HOJE FAZ DEZ ANOS QUE EU MORRI



Era uma sexta-feira comum, igual às várias sextas que eu viajava com a família para a fazenda do meu sogro. O dia era de sol e os meninos, meus três filhos, pareciam absorver a energia do astro-rei e estavam com a pilha toda, brigando entre si constantemente, numa zoada infernal. Minha mulher estava naqueles dias, numa tensão pré-menstrual de amargar e sua paciência, que já não era de Jó, estava insuportável; sobravam beliscões pra todo lado. Verdadeiro inferno matinal e minha vontade era de morrer, não literalmente, claro, eu só não queria estar ali, naquela tortura familiar. Mas a Dona Morte levou ao pé da letra o meu desejo e na próxima curva uma picape nos pegou de cheio, atingindo principalmente o lado do motorista, ou seja, o meu lado. O desfecho é simples. Eu morri. A mulher e os meninos tiveram ferimentos leves e o condutor do outro carro, bêbado que não se segurava em pé, não teve nada. Foi aquele chororô. Os meninos diziam que queriam morrer também e minha esposa, isto é, a viúva, dizia que pra ela a vida acabou.

 

Também foi aquela comoção no meu trabalho. Os colegas diziam que funcionário igual a mim a empresa não conseguiria jamais. Meu talento era único, singular, bradavam em coro. Confesso que fiquei emocionado e não foi diferente com os amigos do botequim. Chorando, asseguravam que o bar não seria mais o mesmo, que era melhor fechar as portas, sem falar no exagero de Tião Madrugada, ao afirmar que nunca mais tomaria uma.

 

Hoje, exatamente hoje, faz dez anos que tudo isso aconteceu. Sim, faz dez anos que eu morri e obtive a licença para descer à Terra e ver como as coisas estão.  No meu trabalho, ou melhor, no meu ex-trabalho as coisas vão indo bem e o Pedrão, o sujeito que me substituiu, até hoje está lá e, ao que parece, desempenha as funções melhor do que eu, pelo menos ouço o Arnaldo dizer em alto e bom som que a vida da empresa se resume em duas fases: “antes e depois de Pedrão”. Evidentemente que na primeira fase, a ruim, o titular da pasta era eu.

 

Confesso que a visita no trabalho não foi o que eu esperava, mas a vida continua, não para mim, é claro. Bom, continuei as visitas e vim ver a turma do botequim. Estão todos lá, desde o Beto Cachaça ao Claudinho Pé de Balcão. Ah, também está lá o Tião Madrugada, num porre daqueles. Todos na maior farra e me deu uma inveja danada. Pois é, o bar continuou aberto e Tião não deixou de beber.

 

Meu tempo está esgotando, preciso voltar, mas antes vou passar lá em casa, digo, na casa da viúva e não gosto do que vejo. Os meninos, que já não são mais meninos, ganharam dois irmãos, por parte de mãe, naturalmente, fruto do seu novo casamento com o Betão, a quem chamam de pai, como se eu nunca tivesse existido. Termino a visita por aqui, que já está na hora de voltar. Ah, já ia esquecendo: Betão é o cara bêbado da picape. Isso mesmo, o desgraçado que me matou.


Autor: sander dantas cavalcante


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