CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS: LIVRE CONCORRÊNCIA E DEFESA DO CONSUMIDOR



O aparente conflito entre dois dos princípios da ordem econômica: a livre concorrência e a defesa do consumidor é o tema deste artigo. Procuramos iniciar o estudo do tema proposto, fazendo uma abordagem sobre a proteção constitucional do consumidor. Em seguida tratamos da relação entre os direitos do consumidor e os direitos humanos. Buscamos, com respaldo na melhor doutrina, mostrar a importância de se assegurar os direitos do consumidor, como garantia da própria dignidade da pessoa humana. Tratamos, ainda, da problemática dos conflitos entre direitos fundamentais, apresentando propostas da doutrina para solução desses conflitos aparentes, dando especial atenção ao princípio da proporcionalidade. Por fim, abordamos especificamente, o conflito entre a defesa do consumidor e a livre concorrência.

INTRODUÇÃO

As modificações socieconômicas, ocorridas principalmente com a revolução industrial, caracterizadas pela massificação dos contratos e o avanço tecnológico, acarretaram uma necessidade de maior intervenção do Poder Público sobre as relações privadas[1].

A despatrimonialização dos chamados direitos privados significou a revalorização da pessoa e dos direitos extrapatrimoniais existentes, fruto da construção de uma consciência da necessidade de se promover a proteção personalíssima, nas sociedades pós-industriais ou da informação, inclusive sob a forma de tutela transindividual dos interesses[2].

Seguindo essa tendência, a Constituição da República Federativa do Brasil, que adotou posição social-liberal consagrou em seu art. 170, como princípios da ordem econômica, a livre concorrência (inc. IV) e a defesa do consumidor (inc.V).

Da conjugação desses dois princípios resulta que a liberdade econômica ou liberdade de empresa não representa um valor absoluto, devendo respeitar os direitos do consumidor[3].

Assim, o Estado brasileiro, tendo adquirido, conforme já se assinalou, uma conformação social-liberal não pode atuar em conflito com a livre iniciativa, a não ser nas hipóteses excepcionadas pela própria Constituição, que se verifica, por exemplo, quando a empresa, no exercício de sua liberdade econômica, atenta contra direitos básicos do consumidor. Em tal hipótese, o Estado reage por intermédio de seus órgãos de proteção e defesa do consumidor, reprimindo a atuação abusiva e nociva da empresa, mediante a aplicação da legislação consumerista, francamente limitadora da liberdade econômica.

Portanto, a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica infiltra-se, como valor, na iniciativa privada e na intervenção estatal no domínio econômico, de modo que fica impossível não associá-la à atividade econômica, sendo que a defesa do consumidor, por sua vez, não pode chegar ao ponto de inviabilizar a livre iniciativa, igualmente protegida através de princípio constitucional.

Analisar o conflito aparente entre os princípios da livre concorrência e a defesa do consumidor, buscando soluções que visem harmonizá-los, vez que ambos, como princípios da ordem econômica, são fundamentais para se alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, é o tema desse trabalho.

1. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR

A Constituição de 1988 institucionalizou a instauração de um regime democrático no Brasil e introduziu indiscutível avanço na consolidação das garantias e direitos humanos, buscando a proteção de setores mais vulneráveis da sociedade brasileira.

Já no caput do art. 5° (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), a Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, acrescentando em seus incisos outros direitos do homem, dentre os quais o direito do consumidor (inc. XXXII).

Assim, percebemos que a constituição elevou a defesa do consumidor a direito fundamental (art. 5º, XXXII) e princípio da ordem econômica (Art. 170, V).

Essa colocação da defesa do consumidor como um dos princípios da ordem econômica é muito bem justificada por José Geral Brito Filomeno que enfatiza "a defesa da ordem econômica tem como razão final a proteção dos consumidores, eis que destinatários finais de tudo que é produzido no mercado, seja em matéria de produtos, seja na de serviços".[4]

Não podemos deixar de perceber, também, que a defesa do consumidor, sob uma perspectiva normativa brasileira, está prevista na Constituição de 1988 como um direito fundamental do homem, relacionando, claramente, a defesa do consumidor com os direitos humanos.[5]

2.DIREITOS DO CONSUMIDOR E DIREITOS HUMANOS

Os direitos do consumidor, em última análise, são direitos humanos universalmente reconhecidos, posto que buscam tutelar o respeito à dignidade, à saúde, à segurança e à educação do homem enquanto destinatário final das relações de consumo[6].

Para Norberto Bobbio[7] a maior preocupação da atualidade deve ser a criação de instrumentos para a garantia dos direitos humanos.

Assim, encontramos no direito do consumidor muitos instrumentos que garantem a efetividade dos direitos fundamentais, vez que seu fim último é o de assegurar a dignidade do homem que participa da relação de consumo, na figura do consumidor.

2.1. Dignidade da Pessoa Humana e Defesa do Consumidor

Em seu art. 170, a constituição da República Federativa do Brasil preceitua que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" e, em seus incisos, exige que sejam observados determinados princípios, dentre os quais o da defesa do consumidor (inc.V).

Nas palavras de José Afonso da Silva a dignidade humana merece destaque especial, pois ela é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais.[8]

Portanto, a violação a qualquer direito humano constitui violação da dignidade do homem, e a compreensão do significado da dignidade da pessoa humana só é possível por meio da compreensão de todos os diretos humanos[9].

Assim, consiste a defesa do consumidor em norma imperativa, de caráter intervencionista do Estado, e visa a garantir que a proteção do consumidor prevaleça, sempre, em relação aos interesses das partes que contratam em uma relação de consumo, para que os direitos humanos sejam efetivamente protegidos.

Dessa forma, para que a pessoa tenha dignidade é preciso que lhe seja assegurada a sua defesa quando inserida no pólo passivo de uma relação de consumo.

2.1.1.O Código de Defesa do Consumidor e a Dignidade da Pessoa Humana

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor reafirma direitos humanos clássicos, adaptados à realidade do mercado de consumo, enfatizando que:

"a política nacional das relações de consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e a harmonia nas relações de consumo.[10]

Percebe-se claramente, que a edição do código de proteção e defesa do consumidor representou um instrumento concreto para a efetivação dos direitos humanos, criando obrigações específicas para os fornecedores, bem como definindo sanções para o caso de seu descumprimento[11].

Portanto, trata-se de uma norma de proteção do consumidor e não apenas um regramento das relações de consumo, vez que o consumidor é reconhecidamente a parte vulnerável nessa relação (art. 4º, Inc. I do CDC).

Na sociedade contemporânea, onde o consumo é imanente do ser humano, estamos em situação de extrema dependência em relação à prestação de serviços e à aquisição de produtos produzidos por terceiros (fornecedores), os quais são imprescindíveis para a garantia de uma vida digna.

A Declaração dos Direitos do Homem (1948) reconhece, em seu art. XXV que "todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis..."[12].

Assim, a interferência do Estado nas relações de consumo visa a garantir a dignidade do homem-consumidor, através da imposição de normas de ordem pública e interesse social (art. 1º do CDC) capazes de garantir a liberdade de contratação do consumidor.

O direito do Consumidor representa uma meta de igualdade material que corporifica no campo contratual o ideal da eqüidade.

3. PRINCÍPIOS GERAIS DA ORDEM ECONÔMICA: LIVRE INICIATIVA, LIVRE CONCORRÊNCIA E DEFESA DO CONSUMIDOR

Os Princípios definem as metas a serem buscadas pelo legislador e pelo aplicador da lei. Configuram parâmetros previamente estipulados e que norteiam o ordenamento jurídico[13].

Todavia, princípios são normas e não meros instrumentos de hermenêutica, conforme ensinamento de Alexy, citado por Gilmar Ferreira Mendes[14], onde registra a diferença entre princípios e regras:

"Segundo a definição básica da teoria dos princípios, princípios são normas que nos permitem que algo seja realizado, da maneira mais completa possível, tanto no que diz respeito à possibilidade jurídica quanto à possibilidade fática. Princípios são, nestes termos, mandatos de otimização (Optimierungsgebote)... O processo para a solução de colisões de princípios é a ponderação. Regras são normas que são aplicáveis ou não-aplicáveis. Se uma regra está em vigor, é determinante que se faça exatamente o que ela exige: nem mais e nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no contexto fático e juridicamente possível. São postulados definitivos (definitive Gebote). A forma de aplicação das regras não é a ponderação, mas a subsunção".

Assim, por certo que os princípios máximos de um ordenamento estão guardados em sua Lei Fundamental, ainda que de forma implícita[15].

O princípio da livre iniciativa, inserido no título I da Constituição Federal (Dos Princípios Fundamentais), tem o objetivo de orientar não só texto constitucional, mas todo o ordenamento jurídico, ou seja, é o núcleo de interpretação de todo o sistema jurídico[16].

Mas é necessário frisar, antes de tudo, que não é incomum que dentro de um mesmo texto constitucional estejam prescritos princípios aparentemente conflitantes, mas que na verdade devem ser aplicados harmonicamente.

Podemos perceber claramente essa aparente situação de colisão no art. 170 da Constituição Federal. Isto porque o referido artigo consagra a defesa do consumidor como princípio geral da atividade econômica, a qual é fundada, por força do mesmo preceito constitucional, na livre iniciativa.

Portanto, a natureza de princípio confere à defesa do consumidor a condição de característica da atividade econômica, a qual só poderá ser considerada lícita se obedecer aos princípios fixados constitucionalmente (Art. 170 e incisos da Constituição Federal)[17].

A Defesa do consumidor, seja transfigurada como direito fundamental ou como princípio, revela-se como verdadeiro limite à iniciativa privada e é apresentada como uma espécie de princípio densificador de outros princípios, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana[18].

Percebe-se, assim, que os direitos do consumidor, nada mais são do que uma densificação dos princípios gerais da iniciativa privada e da dignidade da pessoa humana. A defesa do consumidor constitui subprincípio para o qual convergem os princípios estruturantes acima citados[19]. Então, não há o que se cogitar de conflito entre a livre iniciativa e a defesa do consumidor, vez que aquela só é tida como princípio constitucional quando exercida com observância dos direitos do consumidor[20].

3.1. Livre Iniciativa e Livre Concorrência

A livre iniciativa é enunciada no texto constitucional como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e como um dos fundamentos da ordem econômica (art. 170, caput).

A livre concorrência é um dos princípios da ordem econômica, previsto no inc. IV do citado art. 170 da Constituição Federal.

Portanto, a análise da livre iniciativa é complementada pelo princípio da livre concorrência[21].

Segundo Eros Roberto Graus[22] a livre iniciativa é conceito extremamente amplo e expressa desdobramento da liberdade. Sob uma perspectiva substancial, pode ser considerada tanto como resistência ao poder, quanto como reivindicação por melhores condições de vida, em uma perspectiva substancial, vez que é inconcebível a liberdade daquele que desconhece a possibilidade de reivindicar alternativas de conduta e de comportamento, bem como não se pode considerar livre aquele a quem é negado tal acesso. Se examinada sob uma perspectiva institucional é tida como objeto de reconhecimento jurídico e sistematização positiva.

Assim, o perfil da liberdade é o definido pela ordem jurídica (liberdade política, econômica, intelectual, artística, de ensino, de palavra, de ação etc) [23]. Portanto, vê-se que a livre iniciativa não pode ser reduzida à feição que assume como liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica. Não é ela mera afirmação do capitalismo, apesar de se reconhecer que uma de suas faces é a liberdade econômica, ou liberdade de iniciativa econômica, cujo titular é a empresa[24].

Mas, como já dissemos, a livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho, vez que ela é um modo de expressão do trabalho, conseqüência da valorização do trabalho, do trabalho livre. Por esta razão a constituição coloca, lado a lado, no caput do art. 170, trabalho humano e livre iniciativa, defendendo a valorização do primeiro.[25]

Sobre o assunto importante citar as ponderações de Tércio Sampaio Ferraz Júnior[26] : "Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói..." A livre concorrência, no sentido que lhe é atribuído- "livre jogo das forças de mercado, na disputa da clientela"-, supõe desigualdade ao final da competição, a partir de um quadro jurídico-formal de igualdade[27].

A livre concorrência tratada na constituição como um dos princípios da ordem econômica não é a que exige pluralidade de agentes e influência isolada de uns sobre os outros. Para ele "Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez". E é este elemento comportamental- a competitividade- que define a livre concorrência.

A competitividade exige, por sua vez, uma descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço.[28]

Assim, temos que a livre concorrência, corolário direto da liberdade de iniciativa, expressa a opção pela economia de mercado. Portanto, espera-se que a competição entre os agentes econômicos, de um lado, e a liberdade de escolha dos consumidores, de outro, venham a produzir os melhores resultados sociais: qualidade dos bens e serviços e preço justo.

A livre concorrência é uma das formas de se proteger os direitos do consumidor e garantir igualdade entre os agentes econômicos[29].Portanto, a atividade econômica deve obedecer e respeitar os limites estabelecidos no ordenamento jurídico evitando abusos, deslealdade, e até mesmo a concentração de poder, o que pode prejudicar e muito os consumidores.

Para se obter um funcionamento adequado do mercado é preciso que haja liberdade individual dos agentes econômicos e dos consumidores, para que possam tomar suas decisões econômicas em um ambiente de livre concorrência[30]. Por certo a liberdade de escolha é a essência da soberania do consumidor que as normas de defesa da concorrência, juntamente com os direitos do consumidor, buscam tutelar.

3.2. A necessidade de tutela estatal para a defesa do consumidor

A necessidade de proteção do consumidor ganhou maiores proporções quando se tornou notória a sua fragilidade frente ao poderio econômico que surgiu com a produção em massa e a padronização dos contratos[31].

O controle do mercado pode ser feito de dois modos básicos: o privado, onde os próprios atores (consumidores e fornecedores) buscam solução para os seus conflitos, através da auto-regulamentação, encarregando-se de extirpar as práticas perniciosas, e o intervencionismo estatal. Esse segundo não exclui o primeiro, mas funda-se em normas imperativas de controle do mercado de consumo e, via de conseqüência, do relacionamento consumidor-fornecedor.[32]

Nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado (auto-regulamentação).

Muitos países adotam leis esparsas de proteção dos consumidores. O Brasil foi o pioneiro na codificação do Direito do Consumidor, sendo uma decisão da Assembléia Nacional Constituinte.[33]

4.COLISÃO APARENTE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS:PRINCÍPIOS ESPECIAIS DE HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

O pluralismo de idéias existente na sociedade é projetado na constituição, sendo acolhido através de seus princípios, valores e interesses dos mais variados. Esses princípios entram, às vezes, em tensão na solução de casos concretos[34], cabendo ao intérprete fazer escolhas fundamentadas, quando se depara com antagonismos inevitáveis[35].

Para solucionar tais conflitos a doutrina aponta a técnica da ponderação, uma técnica de decisão jurídica, aplicável a casos difíceis, onde o intérprete terá de elaborar um raciocínio complexo, analisando todos os elementos normativos que incidirem sobre o conjunto de fatos analisados, considerando cada um conforme sua importância naquele caso concreto.

Deverá o exegeta, fazer um verdadeiro sopesamento e balanceamento de interesse, bens, valores ou normas[36]. Mas, na verdade, de acordo com os princípios da nova hermenêutica Constitucional, as normas constitucionais não entram em colisão, uma vez que há critérios para que a jurisprudência realize a mencionada ponderação. Desta forma, diante do princípio interpretativo da Unidade da Constituição há que se buscar uma aplicação harmônica do direito.

É certo que o postulado da dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da ordem constitucional e requer posição especial frente a outros preceitos constitucionais[37].

Assim, em caso de eventual conflito entre direitos fundamentais, devem ser levados em conta, no juízo de ponderação, os valores relativos a esse princípio (inviolabilidade da pessoa humana, respeito à sua integridade física e moral, inviolabilidade do direito de imagem e da intimidade).

Na tentativa de auxiliar o intérprete a encontrar a decisão mais justa, e diante da colisão de dois ou mais direitos fundamentais no caso concreto, considerando que as normas constitucionais apresentam especificidades que a singularizam, tais como: superioridade jurídica, a natureza da linguagem, o conteúdo específico e o caráter político, a doutrina desenvolveu os chamados princípios instrumentais de interpretação constitucional[38]. Os principais, dentre outros, são os já citados, princípio Unidade da Constituição e princípio da proporcionalidade ou razoabilidade e o princípio da Supremacia da Constituição e princípio da concordância prática ou harmonização.

O princípio da Supremacia da Constituição impõe a prevalência da norma constitucional sobre as demais normas do sistema. A supremacia da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade[39].

O princípio da unidade da constituição determina a análise do texto constitucional como um todo, como um sistema que necessita compatibilizar preceitos divergentes, surgindo para o intérprete o ônus de detectar na Constituição as normas pertinentes ao caso, identificar eventuais conflitos entre elas e considerá-las em conjunto para sua solução[40].

O princípio da cedência recíproca (concordância prática ou harmonização), estabelece que os direitos em colisão devem ceder reciprocamente, permitindo a existência de um ponto de convivência entre eles, ou seja, esse princípio não permite que se privilegie uma das posições em conflito em detrimento da outra, mas recomenda uma compatibilização adequada[41] .

Portanto, a concordância prática, ou princípio da harmonização, expressa uma conseqüência lógica do princípio da unidade da constituição, pois, conforme aquele, os valores e direitos fundamentais devem ser harmonizados, no caso concreto, por meio de juízos de ponderação, que vise concretizar ao máximo os direitos constitucionalmente protegidos, não se devendo desprezar um direito a custa da prevalência do outro.

O princípio da proporcionalidade caminha junto com o princípio da razoabilidade, formam uma espécie de parceria: significam a ponderação entre os meios empregados e os fins atingidos: é a busca do razoável. Manifesta-se como um senso de justiça, balizador do juízo de ponderação a ser realizado pelo intérprete no caso concreto e tem seu fundamento nas idéias de devido processo legal substantivo e na de justiça[42].

Para a realização da ponderação de interesses constitucionais, o princípio da proporcionalidade mostra-se essencial, pois o raciocínio que lhe é inerente, relativo às suas três etapas, é o mesmo que deve ser aplicado na ponderação[43]. O interprete deverá buscar um ponto de equilíbrio entre os interessem em jogo, que atenda aos seguintes reclamos: a) a restrição de cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) tal restrição deve ser a menor possível a fim de proteger o direito contraposto; c) o benefício alcançado com a restrição de um dos interesses deve compensar o sacrifício imposto ao interesse antagônico[44].

Percebe-se que a técnica da ponderação, como técnica de decisão, confere um grande grau de discricionariedade ao intérprete. Todavia, o controle das decisões judiciais baseadas no juízo de ponderação, tem sido feito pelo exame da argumentação desenvolvida[45].

É certo que a constituição de 1988 conferiu ao cidadão o direito a uma decisão fundamentada, seja administrativa ou judicial, nos termos do art.93, IX, ou seja, a necessidade de motivação das decisões judiciais ou administrativas assumiu um status de imperativo constitucional[46], com o fim de garantir o próprio Estado Democrático de Direito, e o controle democrático de suas decisões, não podendo o judiciário, ou mesmo o executivo, impor suas ordens coativamente, mas apenas com fundamento na lei.

4.1. Defesa do Consumidor X Livre concorrência

Como vimos, a existência de conflitos entre normas constitucionais é visto com naturalidade, posto que a constituição é um documento dialético que contempla bens jurídicos que se contrapõem[47].

Assim, o princípio da livre iniciativa consubstancia fundamento da ordem econômica brasileira, consoante se infere do art. 170 da CF/88, mas esta liberdade de iniciativa não pode ser exercida despoticamente. Encontra limites dentro do próprio art. 170, precisamente no inciso V, que traz como princípio da ordem econômica a defesa do consumidor.

O princípio da unidade constitucional, já mencionado, não permite possa o intérprete enxergar hierarquia entre os dispositivos constitucionais, os quais devem harmonizar-se.

Assentadas estas premissas, passemos à questão da tensão entre princípios propriamente dita.

A doutrina propõe, como já dissemos, a técnica da ponderação de interesses como meio de solução de dita colisão entre princípios constitucionais. Sobre a ponderação de interesses, importante é a lição de Daniel Sarmento:

"Tal método caracteriza-se pela sua preocupação coma a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição do 'peso' específico a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência, essenciais à definição do resultado da ponderação."

"A relevância conferida às dimensões fáticas do problema concreto, porém, não pode jamais implicar na desconsideração do dado normativo, que também se revela absolutamente vital para a resolução das tensões entre princípios constitucionais. Afinal, a Constituição é, antes de tudo, norma jurídica, e desprezar a sua força normativa é desproteger o cidadão da sua garantia mais fundamental." (...)

"Por outro lado, a ponderação de interesses constitucionais não representa uma técnica amorfa e adjetiva, já que está orientada em direção a valores substantivos. Estes valores, que não são criados mais apenas reconhecidos e concretizados pela ordem constitucional (dignidade humana, liberdade, igualdade, segurança etc.), guiam o processo de ponderação, imprimindo-lhe uma irrecusável dimensão axiológica."[48]

Completando o raciocínio acima, afirma Humberto Ávila:

"A ponderação de bens consiste num método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem referencias a pontos de vistas materiais que orientem esse sopesamento. Fala-se, aqui e acolá, em ponderação de bens, de valores, de princípios, de fins, de interesses. Para esse trabalho é importante registrar que a ponderação, sem uma estrutura e sem critérios materiais é instrumento pouco útil para a aplicação do Direito. É preciso estruturar a ponderação com critérios."[49]

A melhor doutrina sinaliza para a adoção do princípio da proporcionalidade como o critério mais adequado à ponderação de interesses. Vejamos a lição de Daniel Sarmento:

"O princípio da proporcionalidade é essencial para a realização de ponderação de interesses constitucionais, pois o raciocínio que lhe é inerente, em suas três fases subseqüentes é exatamente aquele que se deve utilizar na ponderação.

Na verdade, ponderação e proporcionalidade pressupõem-se reciprocamente, representando duas faces de uma mesma moeda. Como afirmou Willis Santiago Guerra Filho a propósito do princípio da proporcionalidade, é ele que permite fazer o 'sopesamento' (Abwägung, balancing) dos princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e bens jurídicos em que se expressam, quando se encontrem em estado de contradição, solucionando-a de forma que maximize o respeito de todos os envolvidos no conflito.

Com efeito, na ponderação, a restrição imposta em cada interesse em jogo, num caso de conflito entre princípios constitucionais, só se justificará na medida em que: a) Mostrar-se a apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, b) não houver solução menos gravosa, e c) o benefício logrado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico.

Portanto, as ponderação de interesses não representa uma forma de decisionismo judicial disfarçado, já que seu método pauta-se pelo princípio da proporcionalidade, cujos critérios podem ser aferidos com certa objetividade."[50]

Suzana de Toledo Barros esclarece que tal tríplice aspecto, na verdade, constituem subprincípios que integram o princípio da proporcionalidade. Logo, a adequação "traduz-se em uma exigência de que qualquer medida restritiva deve ser idônea à consecução da finalidade perseguida, pois, se não for apta para tanto, a de ser considerada inconstitucional."[51]

Já o subprincípio da necessidade, prossegue esta mesma autora, "é o de que a medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou de outro direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa."[52]

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, nas percucientes palavras de Humberto Ávila, "exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais".[53]

Percebe-se que a compressão que se faz de um princípio deve limitar-se àquele mínimo necessário a fazer valer outro princípio que, num determinado caso, venha preponderar.

Portanto, o exercício da livre iniciativa (fundamento da ordem econômica brasileira, conforme se vê do caput do art. 170) não pode ser em caráter absoluto. Deve observar os princípios que lhe regem, dentre os quais, repita-se, o da defesa do consumidor.

Havendo conflito, ainda que aparente, entre os princípios da defesa do consumidor e da livre concorrência, aquele deverá prevalecer, pois é o mais relevante[54], face à sua fundamentalidade e considerando a sua posição topológica na Constituição Federal (art 5º, XXXII). Outrossim, porque está ele previsto como um dos princípios da ordem econômica brasileira (art. 170, V).

Por fim, um conflito normativo deve ser resolvido em favor da solução que esteja amparada no maior número de normas possíveis[55], no caso em comento o direito do consumidor. Todavia, A aniquilação de um princípio por outro é proibida, uma vez que isto configuraria desproporcionalidade e imperdoável inconstitucionalidade.

Assim, longe de serem conflitantes, os princípios da defesa do consumidor e da livre concorrência harmonizam-se, pois deve ser considerada a dignidade da pessoa humana como princípio vetor de toda a ordem constitucional e que se sobrepõe à própria ordem econômica, vez que elevada a princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF)[56].

CONCLUSÃO

Restou demonstrada, nesse trabalho, a relação direta entre a dignidade da pessoa humana e o direito do consumidor, vez que a defesa do consumidor, como princípio da ordem econômica, é definida como um dos elementos essenciais para a garantia da dignidade humana.

Conclui-se que o mercado só existe em função do consumidor, pois as normas concorrenciais têm como destinatário econômico o consumidor.

A manutenção de um mercado competitivo garante preços mais baixos, maior qualidade e variedade de produtos e serviços e amplo acesso a informações aos consumidores.

Assim, fica evidente que não é possível a aplicação separada das normas de defesa do consumidor das normas de defesa da concorrência, visto que ambas tutelam, ainda que indiretamente no caso da segunda, os interesses dos consumidores.

Portanto, para a construção de uma política econômica que consiga efetivamente harmonizar as relações de consumo é necessária, também, a efetivação de uma política de defesa da concorrência e, havendo, no caso in concreto, tensão entre os dois princípios- defesa do consumidor e livre concorrência- deve prevalecer o primeiro, vez que tutela a dignidade da pessoa humana, fundamento do nosso ordenamento jurídico.

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Autor: LUCIENE DANTAS


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