Bolsa Família - uma configuração híbrida



Bolsa Família ─ uma configuração híbrida

 

Um dia desses, em conversa com Luca Matéria, fiquei sabendo que ele, na qualidade de contribuinte, sentia-se mais à vontade com o Programa Fome Zero, do que se sente hoje com o    Bolsa Família.  E foi logo dizendo por que.

 

Inimigo ferrenho do nominalismo em matéria oficial, vale dizer, inimigo de conceitos subjetivos no trato da coisa pública, LM  gostava de ver a expressão Fome Zero  reproduzir  o reconhecimento da fome social e, no mesmo passo, encaminhar o juízo de considerá-la radicalmente intolerável.

 

Demais disso, Fome Zero alertava para a necessidade de estabelecer marcos divisórios entre a fome social, diuturna e mórbida, que dói por fora do estômago, e a fome romântica, trêfega e prazerosa, cuja função precípua   consiste em  espantar o tédio da saciedade.  Simultaneamente, no limite Zero de sua tolerância, Fome Zero descortinava, além de elevados propósitos morais,  a dimensão relativa do tempo. Fome Zero era finito, visto que, logicamente, se extinguiria  com o resgate do último faminto.   Em suma, Fome Zero configurava um primor de clareza e distinção.  

 

Na qualidade de contribuinte, portanto, Mestre Luca sentia-se seguro. A inteireza formal de Fome Zero  desenhava, de modo iniludível, a destinação, o itinerário e a contrapartida social dos desembolsos governamentais.   Distorções, se houvesse, seriam fáceis de identificar e corrigir.

 

Com o advento do Bolsa Família, o contribuinte Luca Matéria percebe desde logo que o nome do Programa ─ Bolsa Família ─ diferentemente de Fome Zero,  não exibe nenhum sinal de finitude, vale dizer, não  engatilha nenhuma intenção de extinguir-se.

 

O raciocínio até que começa bem, começa com Bolsa, que remete à existência de recursos numerários públicos, disponíveis para aplicação gratuita. Mas se desmaterializa em seguida, ao topar com o conceito abstrato de Família.

 

Com efeito, o rótulo de Bolsa Família implica uma configuração híbrida, na medida em que alude simultaneamente a dinheiros concretos, palpáveis, disponíveis, e a uma abstração, a abstração da  Família atemporal, a que os recursos se destinam.   

 

O poder simbólico da Família abstrata, que dá nome ao Programa, é de tal ordem,  que, por si só, justifica todos os desembolsos. Não há nenhuma necessidade de vincular os gastos com a sua aplicação final, ─ seja no leite do bebê, seja no chá de boldo da ressaca adulta. O imaginário popular encarrega-se de contabilizar tudo como doações de um Pai amoroso, a quem cumpre reverenciar e retribuir.

 

E a vertigem da gratidão se acentua  com a facilidade dos pagamentos em espécie.

 

À vista do exposto, o contribuinte Luca Matéria me confessou que descarta a possibilidade de localizar reflexos específicos do Bolsa Família na população, salvo a fidelidade cativa dos elevados índices da popularidade governamental.  

 

Em todo caso, ele circula diariamente pela cidade, praças, praias, periferia, campos de futebol, consultando fisionomias transeuntes.


Autor: Osorio de Vasconcellos


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