A (IM) POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO



1 INTRODUÇÃO

Tanto em âmbito doutrinário quanto em âmbito jurisprudencial, há polêmica no que concerne à possibilidade de o Ministério Público realizar investigação criminal.

O Ministério Público, órgão administrativo, tem como função precípua e irrefutável a fiscalização da atividade policial.

A investigação criminal é de natureza administrativa, e ocorre anteriormente à provocação da jurisdição penal, por isso se fala em fase pré-processual, que se destina à formação da opinio delicti, ou seja, o convencimento do responsável pela acusação.

Outro esclarecimento que deve ser feito, ainda que de forma sucinta, diz respeito à organização da polícia. Há dois tipos de polícia: a administrativa e a judiciária. Esta última é a que nos interessa, pois a polícia judiciária é o órgão responsável, em regra, pela investigação criminal, embora esta tarefa não lhe seja privativa, já que o Código de Processo Penal em seu artigo 4º prevê a mesma atribuição investigatória de outras autoridades. A Polícia Judiciária é composta pela polícia civil (Justiça Estadual) e pela polícia federal (Justiça Federal), ambas têm por objetivo a apuração de infrações penais e de sua autoria (art. 4º - CPP).

2 O MINISTÉRIO PÚBLICO TEM COMPETÊNCIA PARA REALIZAR INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

O Estado Democrático de Direito deve ter mecanismos de controle de seus órgãos públicos. Este controle deve ser efetivado por instituições da sociedade civil, de forma difusa, ou pelos próprios órgãos estatais.[1]

Essa fiscalização não significa violação da autonomia ou independência de órgãos do Poder Público, mas buscam maior eficácia dentro do princípio da legalidade.

Como dito anteriormente, a função principal do parquet é fiscalizar o trabalho da polícia (art. 129, VII – CF). O controle a que cabe o Ministério Público desempenhar está relacionado à atividade apenas da polícia judiciária. Importante ressaltar que o controle da atividade de polícia judiciária não pressupõe vinculação hierárquica entre a autoridade policial e os Promotores de Justiça ou Procuradores da República,avinculação é meramente funcional.[2]

A competência da polícia judiciária de realizar investigação criminal não exclui a competência de autoridades administrativas, a quem por lei sejam cometidas as mesmas funções (art. 4º, § único – CPP). Também órgãos e entidades da Administração direta e indireta poderão exercer função investigatória, desde que prevista em lei, assim como também o parquet.

O STF reconhecia, sem divergências, a natureza constitucional de tais atribuições, conforme se vê no julgamento do HC nº. 77.770/SC, sendo Relator o Ministro Néri da Silveira.

A Suprema Corte vem mudando de entendimento. Atualmente entende que o Ministério Público não pode dirigir investigações típicas das autoridades policiais.

O doutrinador Pacceli entende ser equivocado o argumento em favor da privatividade da investigação em mãos da polícia. No capítulo que versa sobre a Segurança Pública (art. 144 e seguintes da CF) não há previsão de tal exclusividade. A única exclusividade mencionada diz respeito ao disposto no art. 144, § 1º, IV, que confere à polícia federal, exclusivamente, as funções de polícia judiciária.[3]

No campo da hermenêutica gramatical há de se entender que a exclusividade diz respeito unicamente à polícia federal, em relação às investigações da Justiça Federal. Então, somente a polícia federal, e não a estadual, teria privatividade na investigação (art. 144, § 4º - CF), logo não haveria impedimentos às investigações ao Ministério Público dos Estados.[4]

Se considerarmos a vigência de uma Constituição Cidadã, reconhecida por romper com os traços autoritários da ordem política e jurídica anterior, a interpretação de que a vedação à investigação aplica-se apenas ao Ministério Público Federal, deve ser desconsiderada. O Ministério Público dos Estados e o Ministério Público Federal pertencem a uma mesma instituição, a quem cumpre zelar pela defesa da ordem jurídica (art. 127 – CF). O termo "exclusivamente", que se encontra no referido artigo 144, § 1º da CF/88, apenas esclarece que no âmbito das polícias da União (polícia federal, polícia ferroviária federal, polícia militar e polícia rodoviária federal), caberia apenas à polícia federal a função de polícia judiciária.

Importante ressaltar que aqui não se defende a possibilidade do inquérito policial ser presidido pelo parquet. Apenas a Constituição da República reconhece que o Ministério Público tem a titularidade para o exercício de investigações preliminares, acerca de matérias de sua atribuição.

De acordo com o TRF da 4ª Região, em decisão da Relatoria do Desembargador Federal Fábio Rosa: "[...] A Constituição da República não pode ser interpretada às tiras, completamente descontextualizada do seu conjunto. Como se pode observar dos fundamentos exarados no parecer do Ministério Público Federal, a Carta Magna não alijou o parquet da atividade investigativa, ao contrário, conferiu-lhe amplos poderes para a realização de diligências (art. 129, VI e VIII – CF) que poderão auxiliá-lo na formação da opinio delicti [...]" (TRF – 4ª Região, 7ª Turma. Recurso em Sentido Estrito 2002.04.01.052347 – 6/RS).[5]

A Declaração da IX Conferência Nacional de Direitos Humanos (art. 22) confirma expressamente o incentivo que dever ser dado aos poderes investigatórios do Ministério Público, visando proteção mais adequada dos direitos humanos.

Uma denúncia sobre a existência de tortura praticada por agentes e delegados da polícia federal em determinado Estado da Federação foi objeto de investigações administrativas por parte dos membros do Ministério Público. Dessas investigações resultou a instauração de ação penal, destacando-se o voto do Ministro Hamilton Carvalhido: "Não é, portanto, da índole do direito penal a feudalização da investigação criminal na polícia e a sua exclusão do Ministério Público. Tal poder investigatório, independentemente de regra expressa específica, é manifestação da própria natureza do direito penal, da qual não se pode dissociar a da instituição do Ministério Público, titular da ação penal pública, a que foi instrumentalmente ordenada a polícia na apuração das infrações penais, ambos sob o controle do Poder Judiciário, em obséquio do interesse social e da proteção dos direitos da pessoa humana [...]" (Resp. 192.839/RJ).[6]

Eventuais equívocos de membros do parquet não podem ser suficientes para que a Constituição da República seja infringida.

O entendimento atual da Suprema Corte em não reconhecer iniciativa investigatória ao Ministério Público decorre da necessidade de se delimitar as conseqüências jurídicas que poderão resultar de diligências realizadas pelos membros do parquet.

O Ministério Público não pode ajuizar ação penal sem se basear em conjunto indiciário mínimo.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, através da Procuradoria Geral de Justiça, criou, pioneiramente, as chamadas Centrais de Inquérito, com o objetivo de atuar, através das Promotorias de Investigação Penal, nos inquéritos policiais que apuram determinadas infrações penais ocorridas no âmbito de determinadas circunscrições policiais. Essas Centrais de Inquérito constituem um marco na história do Ministério Público fluminense na área criminal, pois dão à sociedade a garantia de que os delitos serão investigados por promotores de justiça com atribuição previamente fixada, respeitando o princípio constitucional do promotor natural.[7]

3 O MINISTÉRIO PÚBLICO NÃO TEM COMPETÊNCIA PARA REALIZAR INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.

O doutrinador Nucci considera inviável que o Promotor de Justiça, titular da ação penal, assuma a postura de órgão investigatório, substituindo a polícia judiciária e produzindo inquéritos visando à apuração de infrações penais e de sua autoria.[8]

Por outro lado, é pacífico o entendimento de que o representante do Ministério Público deve acompanhar o inquérito policial, intervindo nas investigações, participando da coleta de provas, requisitando diligências, etc., ou seja, funções que lhe são próprias.

A Constituição Federal é clara quando estabelece as funções das polícias federal e civil para investigar e servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário (art. 144 – CF). Ao Ministério Público cabe apenas a titularidade da ação penal.

O artigo 129, III da CF prevê a possibilidade do promotor elaborar inquérito civil, jamais inquérito policial.

Para aparelhar a contento o órgão acusatório oficial do Estado, atribuiu-se ao Ministério Público o poder de expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos, a possibilidade de exercer o controle externo da atividade policial, o poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial.[9]

Cabe ao parquet requisitar a instauração da investigação pela polícia judiciária, controlar o desenvolvimento da persecução investigatória, requisitar diligências e, ao final, formar sua opinião, optando por denunciar ou não eventual pessoa apontada como autora. O que não é permitido constitucionalmente é que o Ministério Público produza sozinho a investigação.[10]

Os que discordam da atuação do Ministério Público argumentam que não há previsão legal legislativa que confira ao parquet a possibilidade de realizar investigações criminais. Alegam que tem havido abusos por parte dos membros do Ministério Público quando investigam por conta própria.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sistema processual penal foi elaborado para apresentar-se harmônico e equilibrado. Permitir que o parquet produza sozinho investigações criminais, isolado de qualquer fiscalização, sem a participação do indiciado, que nem seria ouvido, quebra completamente a harmônica e garantista investigação de uma infração penal.

Maurício Henrique Guimarães Pereira acrescenta que a investigação criminal conduzida exclusivamente pelo representante do Ministério Público provoca o desequilíbrio das partes do eventual futuro processo, pois, importantes provas são produzidas nessa fase, como as periciais e a busca e apreensão. Então, segundo seu entendimento, melhor mesmo manter a autoridade policial à frente das investigações, pois este não será parte da relação processual.

REFERÊNCIAS

JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, 11 ed. rev. e atual. Editora Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2005;

OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal, 6 ed. rev. atual. e amp. Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2006;

NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3 ed. rev. atual. e amp. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007;

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 6ª Ed. rev. amp. e atual. Editora Lúmen Júris. Rio de Janeiro, 2002.


[1] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, 11 ed. rev. e atual. Editora Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2005, p. 325.

[2] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, 11 ed. rev. e atual. Editora Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2005, p. 326 e 327.

[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal, 6 ed. rev. atual. e amp. Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2006, p.62.

[4] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal, 6 ed. rev. atual. e amp. Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2006, p.62.

[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal, 6 ed. rev. atual. e amp. Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2006, p.64.

[6] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal, 6 ed. rev. atual. e amp. Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2006, p.65.

[7] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 6ª rev. amp. e atual. Editora Lúmen Júris. Rio de Janeiro, 2002, p. 93.

[8] NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3 ed. rev. atual. e amp. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007, p. 130.

[9] NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3 ed. rev. atual. e amp. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007, p. 130.

[10] NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3 ed. rev. atual. e amp. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007, p. 130.


Autor: FLÁVIO FARIAS


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