O Incrível Caso de Howard Bottom



Um livro contém muitas citações. Às vezes elas são diversas à realidade. Apresentam episódios raros e condições absurdas. E nestes casos é que o escritor Howard Bottom infundia-se em sensações que recordava ter vivido, para que os seus personagens ganhassem vivacidade, superando a verossimilhança.

Uma vez Bottom reuniu numa de suas obras os sucessos de um herói brasileiro inspirando-se em seu avô, que havia falecido há alguns meses. Sentiu-se tão instigado com o enredo que escreveu durante cinquenta e uma horas ininterruptas. Narrava os feitos e sucessos de um homem que enfrentava preconceitos diversos, mas por fim se torna um herói consagrado em seu tempo.

A nova obra do escritor Howard Bottom contaria a história de um assassino em série. O narrador teria uma indispensável onisciência, pois contaria detalhes sobre as sensações do personagem ao realizar um homicídio e também detalharia a dor e o medo das vítimas do megalomaníaco.

Para que a narração fosse dramática e extraordinária, o autor compreendeu que deveria fazer pelo menos uma vítima. Reconheceu abruptamente que o caminho seria penoso, mas para ele valeria a pena, uma vez que se teria o resultado desejado.

Primeiramente deveria fazer como um assassino cruel e alienado, selecionando a sua vítima de uma maneira aleatória, porém seguindo alguns critérios que proporia. Uma vez escolhida a vítima, deveria procurar saber sobre a sua vida, abarcando-lhe todos os fatos corriqueiros.

Sequencialmente, Howard distinguiria o local para realizar o crime. Deveria ser isolado, distante da sua morada.

Pensava em torturar a sua vítima e reciprocamente descrever os fatos, sensações e desejos intrínsecos.

O seu personagem chamar-se-ia David Sherlock e possuiria um caráter dócil e enlevado. Conquistaria as suas vítimas e as atrairiam até uma armadilha de morte.Cogitava que o protagonista seria um mentecapto e pesquisava o nome de uma síndrome para justificar os seus atos e para atrair o leitor mais exigente.

Enfatizaria os bastidores dos sentimentos inerentes aos personagens, conduzindo o leitor cativo para o enredo de forma a pressionar-lhe em prosseguir.

Foi assim, arquitetando o crime bárbaro, que se aproximara de uma jovenzinha de apenas treze anos de idade que habitava o mesmo prédio. Era a mais bela criatura que já havia visto. A garota era loira, tinha os olhos azul-claros, já brotava em si uma magnífica mulher de seios fartos e de corpo formoso.

Inicialmente Howard se apaixonara pela menina, seguindo-lhe os passos como se fosse o seu guarda-costas; em seguida percebeu que a mocinha ficava de namoricos com dois ou três rapazes, sempre discutia com a mãe e era energeticamente desobediente. Segundo imaginava, esta seria a justificativa do homicida, ela matava aqueles que pareciam representar um problema à sociedade, com vícios e sem admoestações. Por isso não sentiu mais remorso pelo plano de assassínio e julgou-se além de escritor, justiceiro.

Repare a severidade deste crime que relato. O famoso escritor Howard Bottom acaba de incorporar o personagem perverso que criara.

Uma vez ele enredara a história de um estuprador maníaco; então o que não teria feito este nosso autor?

Hoje me dão arrepios ao recordar e imaginar os fatos que se seguem. A tal menina sofrera muitos apuros nas mãos deste louco. Oh, Deus, salve aquela pobre alma! E se o leitor não suportar cenas de crimes bárbaros, muito sangue e agonia, então não persista nestas narrações.

Havia escrito o Sr. Bottom em seu livro Sangue de Inocentes:

"Sherlock sentiu como se efetivamente algo dentro de si se alegrasse diante da barbárie que se instalava. A vítima gritava com uma voz rouca e fremente, tentava pedir socorro, mas não podia, uma vez que a sua boca encontrava-se selada. Removeu-lhe um olho com o uso de um instrumento cortante, porém saiu-lhe muito sangue... Ele então sorriu, imaginando o que mais lhe faria.

"— Minha cara, o caso é que és muito libertina! — fez-lhe muito agrado avistar lágrimas e muito, muito sangue daquela jovem, antes esbelta e desejada. — Que linda que estás!

"Admirou-lhe por um longo período. Aquilo era obra sua, sentia-se um deus, pois poderia arquitetar um outro modelo que idealizava e modelava à sua forma.

"E a sua arcada, achou-lhe voraz. Tirou-lhe prontamente o esparadrapo da boca, fez-se logo de um alicate e arrancou-lhe dente por dente com suma paciência e apreço. A moça então desfaleceu ao fim do processo, mas o seu coração ainda pulsava.

"Refletiu mais um momento e pensou em arrancar-lhe as unhas. Elas eram longas e vistosas. Todavia esperava acordá-la a fim de ver-lhe a reação. Deste modo, pegou um balde de água, encheu-lhe até a borda e despejou tudo por cima da jovem, que se assustou e começou a gemer ininterruptamente. Ao perceber que ela havia despertado, se pôs a extrair-lhe as unhas, ao passo que a jovem tentava gritar, mas lhe faltava recurso. Abruptamente ela escondeu uma mão sussurrando "Por favor!". O corpo da jovem encontrava-se espasmódico, ela estava em estado de choque.

"A vítima começou a orar com a boca envolvida de sangue e com palavras que saiam quase incompreensíveis e debulhadas: — Meu senhor, faço um enorme apelo: me leve para os teus braços, perdoe-me as iniquidades, pois não suporto mais tanta dor. Mas por que me castigas? — depois disso ela desmaiou novamente, só que desta vez o espasmo fez-se mais forte, o seu corpo todo tremia, chocando-se contra a cadeira em que jazia e encontrava-se amarrada.

"Sherlock esperou um minuto e se retirou do local, deixando a vítima em estado de estupor. Enquanto isso, algumas moscas envolviam todo o corpo da jovem, que jazia agora inerte."

Infelizmente não foram estas as únicas investidas do personagem, que torturou ainda mais a moça. Conta Howard que, ao retornar àqueles aposentos de morte, ela gemia com o pior dos gemidos que se ouviu sobre a terra, e então Sherlock ingressou com um machado e extirpou pernas e braços da jovem, que fenecera em seguida.

Foi assim que, ao chegar à tarde do dia vinte de fevereiro de dois mil e nove, encontramos, eu e a equipe do delegado Roberto, o corpo de uma jovem identificada como Kelly Amaury, de apenas treze anos de idade. Haviam sinais expressivos de decomposição. Ela havia sido torturada, segundo o laudo da perícia, e o seu corpo estava completamente dilacerado devido à ação do tempo e à atuação de aves de rapina, pois os restos mortais foram encontrados num lixão.

A menina havia desaparecido há dois meses. Imaginávamos encontrá-la viva, porém a notícia veio até mim como forma de depoimento casual, parecendo-me ter sido vontade de Deus as ocorrências que sobrevieram.

Sucedeu que, estando eu a refletir acerca das evidências do caso, o meu amigo e aprendiz Julius veio presentear-me com um livro intitulado Sangue de Inocentes, de Howard Bottom, livro que segundo ele elevaria o meu gosto pela investigação.

Ao principiar a leitura, pude averiguar certa pitada de egocentrismo por parte do narrador-observador. Ao chegar ao episódio da jovem que fora perseguida e depois torturada por David Sherlock, percebi semelhanças com o caso que analisava: a menina habitava o mesmo prédio em que residia o escritor, tal como constava em sua narrativa, aparentemente fictícia; ela tinha treze anos de idade e a mãe havia destacado durante as investigações uma série de discussões com Kelly.

Então segui a minha intuição, acompanhando o roteiro da ficção de Bottom, que mencionava o lixão municipal como o local em que o personagem desovava o corpo.

E o legista só se manifestou a fim de confirmar as minhas suspeitas.

Ao convocar Howard Bottom para dar o seu depoimento, ele deixou bem claro que a sua história era mera ficção, tal como finalizara o seu livro com a seguinte nota: "Esta história não passa de simples ficção, com personagens e atos verossímeis, mas que não ultrapassam as linhas da literatura. Quaisquer fatos que se assemelhem à realidade são meras coincidências."

Fez-me parecer neurótico. "Mas como se explicam as semelhanças tão absurdas?", pensei.

O júri pôde compreender todas as provas que colocavam Bottom como assassino da jovem Kelly. Até mesmo porque o livro havia se tornado um best-seller e todos conheciam a obra, o que facilitou a decisão dos integrantes do júri.


Autor: Ronyvaldo Barros dos Santos


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