QUANDO O SINAL FECHA



1

A chuva cai grossa.

O sinal fecha.

Dentro do automóvel Miguel espera e, virando-se de lado, vê os doisadolescentes defronte do armazém de construção (esperando que a chuva pare) com as mãos segurando a madeira de cada lateral da faixa de propaganda, provavelmente, do mesmo estabelecimento.

Então Miguel de repente se lembra de que no passado fora um rapazinho pobre que para ganhar uns "trocados" agia à semelhança daqueles dois ali. Até na cor há a semelhança, negro, magro, esguio... Por que essa recordação? Tantos anos decorridos. Tudo agora se lhe apresenta como se não tivesse existido, fosse-lhe uma ilusão, uma mentira. Contudo, sofreu, curtiu a realidade amarga.

O sinal abre. A chuva está fininha. Os adolescentes aguardam que o sinal feche para lado a lado, defronte aos veículos parados, retornarem a expor a faixa com a propaganda.

Miguel acelera, aproveitando o pouco cruzar dos carros e motos.

O que sofreu para chegar à posição atual. A "garra" com que lutou, as humilhações que teve de enfrentar a fim de ser alguém na vida...

- Besteira minha ficar me lembrando. Tou mesmo envelhecendo!

Sorri com a própria definição e outra vez acelera. Prático. Reentregando-se ao presente de sujeito realizado, diretor de firma conceituada no mercado.

Pressiona o botão ao lado da direção e vai ouvindo a música orquestrada de um filme romântico, daquela época.

Cantarolando baixinho, distancia-se.

2

- Esse serviço da gente é mesmo pra quem não tem outro jeito de ganhar dinheiro: ficar sustentando uma faixa à frente dos carros, enquanto o sinal tá fechado!

O outro que é negro, tristonho, aquiesce:

- Pois é, colega. Mas, um dia a coisa melhora.

- Tomara!

Sorriem. O sinal fecha e se apressam para se por defronte dos veículos,com a faixa estirada, sustentada nas laterais por eles, com os dizeres em letras vermelhas e azuis.

O céu se escurece, no prenúncio do retorno da chuva.

3

Por que o Miguel está assim tão calado? Algo o preocupa, conhece-o bem. Será algum problema lá na firma? E, criando coragem avizinha-se da cadeira onde o marido está se cadenciando, pensativo.

- Tás com algum problema Miguel?

Ele se volta e, fitando-a, muito sério:

- Sabe Mariana? Hoje me lembrei da época em que para ganhar uns "trocados" ficava com um colega segurando uma faixa de propaganda de uma locadora, defronte dos carros, enquanto durava o sinal fechado...

Em silêncio ela ocupa a outra cadeira de balanço defronte. E espera.

O marido continua, sem mais a encarar, a atenção voltada aos prédios defrontes, além da avenida embaixo, que se interpõe entre o terraço daqui e as construções:

- Me lembrei. Foi quando o sinal fechou que vi os dois rapazotes segurando a faixa, na calçada próxima, esperando que a chuva passassee o sinal outra vez fechasse para eles tornar lado a lado à avenida...

Mariana entende. Também foi pobre, conhece bem a luta para se manter de pé, não se deixar cair, enfrentar o mundo.

- A vida é muito dura para uns! Mas, hoje tudo está mudado. Sou outro.

Aquiescendo em gesto com a cabeça e desejando libertá-lo do passado, reentregando-o ao presente, então Mariana responde:

- Miguel tudo passou. Morreu. Quem vive de passado é museu.

De repente, como se obedecessem a uma ordem da qual não pode fugir, então silenciam.

Assim calados se entreolham.

4

O homem lhe indagou, após estacionar o carro próximo ao armazém, na calçada em queele se encontrava com o amigo, o Toinho:

- Quanto vocês ganham por dia nesse serviço?

Ele ficou sem jeito. Perplexo. Desconfiado. Quem danado seria esse cara? Mas, ante o rosto moreno fechado, igual ao seu, sorrindo...

- Dez reais por dia.

O amigo calado seguia a cena. Então o homem bem vestido, ainda sorrindo tornou a falar:

- Apareçam nesse endereço.

Passou-lhe o cartãozinho. Segurou-o. Mas...

- Sou um dos chefes da firma aí. Tenho um trabalho pra vocês faturarem muito mais.

- Obrigado.

O desconhecido então retrocedeu ao carro vermelho, importado e, sem se voltar partiu.

Na mão o papelzinho. No rosto tristonho então o sorriso se abriu, na esperança que de repente despontava.

- É cada uma que acontece com a gente!

Falou o colega e ele, já sorrindo:

- É Toinho, vamos lá!


5

Agora, ambos "marcam" os cartões e repondo-os no quadro ao lado do relógio na parede, dirigem-se à seção para o trabalho de embalar caixas. Sim,quem sabe se um dia, não estarão "noutra?".

- Tudo pode acontecer.

- Falou Pretinho?

- Pensando, Toinho. Pensando.

Calados adentram no grande salão barulhento, de máquinas funcionando e vozes que se comunicam na agitação nervosa de mais um dia de produção, de trabalho.

Adiantam-se.


Autor: Paulo Valença


Artigos Relacionados


O Salmo 23 Explicitado

O Medo De Amar

Cidadela

Midas

Anima Mundi

Lembranças

Palavra