Heidegger e o problema da alteridade em Ser e Tempo



José Reinaldo Felipe Martins Filho [1]- ISC

Resumo: A presente investigação possui como propósito apresentar a possível contribuição da filosofia heideggeriana no que se refere à questão da alteridade. Como problema abordado por Heidegger tem-se a questão da compreensão do modo de ser do Dasein como ser-com-os-outros. Ao contrário do que é apresentado por Husserl, em Heidegger o outro do Dasein não é um "outro eu" que vem ao próprio Dasein, constituindo-se como um tu, mas um co-existente no mundo, o que determina e qualifica ao próprio Dasein como Mitsein. Partindo do parágrafo 26 de Ser e Tempo, dar-se-á a investigação que procura reconhecer a possibilidade de uma autêntica discussão referente à alteridade na presente obra. Contrapondo-se às mais variadas interpretações que enfatizam a existência de um "solipsismo existencial", o foco do estudo inaugurado será a contribuição heideggeriana na construção de uma filosofia do outro. Notadamente, uma das preocupações primordiais de Ser e Tempo é estabelecer novos rumos para a compreensão de homem. Na eleição do Dasein como ente privilegiado – único detentor do privilégio ôntico-ontológico -, a analítica existencial constrói um discurso acerca dos diversos aspectos constitutivos do homem, apontando para várias questões que se mostram intrigantes e inovadoras. Dentre essas, pode-se destacar a própria concepção de Mitsein. A alteridade, desse modo,também ocupa um importante papel no âmbito das reflexões de Ser e Tempo. O modo de Ser-com-os-outros do Dasein, aparece de tal modo entranhado em sua estrutura fundamental, que mesmo sem a presença do outro, permanece, ele, em sua constituição de Mitsein. Assim, vale destacar que o discurso heideggeriano em Ser e Tempo permanece de cunho ontológico. Dessa forma, torna-se questionável se a relação com o outro em Ser e Tempo possa ter um valor ético. Heidegger sempre parte do Ser-no-mundo, e do modo mediano da existência para chegar à conceituação de Mitsein. Como constituição essencial, todo Dasein é Ser-no-mundo. Somente partindo de sua constituição de Ser-no-mundo o Dasein pode exercer sua disposição fundamental: a compreensão. Por compreensão entende-se a capacidade que todo Dasein exerce de apreender seu próprio ser. Como Ser-no-mundo, além do modo de compreensão do ser que ele mesmo sempre é, Dasein encontra a possibilidade de compreender o mundo como tal e os demais entes circundantes. Nisso, como fenômeno unificador dos diferentes modos de ser do Dasein, a curaatua como colaboradora no processo de reconhecimento do outro. O encontro com o outro se dá nos ditames da relação. Em sua existência no mundo Dasein sempre se relaciona com os outros entes. Todavia, tal relação se estabelece de diferentes modos. À relação estabelecida com os entes intramundanos, ou simplesmente dados, como Heidegger se refere, denomina-se ocupação. Ocupar-se com, é o modo de lidar com o manual intramundano. Por outro lado, à luz do fenômeno da cura, a relação estabelecida com o outro Dasein, longe de se limitar ao nível da ocupação, denomina-se preocupação. O ente com o qual o Dasein se relaciona não é um ente simplesmente dado, ele mesmo possui o caráter de Dasein. Partindo desses pressupostos, inaugura-se o movimento de investigação heideggeriano que procura compreender como se dá a apresentação do Dasein como Mitsein, elemento colaborador em sua constituição ontológica. Por fim, a possível interpretação ética da relação com o outro em Ser e Tempo, não se dá por esgotada. Na verdade, tal posicionamento é questão que ainda permanece em aberto.

Palavras Chave: Heidegger; Mitsein; Alteridade; Ser e Tempo.

1. Introdução

Ao contrário do que é defendido por muitos, a presente comunicação pretende apontar para as possíveis contribuições da filosofia heideggeriana naquilo que tange o tema da alteridade, tão em voga nos dias atuais. Em toda filosofia de Martin Heidegger e, de modo particular, em Ser e Tempo[2], várias são as questões que se mostram inovadoras. Dentre essas, pode-se destacar a própria concepção de Dasein como um Ser-com-os-outros. Longe de permanecer mudo diante da questão do outro, Heidegger evidencia, logo em Ser e Tempo, que tal tema também habita o âmbito de suas reflexões. Segundo o professor e pesquisador André Duarte[3], em Ser e Tempo, "partindo da análise do encontro do outro na cotidianidade mediana, chega-se até o problema do reconhecimento da alteridade que todo Dasein já traz em si mesmo." (2002, p. 157) Assim, partindo do § 26 de ST, dá-se o objetivo do presente estudo: estabelecer o processo pelo qual a analítica existencial elege do modo de Ser-no-mundo do Dasein sua constituição essencial de Ser-com-os-outros.

O outro do Dasein é aquele que se encontra com ele no mundo; em certo sentido, é o próprio mundo. Desse modo, ao contrário do que é defendido por Husserl, para Heidegger o outro não é um "outro eu", com o qual o "meu eu" se relaciona, tornando-o um "tu". Em Husserl[4], "tudo o que vale para mim vale também para todos os outros homens, que me estão à mão no meu mundo circundante. Experimentando-os como homens, compreendo-os e os aceito como 'eu', qual eu sou." (Husserl, 1965, p. 61) O "outro", aqui, é aquele que está com o ente que eu mesmo sou em um mundo comum. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o Ser-no-mundo torna-se Ser-com-os-outros, o próprio mundo se instaura como mundo compartilhado (mitwelt). O outro não é simplesmente o "outro". Ao contrário, é um "co-existente". Assim, na relação com o outro Dasein confiro ao meu próprio Dasein seu caráter de Mitsein.

2. Do Ser-no-mundo à sua conceituação como Ser-com-os-outros

Como é próprio da conceituação heideggeriana, a resposta pela questão sobre o "quem" do Dasein encontra como pressuposto a seguinte formulação: "Dasein é o ente que sempre eu mesmo sou, o ser é sempre meu." (ST; p. 165) Nessa afirmação, torna-se possível perceber a intenção que permeia toda a argumentação do filósofo, acerca da constituição fundamental do Dasein. Dasein, por assim dizer, é o ente capaz de preocupar-se com a compreensão de seu próprio ser. Longe de corresponder a uma exaltação do próprio eu, tal compreensão remete à figura do outro. Ao mesmo tempo em que somente Dasein é capaz de compreender seu próprio ser, somente ele, de igual modo, é capaz de perceber e se relacionar com o mundo que o rodeia. Os seres simplesmente dados prescindem do caráter da presença, ao que se pode ilustrar no exemplo dos móveis de uma casa. Ao mesmo tempo em que se encontram dispostos num mesmo ambiente que seus donos, permanecem incapazes de estabelecer relações com os mesmos. Com Dasein não acontece o semelhante. Tomado da clareza de sua constituição de ser existente, é capaz de perceber que não é o único ente disposto no mundo, como também, aos demais entes conviventes, não resta, unicamente, o papel de seres à mão, simplesmente dados num mundo. "Pode ser que o quem da presença quotidiana não seja sempre e justamente eu mesmo." (ST; p. 166) Tal constatação leva ao reconhecimento de uma realidade exterior à sua própria; à possibilidade de existência de outros entes dotados das mesmas capacidades do ente que eu mesmo sempre sou. Da mesma forma que o Dasein que eu mesmo sou existe como Ser-no-mundo, também outros Daseins – se assim lhes denominarem – possuem o mesmo privilégio e constituição. Ser-no-mundo, nesse sentido, significa, impreterivelmente, Ser-com-os-outros. Para Heidegger,"o esclarecimento do Ser-no-mundo, mostrou que, de início, um mero sujeito não 'é' e nunca é dado sem mundo. Da mesma maneira, também de início, não é dado um eu isolado sem outros." (ST; p. 167) A partir daí, dá-se a necessidade de uma autêntica análise da co-presença, no modo mais próximo de sua manifestação: a cotidianidade mediana. Como afirma Heidegger em inúmeros momentos de sua argüição, a essência de Dasein se encontra em sua existência. Desse modo, toda compreensão dos seus diferentes constitutivos deve-se inaugurar partindo da interpretação existencial do próprio eu. Sendo assim, o modo mediano pelo qual Dasein se apresenta aos outros e ao mundo é o ponto de partida de qualquer investigação acerca de sua capacidade relacional; constituição de Ser-com-os-outros.

3. § 26 de Ser e Tempo - O Ser-com-os-outros e a Co-presença

Como fora apontado, a análise do ente que sempre sou deve-se deter no modo cotidiano no qual ele se expressa: sua constituição de Ser-no-mundo. Nesse modo de ser, dá-se a possibilidade de virem ao seu encontro todos os demais entes que também se encontram no mundo. Todo instrumento se destina a uma determinada função – salienta -; do mesmo modo, toda obra possui sua finalidade. Em ambos os casos, o sentido último dos entes em questão se encontra no exterior de si: no outro. Todo o processo de encontrar-se com o outro se estabelece no mundo. Para Heidegger, o encontro com o conjunto instrumental do mundo circundante não é algo acrescentado pelo próprio entendimento, mas mediado por sua comum disposição no mundo. Sendo o mundo sempre "meu mundo", o encontrar-se com os outros se torna indispensável. Contudo, ao longo de sua experiência de mundo, Dasein percebe que nem tudo o que lhe vem ao encontro se trata de um instrumental à sua disposição. "O mundo do Dasein libera, portando, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão 'no' mundo em que vêm ao encontro segundo seu modo de ser no mundo." (ST; p. 169) Não se trata, portanto, de algo simplesmente dado ou à mão; são, eles mesmos, presença; são, eles mesmos, Daseins. Assim, detentores de mesma constituição ôntico-ontológica, tornam-se Co-presentes (Mit-Daseins) no mundo. Partindo daí, como lugar intermediário de tal relação, torna-se o mundo, de igual modo, presença. O próprio mundo é, enquanto constituído do conjunto de todas as significações, o outro do Dasein.

Para Heidegger, "a caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo o próprio Dasein." (ST; p. 169) Diante disso, não seria tal compreensão fruto de um solipsismo existencial, no qual a partir do isolamento do eu torna-se possível encontrar o outro? A resposta para tal questionamento permanece negativa. Em primeiro lugar, dá-se a necessidade de uma clara compreensão do sentido em que o termo "outro" é utilizado pelo pensador em Ser e Tempo. "Os 'outros' não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se está." (ST; p. 169 – grifo do autor) O modo de Ser-com-os-outros não é o modo de ser com os objetos simplesmente dados. Não se trata de um conjunto dentro do mundo. O "com", aqui, é o que determina o modo de ser de todo Dasein. (cfr. ST; p. 170) O outro do Dasein não permanece em seu estado imóvel de outro, também é Mitsein.

Como é notado, em Heidegger, o encontro com o outro não se dá através do estabelecimento das diferenças, ou mesmo, partindo de uma referência à exclusão de si mesmo. Seu encontro se origina a partir do mundo, onde o próprio Dasein se encontra de modo essencial. Tal expressão se denomina "mundo circunstancial". Nele Dasein não somente se encontra com o outro simplesmente dado, mas também, apropria-se da possibilidade de encontrar-se consigo mesmo. Tal encontro é sempre mediado pelo modo da "ocupação" com os entes intramundanos.

Para o filósofo da Floresta Negra, "na maior parte das vezes e antes de tudo, Dasein se entende a partir de seu mundo, e a Co-presençados outros vem ao encontro nas mais diversas formas, a partir do que está à mão dentro do mundo." (ST; p. 171) Tal afirmação significa dizer que numa primeira relação, Dasein se encontra com os entes simplesmente dados, partindo de sua função instrumental. Em suas necessidades no mundo, Dasein se encontra com o utensílio. Todavia, em sua condição de Ser-com-os-outros, o encontro com o outro não se concretiza nos mesmos patamares do "simplesmente dado"; o outro se encontra como pessoa. A relação do encontro do Dasein com o outro Dasein se dá a partir da constatação de sua mútua condição de Seres-no-mundo. Para o filósofo, mesmo na simples apreensão do outro junto a si, Dasein não o reconhece como "coisa-homem" simplesmente dada. "O outro vem ao encontro em sua co-presença (Mit-Dasein) no mundo." (ST; p. 171)

Partindo de sua própria expressão como Dasein, percebe-se claramente que, a princípio, esse ente não se remete aos outros. Sua atitude primeira é a compreensão de seu próprio ser. A partir do mundo e da possibilidade do encontro com o outro, Dasein reconhece-se Mitsein. A abertura de Dasein ao outro somente é possível haja visto que Dasein é, em si mesmo, Mitsein. (cfr. ST; p. 172) Assim como Dasein, Mitsein também é possuidor de caráter ontológico-existencial. Não se trata de um fator guiado pela circunstancialidade, sendo que somente no ato de encontrar-se com o outro, seria o Dasein Ser-com-os-outros. Mesmo não estando na presença do outro Dasein é Mitsein. Somente no caráter de Mitsein o outro pode lhe faltar. "Mesmo o estar-só do Dasein é Ser-com-os-outros no mundo." (ST; p. 172) Para Heidegger, o estar-só é um modo deficiente de expressão do próprio Ser-com-os-outros. Prova disso é a própria possibilidade da presença do outro, assegurada em sua falta. Além disso, segundo ele, não é o simples dado do estar sozinho que garante, de fato, a ausência do outro. Pode-se permanecer só num ambiente com dez outros entes – ilustra - no caso dos simplesmente dados. A determinação da co-presença dos outros parte do próprio caráter de Mitsein; é sua condição elementar.

Por conseguinte, como expressão existencial do Ser-no-mundo, o Ser-com-os-outros deve ser sempre interpretado à luz do fenômeno da cura. Partindo da cura, como fenômeno de unificação, Mitsein se relaciona com os outros entes; com o mundo de maneira geral. Tal modo de ser, todavia, não se expressa por mesmas formas de encontro. A relação entre Mitsein e os "outros" não se dá de modo igualitário quando esse se refere a entes simplesmente dados ou outros Daseins. No trato com as coisas cotidianas, seres à mão, dotados de intramundanidade, Mitsein se relaciona sob o modo da ocupação. Ao contrário, na relação com outros Daseins, Mitsein se vê envolvido no modo da preocupação. Ocupação e preocupação são os dois modos de relacionamento entre Mitsein e os demais entes. O ocupar-se com, não possui caráter ontológico, como também, não se trata da plena manifestação do Dasein em seu modo de Ser-com-os-outros. "O caráter ontológico da ocupação não é próprio do Mitsein, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vêm ao encontro dentro do mundo da ocupação." (ST; p. 173 – grifo do autor) Diferindo-se do encontro com os outros intramundanos está a relação com o "outro". Por possuir, ele mesmo, o caráter de Dasein, sua relação se estabelece de modo igualmente distinto; torna-se co-relação. Nesse ente, eleito por seus atributos e detentor do privilégio ôntico-ontológico, estabelece-se o autêntico Ser-com-os-outros do Dasein. Não possui, ele, o modo de ser do ente intramundano à mão, ele mesmo é Dasein. Longe de o simples ocupar-se com, trata-se de um preocupar-se. "Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa." (ST; p. 173) Nesse sentido, ocupar-se com o outro no cuidado é, também, preocupação. Somente com o outro Dasein, Mitsein exerce tal modo de ser.

Ao contrario da ocupação, referida anteriormente, a preocupação possui caráter ontológico na medida em que expressa o autêntico modo de Ser-com-os-outros de Dasein. Contudo, na maior parte das vezes, Mitsein mantém-se nos "modos deficientes" de preocupação. Nesse sentido, a preocupação não é exercida em sua autenticidade. Na cotidianidade da relação, permanece Mitsein na preocupação deficiente. Segundo Heidegger, "o ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação." (ST; p. 173) Para ele, são justamente esses dois últimos modos que caracterizam a convivência cotidiana de um com o outro. O modo da indiferença se distingue do não sentir-se tocado na medida em que possui distintas nuanças ontológicas. Em sua deficiência, Mitsein age movido pela indiferença. Essa, por sua vez, se dispensa aos entes simplesmente dados ou manuais. Enquanto isso, o não sentir-se tocado, evidencia a decadência do modo de ser da preocupação. Segundo o autor, "embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência 'indiferente' de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros". (ST; p. 173) Basicamente, a atitude de indiferença se refere, de modo particular, à insensibilidade em relação aos objetos em geral. Ao contrário, o ato de não sentir-se tocado dos entes revela um sentimento de exclusão que se contrapõe ao real sentido do preocupar-se. Torna-se uma preocupação deficiente.

No que se refere ao exercer da preocupação, Heidegger aponta duas possibilidades extremas. "Ela pode retirar o 'cuidado' do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o. [...] Em contrapartida, subsiste ainda a possibilidade de uma preocupação que não tanto substitui o outro, mas que se lhe antepõe em sua possibilidade existencial para não retirar-lhe o cuidado e sim para devolvê-lo como tal." (ST; p. 173-174) Como inautêntica, a primeira possibilidade de preocupação evidenciada, não condiz com aquilo que, de fato, significa Ser-com o outro. Retirando-lhe o cuidado e usurpando-lhe o lugar, retira-se e usurpa-se, ao mesmo tempo, sua possibilidade de ser. A dependência originada a partir de tal forma de preocupar-se, mesmo que manifesta de modo silencioso, limita o outro em seu modo de ser si-mesmo. Na maioria das vezes, tal modo de preocupar-se, se refere à ocupação do manual. Por outro lado, a autêntica expressão do preocupar-se é aquela capaz de restabelecer o cuidado, garantindo ao outro sua possibilidade de ser. Trata-se, por sua vez, da real expressão da cura, onde o outro não se limita aos ditames da coisa, mas possui a liberdade de tornar-se, em si mesmo, livre.

Como constituição ontológica, a preocupação define Dasein tanto em sua disposição no mundo da ocupação, como em seu ser para consigo mesmo. Na preocupação Dasein encontra a possibilidade de ser-si-mesmo. Contudo, no modo mediano de ser, a convivência recíproca com o outro é exercida nos simples ditames da ocupação. Nela existem dois tipos de correlação: há aqueles que se empenham na mesma coisa e aqueles que se empenham, em comum, pela mesma coisa. No primeiro caso, a preocupação não é estabelecida e a relação se funda no pressuposto da desconfiança. No segundo modo, por sua vez, cada Dasein envolvido encontra a possibilidade de se firmar na apreensão de seu ser-si-mesmo. Ambos se propõem ao mesmo ideal, sem, porém, perder de vista aquilo que os move individualmente. "É essa ligação própria que possibilita a justa isenção, que libera o outro em sua liberdade para si mesmo." (ST; p. 174 – grifo do autor) Assim, oscilando entre os extremos da preocupação – a substituição dominadora e a anteposição liberadora – estabelece-se a convivência cotidiana.

No que se refere à questão do "outro", Heidegger afirma que "a abertura da co-presença dos outros, pertencente ao Mitsein, significa: na compreensão do ser do Dasein já subsiste uma compreensão dos outros porque seu ser é Mitsein." (ST; p. 176) Dasein é compreensão! Nisso consiste não somente a compreensão de seu próprio ser, como, também, o modo pelo qual compreende o outro. Não se trata, contudo, de uma apreensão fundada no reconhecimento. Dasein compreende o outro porque, já em sua essência, é Mitsein. Trata-se de uma compreensão existencial. Partindo da circunvisão, como modo mais imediato de seu Ser-no-mundo, Dasein compreende o outro também como ser existente. Tomando como ponto de origem a compreensão do outro que se dá na ocupação com ele no mundo da circunvisão, entende-se como tal compreensão se instaura na preocupação da ocupação. "O outro se descobre, assim, antes de tudo, na preocupação das ocupações." (ST; p. 176) Toda relação estabelecida entre o compreender e o conhecer, toma como base os modos deficientes ou, ao menos, indiferentes, nos quais Dasein se vê envolvido em sua convivência cotidiana.

A preocupação se revela como modo primordial de Ser-com-os-outros. A abertura dos outros ao modo do preocupar-se, inerente a todo Mitsein, estabelece entre eles uma relação de convivência compreensiva, que, em suma, define o que significa originariamente Ser-com o "outro". Segundo Heidegger, "esse fenômeno que, de maneira não muito feliz, designa-se de simpatia deve, por assim dizer, construir ontologicamente uma ponte entre o próprio sujeito isolado e o outro sujeito, de início, inteiramente fechado." (ST; p. 176) Diante disso, os ditames do solipsismo existencial se vêem ultrapassados pela possibilidade do encontro com o outro, que à primeira impressão se mostra fechado a tal relação. Longe de confiná-lo à dura pena do egoísmo, a compreensão de si mesmo garante ao Dasein a compreensão de seu encontro com os outros. O Ser-com-os-outros não é o mesmo da relação de ocupação com as coisas simplesmente dadas, pois, "no Ser-com-os-outros e para com os outros, subsiste, portanto, uma relação ontológica entre Daseins." (ST; p. 177) Tal relação já é própria de cada Dasein que, dotado da compreensão de seu próprio ser, já se relaciona consigo mesmo. Para Heidegger, "a relação ontológica com os outros se torna, pois, projeção do ser-próprio para si mesmo num outro. O outro é um duplo de próprio." (ST; p. 177)

4. Conclusão

Portanto, percebe-se que a questão do outro é caráter inerente a todo Dasein. Partindo do encontro com o outro no mundo, dá-se o reconhecimento de sua constituição de Ser-com-os-outros. Desse modo, longe de pretender alcançar uma rígida definição, quer se denomine por alteridade, quer se designe intersubjetividade, o propósito da presente comunicação foi, simplesmente, apontar para a possível luminosidade oriunda da figura do alter em Ser e Tempo. Notadamente, uma das principais preocupações dessa obra, é estabelecer novos rumos para a compreensão contemporânea de homem. Todo homem é Dasein, mesmo que de modo inautêntico. Diante disso, a relação com outro Dasein torna-se, impreterivelmente, relação entre homens – seres dotados de mesma constituição. Nisso, basicamente, constitui-se a colaboração heideggeriana para uma filosofia do outro, sempre entendida sob o prisma da ontologia, diante do que a possível interpretação ética da relação com o outro Dasein, em Ser e Tempo, é algo que ainda não se dá por esgotado, permanecendo, ainda hoje, sem uma resposta satisfatóri por esgotado, permanecendo, ainda hoje, sem uma resposta satisfato ainda inexplorado. a. Longe de constituir uma argumentação dogmática, a questão do outro no pensamento heideggeriano caracteriza-se como um campo ainda, em sua maior parte, inexplorado. Tal investigação parece ter dado, ainda, os primeiros passos.


[1] Graduando em filosofia pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz.

[2] Ao se referir à Ser e Tempo – principal obra do pensamento de Martin Heidegger, publicada pela primeira vez em 1927, sob o título, em alemão, Sein und Zeit – a presente investigação se utilizará da tradução brasileira, apontando-a sob a sigla ST. Cfr. Ser e Tempo. Título original: Sein und Zeit. Tradução revisada e apresentação de Márcia Sá Cavalcante Schuback e Emanuel Cordeiro Leão. Parte I, 6º edição. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 1997. (Coleção pensamento humano)

[3] DUARTE, André. Heidegger e o outro: a questão da alteridade em Ser e tempo. In: Natureza Humana 4 (1): 157-185, jan-jun. Curitiba: Editora UFPR, 2002.

[4] HUSSERL, Edmund. Idee per una fenomenologia e per una filosofia fenomenológica. Turim: 1965.


Autor: José Reinaldo Felipe Martins Filho


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