À FLOR DA PELE



Um estado de espírito e um estado de alma elevados. Agora, às oito e vinte e cinco, ela pensa que pode voar. Ela só quer ser feliz. Quantos erros de corpos, quantas vidas vividas que passaram por um triz. Maria tem este nome pela devoção de sua mãe à mãe de Jesus. Maria entra na igreja, senta em um dos lugares vagos, acontece uma missa. A voz de uma soprano começa a entoar a música da mãe de Nosso Senhor. Maria lembra da infância, do radinho de sua mãe tocando esta canção todas as tardes, quando anoitecia. Maria escuta pela, talvez centésima vez, a ave Maria de Gounod e parece que está ali, na casa de criança, perto de sua mãe. Sente um conforto. Chora não pela emoção divina, mas pela proximidade de uma vida que revive, que se aproxima como um beijo, sente novamente a proteção do amor. Todos nós somos assim. Maria tem que aprender muitas coisas, outros deve já ter aprendido. Se eleva, como diriam os católicos, a uma condição sublime, mesmo que pela lembrança e não por uma religiosidade. Maria acredita apenas. Chora, vai até a imagem pura e caríssima da Mãe e se ajoelha, como na primeira comunhão diante de Cristo, não pede nada, sem falar nem pensar, sua mente plaina, de alguma forma não está ali. Não espera terminar a missa. Se benze e sai da igreja. Recebe uma flor de um menino. “Não custa nada”, ele diz, “é para a senhora acreditar sempre como agora acredita” Ela agradece sorrindo. Chora pelo caminho com a rosa no peito.

 

A vida é uma celebração. A vida é alguma coisa que deveria ser celebrada sempre. A vida é um privilégio. É uma oportunidade e é difícil. Maria passa pela vida como muitos passam, como todos, como os outros. Maria caminha na rua que infindáveis pessoas já caminharam, a maioria sem dar por isso, pelo caminho. Prestamos mais atenção aos nossos pensamentos do que à realidade a nossa volta. A lembrança é sensação de pensamento. No peito está uma flor como se houvesse ali nascido. Nos olhos a vida pupila. As mãos não tocam os espinhos. Chove e é como se sentisse pela primeira vez o contato da água na pele, como se nascesse agora. É seu aniversário, por isso nasce. É o amor que reencontrara. Para tornar a caminhada mais amena, é aconselhável que estejamos de mãos dadas. Maria possui muitos dias dentro de si. Muitas horas, tempos, lugares, nomes, acontecimentos, palavras, todas as que aprendeu e algumas que inventou. Ela tem o amor e a vida, e sabe disso. Nem todos sabem, por isso nem todos utilizam os recursos. Com o corpo molhado, a flor intacta, entra na casa, deita e espera. Logo chegarão seus amigos com o bolo, a vela e as bolas coloridas. Era a primeira vez que esperava por isso, pelo nascimento que vinha, por quarenta anos nascidos. Entendia hoje que nascia todos os anos por um parto contínuo. Assim deve ser também com os outros.

 

 

 


Autor: Lícia Mattos


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