O AMOR E A MORTE



“Tudo o que está morto como fato,

continua vivo como ensino.”

Victor Hugo

       

         – Ao diabo com tudo isto! – gritou Nepomuceno, dando um soco no balcão da padaria, enquanto engolia o último trago de café.

         Atirou uma moeda para o rapazinho do caixa e saiu em disparada, como se tivesse muita urgência em desenrolar alguma pendenga. Eram 7 horas e 12 minutos de uma segunda-feira garoenta e fria na cidade de São Paulo.

         Nepomuceno cobriu a cabeça com o gorro da blusa de moletom, meteu as mãos nos bolsos para abrandar a friagem e desceu quase correndo a Brigadeiro Luís Antônio; dobrou para a direita na esquina da Maria Paula e subiu, num só fôlego, o viaduto da Sé, pois pretendia embarcar no metrô. Já estava descendo os degraus de acesso à estação, quando se deu conta de que, naquele horário, não era tão ruim o tráfego na Radial Leste, no sentido bairro. Então, decidiu pegar um ônibus no Terminal Parque Dom Pedro II. De ônibus, não precisaria fazer nenhuma baldeação.

         Deu meia-volta tão abruptamente, que quase se chocou com um velho magro, de olhos embotados, que recepcionava os desembarcantes, exibindo no peito uma placa com a frase “compra-se ouro” e galgou os degraus com tanta urgência, que não deixava a menor dúvida de que corria contra o tempo. Oito minutos depois, seguia para casa. Atrás ficava a região central, com sua frenética aglomeração de veículos e transeuntes, sua infernal poluição sonora, seus ruídos estridentes de buzinas, seus roncos de motores impacientes e o pregão lamurioso dos vendedores de bugigangas. Era a capital paulistana retomando o seu ritmo acelerado de início de semana.

 

***

 

         O ônibus seguia em direção ao bairro numa velocidade normal, mas a Nepomuceno parecia lento. Lento, ao menos, se comparado à emergência de seu coração aflito. Por um instante, pensou no ambiente do trabalho e intranqüilizou-se. Lembrou-se do encanador Morcegão, comentando que a chefia estava insatisfeita, porque a obra estava atrasada em, no mínimo, um mês. Pensou na bronca que ficaria guardada para o dia seguinte. Maguila, o mestre de obras, lhe flecharia os olhos durante o interrogatório aborrecido:

         – Posso saber o motivo de o senhor haver faltado numa segunda-feira, seu Nepomuceno?

         E, com toda a certeza, lhe jogaria na cara esta frase, tentando inserir-lhe na alma um remorso difícil de sentir:

         – Sabia que a obra está atrasada em quase dois meses, seu Nepomuceno?

         E ele como isso? Se a obra estava atrasada, não era problema dele. Trabalhava no seu ritmo, que era bem mais acelerado que o da maioria dos peões. Eles que contratassem mais empregados. Gente atrás de emprego é o que mais existe. Ele próprio estivera desempregado por dois anos e cinco meses. Mas, isso ocorrera em outra época, quando ainda não havia se tornado um competente apontador. Agora, era diferente! Não ficaria desempregado um dia sequer, caso o Maguila não engolisse a desculpa que haveria de arranjar.

         De qualquer modo, a resposta a ser dada ao mestre de obras, quando fosse sabatinado, ficaria para o dia seguinte. Agora ele não queria mais se aborrecer com esses pensamentos. Precisava se concentrar no que viria pela frente. Afinal, era uma segunda-feira - consultou o relógio: 7 horas e 43 minutos - e ele estava rumando no contra fluxo, fazendo o descaminho de suas obrigações rotineiras, após haver saído de casa pontualmente às 5 horas e 30 minutos, com o objetivo de cumprir a sua jornada habitual.

         Num dia normal, àquela hora, estaria no edifício em construção, aguardando o momento de iniciar os trabalhos. Mas, naquela manhã, as coisas fugiram ao controle. Bastaram três minutos, desde que entrara na padaria, para que toda aquela correria se iniciasse e um turbilhão de pensamentos o levassem a reconsiderar a rotina da segunda-feira e a tomar aquelas medidas, de certo modo, irresponsáveis. Estava olhando a TV, enquanto tomava o seu café. De repente, entrou no ar uma reportagem de grande repercussão, abrindo o telejornal e lhe prendeu a atenção. Aliás, não só a dele, mas de toda a gente que se encontrava na padaria. Todos, sem exceção,  ficaram olhando para a tela, petrificados, pois a imagem, registrada por um cidadão anônimo, através de um desses aparelhos de telefone celular, era consternadora.

         Tratava-se de um homem que, carregando no colo o corpo da esposa, pranteava desesperadamente. O fato havia ocorrido na noite do domingo, no estacionamento de um shopping. O casal fora ao cinema e, na saída, se deparara com um intenso tiroteio entre policiais e assaltantes. Um projetil havia atingido a cabeça da mulher. Ela estava morta, mas o marido não se conformava e queria, por todos os meios, levá-la a um pronto socorro. Chorava e gritava, implorando para que alguém fizesse alguma coisa. Que não a deixassem morrer; que ele não poderia viver sem ela; que ela estava esperando o filho tão desejado; que ela era o único amor da vida dele; que estavam casados há apenas seis meses; que tinham mil planos...

         Gritava essas coisas e a abraçava, manchando de cor púrpura seu rosto sombrio e sua alva camisa, beijando a testa lívida da esposa morta. Por fim, extenuado, sentou-se num canteiro de azaléias, com o cadáver no colo e ficou olhando para o alto, dizendo coisas desconexas, monologando com Deus, enquanto uma pequena multidão começava a se aglomerar em torno da dramática cena.

 

***

        

         Mediante à triste reportagem, houve um silêncio coletivo na padaria. Quando alguém abriu a boca, foi apenas para pronunciar a frase que ficou martelando na cabeça do Nepomuceno até o momento em que ele tomou a decisão de fazer o que fez.

         – Uma pessoa, às vezes, precisa morrer para saber que é amada! – disseram.

         E foi a consternação provocada pela forte cena exposta no telejornal e o apelo emocional desta frase quase sussurrada, que desencadearam nele aquela ebulição interior. Numa fração de segundos, Nepomuceno reviveu toda a trajetória do seu tempestuoso fim de semana. Pensou em Natália e na desastrada atitude tomada no domingo de manhã. Por qual motivo? Lembrava-se lá por qual motivo!? Com toda a certeza, uma quirela; uma frase mal interpretada;  um incidente pueril... Enfim, nada que justificasse um domingo inteirinho de contrariedades.

         E a culpa, de quem fora? Que importava? Passara o dia no boteco, bebendo com os colegas, discutindo futebol, jogando bilhar. Logo ele, que nem gostava  de beber, nem de jogar bilhar e menos ainda de discutir futebol. Fê-los por pirraça; para deixar a esposa sozinha o domingo inteiro. Comera torresmo com farofa no bar, desprezando o almoço delicioso que ela sempre lhe preparava com o maior carinho. Chegara em casa à noite. Natália, deitada, fingira dormir quando ele entrou no quarto para se trocar.

         Nepomuceno passara a noite no sofá da sala, com a televisão ligada. De madrugada, acordara ouvindo uns soluços. Natália estava chorando baixinho, um pranto triste e desconsolado. Aí foi ele que fingiu estar dormindo.

         Saíra de casa às 5 horas e 30 minutos em ponto, sem dirigir-lhe a palavra. Mas, sabia que a esposa se levantara ao ouvi-lo sair. Sabia que ela havia se posicionado atrás da janela da sala e que o observara atravessar a rua, através da veneziana. Sabia que ela pedira a Deus que o protegesse e o trouxesse para casa, à noite. Era o que ela sempre fazia, estivessem brigados ou não.

         A cena da mulher morta nos braços do marido em desespero o fez sentir-se um palerma. Chegou a invejar o rapaz da reportagem. Não por protagonizar uma cena tão trágica, é lógico, mas pela flagrante e sincera demonstração de amor que fizera diante de uma minúscula câmera filmadora que a projetou universo à fora. O oportuno filmador não conseguira enquadrar o rosto da mulher, mas a sua silhueta miúda, a sua negra e encaracolada cabeleira, o seu  jeito frágil e esguio, lembravam a estrutura física de Natália e isto também teve um peso enorme na decisão de Nepomuceno.

         – E se fosse a Natália, ali, morta? – perguntou-lhe uma voz interior.

         E a resposta que obteve de si mesmo foi uma muda, inexorável e desconfortável protuberância que se desenvolveu em sua garganta e o impossibilitou de continuar pensando. Foi então que, num gesto automático, socou o balcão da padaria e disse aquela frase. Não porque ela lhe fizesse algum sentido, mas porque foi a única coisa que conseguiu balbuciar. Maquinalmente!

         – Ao diabo com tudo isto!

         Talvez o “tudo isto” significasse a segunda-feira garoenta e fria; o edifício em construção, nas proximidades do Bexiga; a contrariedade da chefia, porque a obra estava atrasada; o mal-humor do Maguila... Talvez!

         E foi aí que, para espanto de toda a gente que tomava café na padaria, saiu em debandada, descendo a Brigadeiro Luiz Antônio, passando pela Sé e estando agora a caminho de casa, no contra fluxo do trânsito caótico da Radial Leste. A advertência do Morcegão e o aborrecimento do Maguila ficaram em segundo plano. Em primeiro plano, em sua mente abalada pela cena mostrada no telejornal, pulsava a frase sussurrada por alguém que se achava presente na padaria.

         – Uma pessoa, às vezes, precisa morrer para saber que é amada!

         Não era bem assim. Ele amava a esposa e ela não precisaria morrer para saber disto. É certo que nunca o confessara assim, abertamente, mas em seu íntimo não havia a menor sombra de dúvida. Ele a amava e amava também o filho que, há seis meses, se encontrava enovelado no útero dela. Amava-os e a idéia de confessar tal sentimento à esposa somente depois de morta, provocou-lhe um arrepio na espinha.

         Por isso, aquela urgência toda. Nepomuceno temia não chegar em casa a tempo. Parecia apostar corrida com a morte, mesmo sabendo que não havia morte alguma rondando a esposa ou o filhinho concebido há seis meses. Mas sabia, também, que certamente era esse o pensamento do casal, no momento em que saía do cinema do shopping, naquela fatídica noite de domingo.

         De qualquer modo, a pessoa que havia sussurrado tal frase cometera um equívoco, porque ele mesmo, Nepomuceno, estando vivinho da silva, sabia que era amado. Natália não só o dissera muitas vezes, como escrevera em vários poeminhas dedicados a ele. Alma sensível e delicada, vivia a fazer versos que ele fingia ler e gostar, mas que não lhe diziam muita coisa. Mas a frase “eu te amo!” Ah!, esta ele lia, e entendia, e gostava de verdade.

 

***

        

         Às 8 horas e 47 minutos, Nepomuceno desembarcou no ponto de ônibus que ficava próximo de sua casa. Passou na floricultura, comprou um buquê com uma dúzia de rosas vermelhas. Depois foi à confeitaria e comprou sonhos com recheio de chocolate - a guloseima preferida de Natália.

         E foi assim que invadiu a casa naquela fria e garoenta manhã de segunda-feira. Com a alma em festa, enchendo de luz, perfume e sabor o quarto em penumbras, onde Natália ressonava brandamente.

         E foi com beijos que ele acordou a esposa, e a amparou em seu colo, e lhe disse com toda a sinceridade de sua alma que a amava muito, e lhe pediu que perdoasse a sua estupidez. Mas não havia qualquer resquício de mágoa no coração de Natália, que se aninhou nos braços dele e permitiu que duas lágrimas de emoção lhe saltassem dos olhos e rolassem pelo seu rosto, delineando nele o poema mais lindo que até então houvera escrito.

         Num instante, o frio se dissipou, a garoa transformou-se em sol e a segunda-feira acabou se tornando um feliz e ensolarado domingo.


Autor: Roberto de Carvalho


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