O pão nosso de cada dia



O dia já estava clareando. Pardais e sabiás cantarolavam suas belas canções de alvorada em toda cidade. Um vento fresco, úmido e tranqüilizante entrava pela janela do quarto, dessa casa simples, de gente humilde.
A situação estava preta. As pessoas estavam sendo despedidas aos bandos. Uma crise daquelas. A inflação aumentava os preços dia a dia e não havia santo remédio para acabar com isso.
Josivaldo era um dos desesperados que amanhecia sem ocupação. Aliás, sua ocu-pação era procurar emprego agora. Esfregou os olhos e esticou-se. Ouviu estalos que não sabia se eram de sua coluna ou da velha cama. Bocejou longamente e olhou para o lado. Consolação, sua esposa, dormia tranquilamente, apesar de seu bebê de apenas dois meses ter trocado praticamente à noite pelo dia. Tranquilamente não. Dormia pesado. O sono dos justos...
Josivaldo se benzeu e levantou-se, caminhando na ponta dos pés. Não, isso não era para não incomodar a mulher. Ela dormia pesado. Não queria era acordar sua menininha, a Marina. Era no momento a única felicidade da casa. A dispensa estava vazia, as contas atrasadas. Dizem que quando o dinheiro sai pela porta, o amor sai pela janela. Josivaldo sabia disso e não queria perder o único tesouro que havia conseguido juntar na Terra.
Lavou o rosto, pôs a melhor roupa que tinha – era preciso estar bem apresentado – e passou um café ralo para sua esposa. Ainda bem que a criança só mamava no peito, não precisava se preocupar com isso. Tomou um gole do café e foi até a entrada de seu quarto. Benzeu-se novamente e mandou beijos com a mão para as mulheres de sua vida. Antes de sair, ao sopé da porta, olhou para baixo da pia. A cortina de pano franzida deixava à mos-tra o seu mal. Uma garrafa de cachaça brilhava com os primeiros raios de sol. Pensou segundo eternos e foi até lá. Tirou a rolha da garrafa e pôs dois dedos num copo de extrato de tomate. Todo mundo que ele conhecia usava destes... Deu uma golada, fazendo cara feia em seguida, jogou o copo dentro da pia e guardou a garrafa.
Saiu para tentar um emprego, a salvação. Era uma longa caminhada até o centro, mas era o único jeito de chegar lá. O dinheiro que tinha no bolso dava para comprar talvez um pacote de fubá, que seria de enorme valia. Angu alimenta à beça. E dá para comer só com sal. Alimenta e é barato. Não podia ser assim com tudo?
Entrava de loja em loja, mercado em mercado. Ninguém tinha uma vaga para Josi-valdo. Estava ficando cada vez mais desesperado. Levantou os olhos marejados, pedindo uma ajuda a Deus.
– Senhor, eu não sei mais o que fazer! Há meses eu faço o mesmo caminho, o mesmo trajeto e nada! Por favor, me dê uma luz! – disse ele, sendo ofuscado pela claridade do sol que refletia em um ônibus que passava. Voltou o olhar para lá e o ônibus estava acabando de passar. Atrás dele, no outro lado da calçada havia uma banca de apostas de jogo do bicho. Olhou para a placa da entrada. ESTRELA DA SORTE. Sim! A luz que havia pedido a Deus!
Atravessou a rua e foi até lá. Não tinha dúvidas, essa era a solução! Pôs a mão no bolso e tirou aquele dinheiro amassado, que estava destinado a comprar um pacote de fubá, para jogá-lo então no bicho. Pensou em que número apostar. 22... 07. Sim, 2207. Vinte e dois era o aniversário de Consolação e sete o de Marina. Beijou o papel efusivamente e saiu a procurar novamente seu emprego.
– Boa tarde moça. Estou procurando emprego, será que a senhora não tem nada pa-ra mim aí não? Eu faço qualquer coisa... – disse ele com a cabeça levemente abaixada.
– Nós não temos vaga alguma aberta, senhor. Sinto muito... – disse ela com o olhar desconfiado. Havia sentido de longe o cheiro da cachaça que Josivaldo havia bebido há horas. Nem os melhores perfumes franceses duram tanto tempo.
Assim foi durante todo o restante da tarde. Provavelmente todos que atendiam a Josivaldo sentiam o cheiro da bebida. Ninguém queria dar emprego a um bêbado. E ainda tinha a crise. Emprego era coisa difícil mesmo. Lembrou-se do jogo. 2207. Esse era o número!
Caminhou apressadamente para a Estrela da Sorte. Hoje essa era sua última espe-rança. Entrou, desviando de outros sonhadores que ali estavam. Buscavam a solução rápi-da e imprecisa da sorte. Foi à caixinha dos resultados. Puxou uma folhinha e nada, não era o resultado de sua aposta. Puxou a outra. 2207 na cabeça! Não era possível! Conferiu de novo, mas era isso mesmo, tinha ganhado uma bolada! Dava para sustentar a família por um mês, ou mais e com fartura!
Mostrou sua aposta ao dono da banca, que também conferiu e confirmou. Deus lhe deu uma luz, quando mais precisou. Exatamente quando pediu. Nunca mais se esqueceria desse dia.
Apanhou o maço de dinheiro, pôs no bolso e saiu com um largo sorriso da banca, recebendo os parabéns de seus desconhecidos amigos. Ia feliz para casa, pensando na reação de sua esposa quando recebesse a nova. Como ficaria feliz!
No caminho passou por um bar. Olhou-o de fora. Lembrou-se do fubá que ia comprar. Agora podia comprar mais. Foi até lá e se dirigiu a um homem, com a barba por fazer, que atendia do outro lado do balcão.
– Tem fubá aí? Lingüiça? – perguntou ele. Há algum tempo que não comiam algo com o angu, ou o tradicional arroz com feijão. Era isso puro mesmo, saboreado alegremente.
– Lingüiça só para tira gosto. Fubá não tem, a gente só vende bebida mesmo. - dis-se o homem se dirigindo a outro pedinte.
Josivaldo olhou em volta. As prateleiras estavam repletas de bebidas. Coloridas, amargas, doces. De tudo que é jeito. Sua boca encheu d’água. O cheiro da sardinha frita invadiu-lhe as narinas e seu estômago roncou. Lembrou-se que não havia comido nada hoje. Pediu uma sardinha e uma cerveja para acompanhar. Não faria mal nenhum. Aliás, precisava comemorar seu feito.
Comeu a sardinha toda, mas ainda havia alguma cerveja na garrafa. Pediu outra sardinha. A bebida acabou e ele pediu outra. E foi assim até altas horas, como em um círculo vicioso. Pediu uma dose de cachaça para arrematar.
Já estava rindo à toa há horas. A essa altura todos já sabiam de seu feito e bebiam a felicidade do mais recente amigo. Josivaldo pagou bebida tantos quantos entrassem do bar. Olhou para o relógio da parede, já era tarde. Consolação devia estar preocupada.
Despediu-se de todos e foi para casa, sendo saudado com tapinhas nas costas. Foi caminhando, a achar a rua pequena, fazendo ziguezague. Cantarolava uma canção em voga, pensando na felicidade de sua mulher e de sua filhinha. – Ah Marina! Se Deus quiser te darei todo conforto que precisar, minha flor! – pensava ele. No caminho havia um cemitério, o maior da cidade, ficava bem no centro. Na época não havia muros separando-o da calçada, apenas uma cerca mal feita. Em alguns pontos nem cerca tinha, de modo que era possível avistar as sepulturas lá dentro. A maioria das pessoas evitava passar por aquela rua. Mas ele não se importava com fantasmas. Tinha medo dos vivos. – Quantos felizes e infelizes jazem dentro desses túmulos! – pensou Josivaldo.
Enquanto caminhava, olhando para dentro do cemitério, pôs a mão no bolso para rever aquela dinheirama e... Onde está o dinheiro? Procurou mais, agora olhando para os bolsos. Ele não estava mais lá. No desespero, tropeçou na calçada e caiu pelo barranco, indo parar dentro de uma cova rasa, recém aberta, dentro da necrópole. Ficou olhando para o céu estrelado. – Estrela da sorte... – disse ele, e adormeceu.
Lá pelas cinco da madrugada um padeiro subia a rua com um cesto de pães nas costas. Era medroso que só, mas era seu ofício, fazer o quê? Tinha de passar por ali mesmo. Evitava olhar para dentro do cemitério, fingia que não havia nada ali. Enquanto caminhava ia rezando uma Salve Rainha, para lhe dar mais coragem de atravessar o “vale da sombra da morte”.
Josivaldo abriu os olhos e pôs a mão na cabeça. Estava com uma dor terrível. Lembrou-se de tudo que havia acontecido, a aposta, a bebida, o dinheiro... Oh! O dinheiro! Deviam ter tomado dele no bar. Sentou-se na cova. – Consolação! Meu Deus, como deve estar preocupada! – pensou ele.
Olhou para a rua e viu o homem caminhando com um cesto nas costas.
– Hei amigo! São que horas, por favor? – perguntou em voz alta Josivaldo.
O padeiro não respondeu nada. Deu um grande grito, jogou o cesto para o alto e desceu a rua correndo, como nunca havia corrido na vida e talvez nunca fosse correr jamais. Naquele dia, várias famílias, sem sorte, ficaram sem seu pão. A sorte, porém, somos nós que fazemos.
Autor: George dos Santos Pacheco


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