Ontem e Hoje



 

ONTEM E HOJE

 

Que ontem éramos mais felizes que hoje, todo o mundo está cansado de saber.

Mas hoje somos mais pobres do que quando éramos pobres; e esta constatação, para mim, foi uma surpresa.

Vim para S,Paulo em maio de 1948 –  60 anos, em tempo real, mais que 600 em termos de progresso e modificações.

Ganhava pouquinho:  800 cruzeiros, contra 600 do salário mínimo.

Mas esforçando-me, podia levar uma vida razoável.

A família era de classe média, morávamos na Vila Mariana, perto do Biológico.

(Foi  lá, naquele jardim, por sinal, que dei meus primeiros beijos àquela que seria depois a minha única e eterna namorada - ela faz que não acredita, mas no fim, acho que concorda)

A região melhorou e piorou, em várias alternâncias, ao longo destes anos todos.

Mas naquele tempo  tínhamos o padeiro que batia na porta de manhã cedo, com pão fresquinho, depois o leiteiro, e o verdureiro e o geleiro ( sim, porque quase ninguém tinha geladeira elétrica e quem tinha mostrava-a e tratava-a como se fosse uma jóia da coroa).

A tarde passavam primeiro o doceiro, com pés de moleque e maria-mole,  e logo depois, o sorveteiro.

Até carne e peixe, em certas ocasiões, comprávamos na porta.

Claro, que nada do que vendiam tinha grande qualidade; mas dava para o gasto.

Picolé com o gosto daquele tempo, por exemplo, nunca mais encontrei. 

E tinha uma grande invenção portuguesa, que naqueles anos todos andou muito na moda: a caderneta.

Era um caderninho sem pretensões, que Você entregava ao seu Manuel; ele  anotava e a devolvia.  Uma vez por semana, ajustavam-se as contas.

Tudo muito simples, sem bancos, sem recibos, sem cheques.

No fio de bigode. Na palavra .E essa valia.

Valia mais do que qualquer papel; se um dos dois discordasse do que estava escrito, se pagava - e se recebia – o que o outro falava.

Sem jurar -  não precisava.   

Se tínhamos ambições? Claro!

Eu,  por exemplo, queria chegar onde estava o meu primo.

Ele era o meu guia, o meu exemplo; o salário dele, depois de vinte anos de trabalho, era de 3,500 cruzeiros.

Era lá que queria estar, e não só pelo “status”; mas porque assim, além de tudo,   poderia fumar Continental, ou até, quem sabe, o lendário Hollywood... em lugar dos terríveis Aspásia, que me davam tosse. . ....

Mas estes são pormenores, sem valor algum.

Não existia televisão.

E esta invenção, no fim, olhando agora, depois de 50 anos, foi mais um prejuízo do que um lucro, nas contas gerais da sociedade. Não quero polemizar com a Globo....

Mas tínhamos o rádio. As estações tinham o prefixo PRA:  PRA 5, PRA 6, PRA 9, e por aí vai.

A Rádio São Paulo, com as dramatizações de livros célebres – sempre resumidos em dois ou três capítulos, porque,  naquele tempo,  respeitava-se o prezado radio ouvinte... 

 A Radio Cultura, que nos levava para uma atmosfera de sonhos, transmitindo concertos e sonatas e noturnos,  dos quais sentimos falta ainda hoje.

E a Gazeta, “o maior auditório do Brasil – uma poltrona em cada lar”  (bem bolado, não?)  com longos  programas inteiros de música americana, Benny Goodman, Tommy Dorsey, Glenn Miller.

Dava até para ir dançar; bailes modestos, nas tardes de domingo, descolando um bilhete grátis de algum clube.

E o cinema? Uma vez por semana, sexta feira a noite – ruim, porque aos sábados se trabalhava ainda -   e voltávamos todos juntos, em bando, com minhas primas e primos, comentando o filme, e discutindo o enredo, a Rita Hayworth, a Vivien Leigh, o Robert Young....odiando os vilões e torcendo pelos mocinhos e mocinhas.....

 

Sei que todos estes nomes não têm sentido, hoje. Mas são apenas um punhado dos muitos que acompanharam os nossos sonhos, a nossa juventude; e devemos a cada um deles um tributo especial.

Bem, como eu disse,  éramos mais ricos quando éramos mais pobres.

É verdade.

 

Possuíamos tudo o que nos era necessário e não desejávamos nada mais; vivíamos com economia e dignidade – e agora parece que as duas não andam mais de acordo.

 

Agora, ninguém mais vem à nossa casa oferecer algum produto honesto, a preço conveniente; temos que lavar, limpar, separar, empacotar e levar o nosso lixo; vamos procurar o jornaleiro; compramos o leite, pasteurizado, higienizado, conservado, limpo e protegido. Mas isso não nos evita, de quando em vez, uma dor de barriga...

 

E os picolés – esses sumiram de vez.  Tem sorvetes industrializados, com uma descrição aproximada do que contêm. Alta química, nenhum sabor, nada de natural. Adeus picolé – feito de  gelo, açúcar e sabor artificial de morango...

 

Em compensação, temos uma porção de necessidades desnecessárias;

Obrigações desobrigáveis; deveres declináveis;  horários adiáveis.

Experimente ficar uma semana sem o celular, sem o telefone fixo, sem a televisão, sem o computador, sem a Internet, sem os seus videogames.

Com sua grande admiração – e desgosto – o mundo não vai cair.

Nada vai acontecer; temos  tempo, na semana que vem,  para saber de um novo furacão nas Filipinas, de um terremoto do Japão, dos resultados de uma eleição na Rússia ou no Paquistão.

 

Afinal, que valor tem isso para nós? Nem mesmo do Senado Federal você vai sentir falta: eu garanto.

Mas em compensação, você verá quanto tempo lhe sobra, para pensar em si, para dedicar-se a si mesmo, para aprender a tocar um instrumento, para contar, estudar e analisar os seus botões, muito mais importantes que a política mundial.

E se for o caso, eu espero por você, na pracinha de sempre, sob aquele carvalho ainda mais velho do que eu, para bater um longo papo – e brigar sobre quem era a parceira do Laurence Olivier , no eterno “Morro dos Ventos Uivantes”... Seria Loretta Young ? Margareth O’Brien ? Lana Turner ?  ou..... nenhuma das anteriores?


Autor: Romano Dazzi


Artigos Relacionados


Mensagem De Natal

ComeÇo De Noite

NÃo Quero Saber

Felicidade Real

O Tempo É Mestre

Como Ganhar Almas

Soneto Da Primeira Estrela