgência relativa à conduta praticada.

Ademais, de acordo com Foucault[4], não é viável se valer do Direito Penal para promover estratégias políticas de controle social e ordem estrutural.

Vale dizer, a ideologia capitalista de proteção da ordem econômica e da circulação de riquezas não pode incidir seus reflexos de forma direta no Direito Penal, haja vista a preservação primaz da liberdade do cidadão, somente admitida sua privação, quando extremamente necessária ao convívio em sociedade.

1.3. A QUESTÃO DA INADIMPLÊNCIA.

A tutela penal acerca da emissão de cheques não se mostra como um meio eficaz de prevenção da inadimplência, conforme observado na pesquisa de campo realizada.

Não obstante, estamos observando um crescente aumento da inadimplência na economia brasileira, porém esse fenômeno não está relacionado com o fracasso do sistema penal na observância do artigo 171, IV, do Código Penal.

A crescente inadimplência, decorrente da emissão de cheques, está relacionada com a perca do poder de compra do brasileiro, problemas estruturais na economia do país e a total falta de responsabilidade das instituições financeiras na concessão de créditos.

A tutela penal observada no artigo 171, IV do Código Penal não se mostra como um entrave eficaz para barrar a emissão de cheques sem provisão de fundos, principalmente pelos motivos a seguir:

Primeiro: a grande maioria dos brasileiros desconhece até mesmo os direitos fundamentais intitulados na Constituição Nacional, quanto mais os institutos do sistema penal.

Segundo: o sistema penal brasileiro vive quase permanente crise. O povo não confia na competência e eficácia dos órgãos policiais que, por sua vez, encontram-se falidos, sem aparato técnico e logístico.

Terceiro: geralmente a própria vítima tem o interesse precípuo em negociar diretamente com o devedor o crédito não pago. E um processo penal em quase nada iria facilitar essa negociação.

Desse modo, conforme pontuado em visita à Delegacia de Defraudações de Salvador, a altíssima impunidade de tal crime, ao mesmo passo que não revolta a sociedade, é conseqüência do próprio desinteresse de grande parte da população em buscar a tutela penal nesses casos.

Enfim, o artigo 171, IV, do Código Penal, não está cumprindo o papel almejado pelo legislador, ainda que tal papel extrapole ao próprio sentido de Direito Penal.

Vale dizer, não previne e nem inibe a incidência de emissão de cheque sem provisão de fundos, assim como não se mostra aos olhos da sociedade um meio atrativo para a resolução do conflito.

2. CONSEQUÊNCIAS MEDIATAS.

Alguns efeitos da descriminalização do estelionato mediante emissão de cheques sem provisão de fundos só poderiam ser observados a médio ou a longo prazo.

Tais reflexos incidiriam, principalmente, em uma maior conscientização da sociedade quanto ao ato de emitir e receber cheques como forma de pagamento.

O emitente estaria sujeito a uma forma mais eficaz para reparar o dano financeiro causado e o beneficiário do cheque estaria ciente diante de quais adotar para que o devedor quite seu débito.

Falar em descriminalizar, significa, em uma primeira análise, uma revolução na forma de se pensar o Direito.

Ocorre que, toda reforma significativa de lei exige um debate amplo envolvendo toda a sociedade. A partir desse debate e exposição de idéias, a opinião pública e grande parte da população acaba por conhecer, ainda que de forma simplificada, o tema em questão.

Paralelamente ao debate acerca da proposta de descriminalização, seriam discutidos institutos interligados, tais como a execução e lei civil, assim como a responsabilidade dos bancos, conforme adiante melhor exposto.

2.1. FORTALECIMENTO DOS INSTITUSO DE EXECUÇÃO CIVIL.

O fortalecimento da idéia de uma reforma estrutural no procedimento de execução civil reflete a necessidade satisfativa do Direito em atender os anseios do credor vítima da inadimplência obrigacional.

Ocorre que, boa parte da população ainda desconhece os institutos da execução civil.

Não obstante, importante ressaltar que, no final de 2005, entrou em vigência a nova Lei de Execução Civil, que busca justamente eqüalizar os anseios da sociedade com a eficácia judicial.

A Lei de Execução Civil (Lei 11.232/05 (PL 52/04)) foi sancionada no dia 22 de dezembro de 2005 e é um dos projetos mais importantes da reforma infraconstitucional

Tem como objetivo agilizar a tramitação de processos, racionalizar a sistemática de recursos judiciais e inibir a utilização da Justiça com fins meramente protelatórios.

A reforma infraconstitucional foi elaborada pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em conjunto com o Supremo Tribunal Federal, o Instituto Brasileiro de Direito Processual e entidades de magistrados, promotores e advogados.

Esse trabalho resultou no encaminhamento de 26 projetos de lei com propostas para a alteração das leis processuais civil, trabalhista e penal.

A nova Lei de Execução Civil (11.232/05) que define novos procedimentos a fim de agilizar a tramitação das ações de cobrança, uma das maiores responsáveis pelo congestionamento dos tribunais brasileiros.

Uma das determinações da nova lei une as fases de conhecimento e de execução do processo judicial e simplifica essa última fase, uma vez que dispensa nova citação pessoal do devedor para executar a dívida.

Antes, o credor era obrigado a entrar com uma ação para ter o seu crédito reconhecido por uma sentença e depois outra para forçar o devedor a pagá-lo.

A separação desses dois processos tornava o procedimento judicial excessivamente lento, já que a maioria dos atos realizados no primeiro processo deveria ser repetida no processo execução.

A Nova Lei de Execuções Civis se coaduna com a cobrança judicial de cheque sem provisão de fundos. Falta à população fazer valer essa evolução do sistema jurídico na prática.

Importante traçar a ligação entre a execução e a dívida oriunda de um cheque sem provisão de fundos.

De acordo com Maximilianus Cláudio Américo Führer[5], o cheque, assim como todos os títulos de crédito, é caracterizado pela DOCUMENTALIDADE, FORÇA EXECUTIVA, LITERALIDADE, FORMALISMO, SOLIDARIEDADE, AUTONOMIA, INDEPENDÊNCIA, ABSTRAÇÃO E CIRCULAÇÃO.

Tais características reforçam que o cheque vale por si só para justificar a execução direta do devedor, sem a necessidade de uma fase de instrução processual.

Nas palavras de Maximilianus Cláudio Américo Führer[6], a força executiva e documentalidade do cheque consiste, respectivamente, no seguinte:

O título de crédito tem força idêntica de uma sentença judicial transitada em julgado, dando direito diretamente ao processo de execução.

O título de crédito é sempre um documento, necessário para o exercício do direito que representa.

Apesar das características expostas acima e do advento da nova Lei de Execução Civil, fundamental também implementar um processo de conscientização da sociedade, no que tange à eficácia e aplicação do Direito como forma de solução de conflitos.

Não adianta propor o fortalecimento de qualquer instituto jurídico sem a participação da sociedade, ou seja, tal proposta não deve se limitar ao meio acadêmico e profissional do Direito.

O cidadão só recorre ao judiciário quando tem um mínimo de conhecimento acerca da lei.

Vale dizer, fortalecimento do instituto de execução civil, antes de uma transformação no âmbito jurídico, supõem também um trabalho de conscientização na esfera social.

2.1.1. PRINCÍPIOS EXECUTIVOS.

Não obstante, vale lembrar que a execução deve atender a alguns princípios, chamados por Lopes da Costa como “caracteres da execução”[7].

Pertinente transcrever as palavras de Araken de Assis[8] referente ao tema:

Identificam-se os princípios sem maiores dificuldades. Não têm eles, todavia, idêntica importância em todos os processos, nem se aplicam de modo rígido, linear e inflexível. Falta, ainda, tanto uniformidade doutrinária, quanto critério para organizá-los.

[...]

Em prol da clareza, adotar-se-á um rol aberto e amplo.

Desse modo, Araken de Assis[9] aponta quatro princípios executivos, são eles:

Princípio da autonomia

Corolário da especificidade da própria função executiva, curial se ostenta a autonomia da execução, agora compreendida no sentido funcional. Ele constituiu ente à parte das funções de cognição e cautelar.

Princípio do título

A ação executória nasce do efeito executivo da condenação. Tal efeito origina o título executivo.

Princípio da disponibilidade

Fundando-se o processo executivo na idéia de satisfação plena do credor, parece lógico que ele, ao seu exclusivo líbito, disponha da ação.

Princípio da adequação

De regra, o meio executório predisposto se mostrará idôneo a atuar compulsoriamente o direito reclamado. Legitimam-se os meios, e os atos executivos montados dentro de cada meio, haja vista a instrumentalidade do processo, nesta obrigatória e íntima correlação.

Sem meio hábil, o bem nunca será alcançado pelo credor.

Assim, imperativo também observar as balizes principiológicas no processo executivo com o escopo de eqüalizar o objeto da execução com os anseios do credor, satisfazendo com eficiência a relação jurídica.

2.2. ADEQÜAÇÃO DO PAPEL DA NORMA CIVIL.

A descriminalização proposta no presente trabalho teria seus efeitos incidentes fortemente no Direito Civil, pois haveria uma considerável alta na demanda, reflexo de uma maior conscientização da população acerca do tema.

A ampliação do papel da norma civil não pressupõe necessariamente o aumento de leis civis para regulamentar o cheque, mas sim uma adequação técnica, sistemática e ideológica no que concerne o modo de se pensar o Direito Civil na composição de conflitos cotidianos.

O inadimplemento, fruto da emissão de um cheque, nada mais é que um ato cotidiano, devendo então ser regulado, primordialmente, na esfera Civil.

A norma civil alcançaria uma amplitude coerente com os direitos abarcados sob sua tutela, ao passo que o Direito Penal não mais ficaria incumbido de exercer o papel de um “cobrador judicial”.

Conforme já abordado anteriormente em outros tópicos, a idéia de Direito Penal Mínimo acaba por priorizar outras esferas jurídicas na resolução dos conflitos sociais.

Ademais, um controle social mais eficiente se concretiza a partir de pontos estruturais da relação jurídica, em que os problemas não são enfrentados quando o dano já foi efetivado.

O Direito Civil deve também se revestir de um caráter preventivo na composição dos conflitos sociais.

Um exemplo pertinente, que merece ser citado, é a possibilidade de negativação do CPF de emitente de cheque sem provisão de fundos.

Seria um ato duplamente preventivo.

Primeiro porque alerta ao emitente quanto às possíveis conseqüências e malefícios relativos à emissão de um cheque sem provisão de fundos.

Segundo porque previne que outras pessoas sejam lesadas por maus pagadores, uma vez que as informações se tornam acessíveis através dos órgãos de proteção ao crédito.

Desse modo, importante atentar que o instituto do cheque estaria adequado ao ramo do Direito que melhor lhe serve, qual seja, o Direito Civil.

2.3. RESPONSABILIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS.

As instituições bancárias sempre se mantiveram em uma posição muito tranqüila no que concerne a emissão de cheques sem provisão de fundos sem prestar qualquer tipo de responsabilidade acerca da crescente inadimplência decorrente desse título de crédito.

Ocorre que a autorização, emissão e disponibilização do talonário é função do banco, que por sua vez sem mantém inerte e sereno, enquanto milhares de pessoas e empresas são lesavas diariamente no país.

A inadimplência decorrente do cheque sem provisão de fundos gera lucro à instituição financeira, haja vista as abusivas taxas cobradas sobre a apresentação e devolução dos mesmos, taxas essas que fazem parte da receita do banco.

Os bancos, no afã de captarem mais clientes e receitas, acabam por não se aterem à cautela necessária para a normal movimentação de contas correntes, pressionando seus funcionários no alcance de metas.

Essa pressão tem como principal conseqüência a concessão de crédito e talões de cheques a pessoas inescrupulosas ou simplesmente sem o mínimo de confiabilidade no mercado.

Desse modo, pertinente pensar que algumas responsabilidades devem ser imputadas aos bancos, pois a teor do que dispõe a Resolução n° 2.025/93 do Banco Central do Brasil, a manutenção de contas bancárias e o fornecimento de talões de cheques, exige alguns critérios mínimos, dentre estes, o de existência de saldo médio na conta, como condição sine qua non para a obtenção de talonário e da regular movimentação de conta corrente.[10]

Autor: Heider Fiuza de Oliveira Filho


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