O marinheiro religioso



O sol estava à pino. Alguns marinheiros varriam as ruas do quartel com desânimo. Não que fossem maus militares, mas é que trabalhavam desde cedo e sob um calor extenuante. As folhas de amendoeira eram difíceis de varrer. Pareciam que ficavam coladas ao chão. E por incrível que pareça todo quartel de Marinha tinha essa árvore. Parecia que era plantada de propósito.
Gadelha era marinheiro antigo, estava quase cursando a cabo. Mas era marinheiro como todos os outros. Lá existe um ditado que diz: “Não existe marinheiro antigo e nem almirante moderno”. Isso significa que eram todos iguais dentro das suas graduações. Por isso Gadelha varria como ninguém. E ainda tinha que dar serviço hoje. Estava na guarita sete, a mais afastada do quartel.
Apesar disso não podia ser desatento, tinha que manter a postura. Postura essa que seria cobrada pelo sargento Albelard. Raimundo Albelard. Ele era um legítimo nordestino do interior. Tinha um forte sotaque, mas nunca foi motivo para chacota. Aliás, era muito respeitado por todos, inclusive e principalmente por seus subordinados. É que ele tinha a fama de ser o carrasco do quartel. Quando dava serviço diziam que procurava as falhas para punir os marinheiros. O objetivo dele não eram as falhas e sim as punições, que fique bem claro. E falando nisso, na verdade ele não era respeitado. Era temido.
E para sorte de Gadelha, ele estava de serviço justamente no dia em que o sargento Albelard estava. A atenção tinha que ser redobrada. Apresentou-se ao cabo que coordenava a faxina nas ruas, informando que sua tarefa já estava cumprida.
– Cabo Lutherking! (interessante como na Marinha tem militares com nomes es-trangeiros) – disse Gadelha se aproximando com a vassoura em mãos.
– Fala marinheiro... – respondeu o cabo sem dar muita atenção a ele.
– A rua que o senhor me mandou varrer já está limpa. Posso ir almoçar? É que vou entrar de serviço... – disse ele depois de ter feito uma continência para o superior.
– Está bem, pode ir. Mas fique você sabendo que está bem varrido, mas pode me-lhorar... – advertiu ele.
– Sim senhor! – disse ele correndo com a vassoura em mãos.
Guardou a vassoura, tomou um banho e arrumou-se. Foi para o rancho – que é co-mo chamam o refeitório deles e almoçou apressadamente. Estava quase na hora da para-da do serviço, onde recebiam as determinações sobre este.
Engoliu a comida e correu em direção à sala de estado, uma espécie de portaria, onde os militares deveriam se reunir. Estava quase chegando lá quando anunciaram pelo alto falante o reunir. Ainda bem que ele já havia chegado. Albelard já estava lá e qualquer erro seria fatal.
 O oficial de serviço do dia deu todas as instruções necessárias para o cumprimento do dever de todos, a segurança do quartel. Quando foram dispensados, Gadelha descobriu que o sargento Albelard estava de serviço de polícia, no qual deveria fazer a ronda em todo o quartel. Assegurava que tudo estava em ordem, inclusive se os militares das guari-tas estavam corretamente de serviço.
Ficou de sobreaviso. Não podia cometer nenhum deslize. Precisava continuar na Marinha. E qualquer infração podia complicar sua situação, às vésperas do curso para cabos.
O restante do dia correu normalmente. Trabalhou outra vez na limpeza do quartel e fez o melhor que podia. A noite veio e Gadelha foi para sua guarita. A temperatura estava amena, corria uma brisa fria, mas agradável. Do alto da guarita era possível avistar quase todo o quartel e as ruas que davam acesso a ele, exceto algumas partes que ficavam escon-didas por árvores e coqueiros.
Sargento Albelard já havia partido para sua missão. Ia passando em cada guarita, surgindo sorrateiramente por trás de prédios e algumas folhagens, como um fantasma. Ninguém o via surgir, nem o ouvia caminhar. Parecia realmente que ele flutuava. - Des-graçado! – diziam alguns marinheiros. – Quer acabar com a minha carreira! – diziam ou-tros. Não era sem motivo, muitos já haviam arrumado as malas e isso devido ao rigor de Albelard.
Enquanto isso, Gadelha estava pensando no dia seguinte. Ia sair com Manuela, sua boyzinha. (sim, é com essa gíria que eles chamam suas namoradas). Tinha um pagode muito bom no centro de Niterói e não podia perder. Sentia o cheiro de Manuela, doce e sensual. A pele macia, e seu jeito de falar. Os cabelos encaracolados eram o charme dessa moça, na flor da idade.
Ainda pensava quando percebeu Albelard caminhando lentamente pela rua. Sentiu um frio na barriga. Não que estivesse fazendo algo errado, foi o susto mesmo. O sargento aproximou-se e chamou-o.
– Apresente a guarita marinheiro! – gritou ele lá de baixo. A guarita devia ter uns três metros de altura.
– Guarita sete sem anormalidade, senhor! – disse o marinheiro em uma continên-cia.
– Fica esperto aí, hein? –advertiu ele e continuou sua caminhada. Já devia ser uma da manhã.
Continuou a pensar na mulher. Tinha conhecido ela nos tempos de escola e desde então não se largaram. Como ele queria estar com ela agora! Quantas vezes ele podia ter saído com a namorada, mas foi impedido pelos serviços que dava. De dois em dois dias tinha que estar ali, pernoitando. Ossos do ofício...
A lua estava alta e seus olhos começaram a pesar. Quando o sono vinha era muito difícil segurá-lo. Sua cabeça balançava, enquanto cochilava. Às vezes acordava e percebia a saliva escorrendo pelo canto da boca. Limpava, se empertigava, mas novamente Mor-pheu atacava-o. Realmente cochilou, não havia jeito. Por mais que tentasse ficar acordado, não conseguia, estava muito cansado do dia.
Enquanto cochilava, de pé, ouviu os estalos de galhos quebrando, muito próximo a ele. Com os olhos semicerrados, viu o sargento Albelard aproximando-se furtivamente. Não se mexeu, porém. Ficou na mesma posição enquanto o sargento subia a escada. Quando ele estava quase chegando à guarita, Gadelha se benzeu três vezes e beijou a mão, abriu os olhos, levantou a cabeça e cumprimentou Albelard.
– Pois não, sargento?
– Mas que merda é essa marinheiro! – disse ele com os olhos arregalados.
– Eu estava rezando sargento. Sabe, a gente enfrenta tanta dificuldade no dia a dia que precisamos conversar com Deus sempre que possível. Nem que seja por cinco minutos...
– Eu pensei que estivesse dormindo... – disse ele descendo as escadas.
– Não senhor! Estou mais atento do que nunca. Eu estava apenas rezando...
– Pois continue atento. Se eu te pegar dormindo você já sabe... – disse ele caminhando, tendo dado as costas para Gadelha.
Essa foi por pouco. Gadelha, que não era nem um pouco religioso, descobriu nesse dia a importância de uma oração.


Autor: George dos Santos Pacheco


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