Ganhou sozinho na Mega Sena depois se matou de desgosto



Carlos Lindberg Benício dos Santos

Quando Vitorino conferiu o bilhete da Mega-Sena e viu que tinha acertado as seis dezenas, quase caiu duro no chão. Sentiu um tum tum tum tão assustador no peito, que pensou que fosse morrer. Então, prometeu a todos os santos ajudar aos pobres, dar dinheiro para as obras da igreja e até ir em romaria a Bom Jesus da Lapa, se aquele aperto no coraçãopassasse. Quando afinal se acalmou, ainda estava sem respostas para as perguntas que lhe faziam as pessoas presentes na casa lotérica sobre o porquê de tanta palidez e tremedeira e se tudo estava bem. Em seguida, mais atordoado do que nunca, saiu direto para a agência da Caixa Econômica e quando apresentou o bilhete ao gerente, começou a conhecer as diferenças entre os dois mundos dos quais o planeta Terra é formado: o apertado e vasto mundo dos pobres e o diminuto e largo mundo dos ricos. À vista do bilhete premiado, o gerente, cheio de rapapés e salamaleques, gerente que jamais o notara nas filas do caixa quando ia depositar todos os meses os minguados caraminguás em sua caderneta de poupança, abriu-lhe um vasto sorriso e deu-lhe um abraço e um aperto de mão tão calorosos que Vitorino sentiu-se o próprio rei da cocada preta. Cafezinho, água gelada, salas especiais com ar condicionado, telefonemas, faxes para Brasília, olhares indecifráveis de secretárias belíssimas, orientações sobre papéis e investimentos, assinaturas, perguntas sobre suas necessidades... Enfim, resumindo, algumas horas depois de ter entrado na agência, Vitorino saiu de lá já de carro importado, com motorista e secretaria particular, segurança, algumas doses de uísque escocês no juízo e a convicção absoluta de que com aqueles vinte e oito milhões, seiscentos e noventa e quatro mil, duzentos e quarenta e três Reais e dezesseis centavos, sua vida iria dar um reviravolta dos diabos.

No dia seguinte, ainda sem conseguir dormir de tão agitado, teve que mudar-se para um endereço secreto a fim de livrar-se do incômodo e insistente assédio de amigos, parentes, orfanatos, instituições de caridade, vizinhos... e precaver-se contra o medo de seqüestro que começou a atazanar-lhe o juízo.

Numa casa de praia alugada às pressas por um preço exorbitante, Vitorino conseguiu sossegar um pouco, ainda que achasse estranhíssimo o fato de os serviçais contratados – motoristas, domésticas, seguranças, lavadeiras, porteiros – chamarem-no de "Doutor" (logo ele, um simples biscateiro) a cada segundo. "Sim, Doutor", "Pois não, Doutor", "Está precisando de alguma coisa, Doutor", "É pra já, Doutor"... - Vitorino secretamente repudiava tudo aquilo e estranhava especialmente a facilidade com que agora quase todo mundo concordava com tudo que ele dizia. Era um homem de pouca instrução, mas de muito discernimento. Sabia distinguir como ninguém a sinceridade da hipocrisia. Mas, enfim, dos males o menor. Se o mundo dos ricos era aquilo, não seria ele que iria trocá-lo pelo velho mundo de infâmias e misérias de onde viera. Começou a achar bom e a acostumar-se com os rapapés e a puxação de saco.

Alguns meses depois, quando já estava começando a se cansar das falsidades e desilusões que, normalmente, sempre acompanham muito "dinheiro novo", Vitorino pensou que talvez a mulher a quem sempre devotara os sentimentos mais puros de sua vida, pudesse preencher o vazio que aumentara dentro dele depois das incríveis maratonas de prazer e consumismo que se permitira. É claro que procurá-la agora poderia levar a muitos mal-entendidos. Dalva era mulher direita. Com toda a honestidade já lhe dissera há muito tempo atrás, quando ele tomou coragem e confessou-lhe seu amor por ela, que procurasse esquecê-la porque ela era mulher de um homem só e já havia entregado o coração a outro. Vitorino recordou o aperto no peito quando ouviu tais palavras dos lábios da mulher que amava e até pensou em matar Sinhozinho Santos, o fazendeiro com quem ela resolveu casar-se, mas, num esforço para esquecê-la, optou por mudar de cidade e foi tocando a vida, ora como ajudante de pedreiro, ora como encanador, ora como reparador de todos os tipos de objetos quebrados, até o dia (dez anos, quatro meses e três semanas depois do fatídico e definitivo "não"de Dalva) em que ele acertou sozinho as benditas seis dezenas.

E agora? O que fazer? Procurá-la? E se ela recusasse de novo?Preferia mil vezes a morte a ouvir outro não. Mas, quem sabe se com a intermediação de Felícia, grande e velha amiga comum dos dois, Dalva não pensaria em dar-lhe uma chance?- Foi o que fez. Voltou à antiga cidade onde morava, procurou Felícia e depois das conversações formais de praxe e dos comentários sobre sua invejável sorte, tratou-a como um amigo leal e generoso: comprou-lhe uma casa decente em bairro de classe média e livrou-a do aluguel que tornava muito difícil sua já apertada vida de costureira. De início, Vitorino nada comentou com ela a respeito de suas intenções de usá-la em suas tentativas de reaproximação com Dalva. Mas, depois de alguns meses de freqüentes visitas, numa Terça-feira cinzenta e triste como as emoções que sentia, apareceu em sua casa de repente e foi direto ao assunto: "Felícia, vim aqui porque não agüento mais. Confio em sua amizade e preciso desabafar." Felícia deixou-o à vontade com aquele seu jeitão todo maternal e Vitorino continuou: "Você sabe que o dinheiro é uma coisa boa, mas cerca a gente de falsidade e de pessoas interesseiras. Exceto pelo conforto de que estou cercado, eu nunca tive tanta decepção com as pessoas e tanta desilusão amorosa como estou tendo agora. Meu Deus, eu nunca vi tanta mulher vulgar e interesseira se oferecendo. E eu bem que podia continuar gozando a vida, mas já estou de saco cheio. Além disso, estou com 36 anos de idade e sinto muita falta de uma família, quero dizer, a minha própria família, minha mulher, meus filhos... não agüento mais esse vazio em minha vida. E você me conhece. Você sabe o quanto essas coisas são importantes para mim. Você sabe que, no fundo, eu não passo de um grande sentimental. E você, mais do que ninguém, também sabe que Dalva foi a única mulher que eu realmente amei na vida. Tudo para mim mudou muito depois do dinheiro, mas depois de quase um ano gastando pra valer, além de conforto e muita chateação, o dinheiro não me trouxe aquilo que eu considero que é a felicidade. Queria lhe pedir um favor de amigo: fale com Dalva, conte-lhe que continuo tão ou mais apaixonado do que antes e que se ela quiser largar o nojento do Sinhozinho, eu estou de braços abertos."

Felícia ouviu tudo calada e disse que iria tentar, mas conhecendo Dalva como conhecia, adiantou que achava difícil trazer qualquer resposta animadora. Vitorino esperou ansioso e durante os longos cinco dias de demora da resposta, não comeu nem dormiu direito. Quando, afinal, no Sábado seguinte, Felícia telefonou para comentar o assunto, ele disse que preferia conversar pessoalmente e desligou o telefone, seguindo imediatamente para a casa da amiga costureira com o coração aos saltos.

"Bem, meu caro e querido amigo Vitorino, falei com ela. Está mais bonita do que nunca. Nos seus vinte e oito anos está realmente numa forma invejável. Bem melhor do que há dez anos. Você precisa ver. Mas me disse que, apesar de não morrer de amores por Sinhozinho, suas convicções pessoais jamais a deixariam desprezar o amor que ele sente por ela e o conforto que ele lhe dá. Você sabe, Dalva é moça crente, criada em igreja... Disse que tem ótimas recordações suas, mas que você, apesar de bonitão, não tinha onde cair morto, além disso, andava em farras e mais farras e ela acabou por ceder às pressões da família e ao cortês assédio de Sinhozinho, vinte anos mais velho que ela, mas social e economicamente muito bem posicionado e, alem disso, um coroa enxutérrimo, como dizia Mabel Santana, a colunista social do jornalzinho da cidade; lembra? Me disse ainda que entre eles havia poucos desentendimentos na relação marido e mulher, todos sem importância. Os que ela achava mais graves eram, primeiro, o fato de ser evangélica e Sinhozinho confessar-se "sem religião" (aos amigos dizia que era ateu); e o segundo é que, alem de agnóstico, Sinhozinho era estéril e por isso não tinham filhos. No resto, tudo ótimo. Ficamos um tempão relembrando ainda muitas dessas coisas. Contou também que ficou felicíssima com sua grande sorte e aí eu perguntei, assim meio de brincadeira, o que é que ela acharia se agora que você é um barão você a procurasse com a mesma velha e forte paixão de sempre. Ela riu e respondeu que nem morta. E aí, de brincadeira também, é claro, disse que só se enviuvasse."

Vitorino não conseguiu ouvir mais nada. Aquele "só se enviuvasse" bateu forte e fundo no mais íntimo de sua alma e repetiu-se de forma atordoante por muitos e muitos dias. Depois de mais alguns meses sem conseguir se livrar do ruído do "só se enviuvasse" zunindo permanentemente em seu juízo, Vitorino lembrou-se que Jarbas, seu guarda-costas, certa vez, quando Galo Cego, um antigo companheiro das velhas farras, descobriu seu endereço não se sabe como e apareceu alucinado pelo álcool em sua casa exigindo dinheiro aos gritos e palavrões sob pena de denunciar que fora Vitorino que havia deflorado uma certa Viviane, menor de dezesseis anos, quando de suas andanças e farras na primeira fase da juventude, Jarbas o expulsara aos bofetões e oferecera ajuda e orientação ao patrão caso ele quisesse dar um corretivo no desaforado. "Eu sei que tudo que esse chantagista está dizendo é mentira, Doutor Vitorino. Aquilo é gente da pior espécie. Tá querendo lhe chantagear e tomar seu dinheiro. Se o senhor quiser, eu sei aonde as cobras dormem. Eu conheço gente que, sem deixar o menor sinal, a menor pista, dá um sumiço nesse tal de Galo Cego que nem Nossa Senhora das Coisas Perdidas encontra mais ele". Vitorino, quando do problema com Galo Cego, preferiu deixar pra lá, até porque a tal Viviane era rameira conhecida de todos. Mandou dar uns tabefes no provocador por conta do desaforo (se quisesse ajuda que viesse com boas maneiras), mas esqueceu o assunto até o momento em que ouviu o "só se enviuvasse".


Ao ouvir isso, lembrou-se do "eu sei onde as cobras dormem" e da "gente que sem deixar o menor sinal, a menor pista, dá um sumiço nele".

Como quem não quer nada voltou a aproximar-se mais de Jarbas e alguns dias depois, aparentando a maior naturalidade do mundo, tornou a tocar no assunto. "Lembra, Jarbas, do tal Galo Cego? Ouvi dizer que anda por aí falando outra vez o que não deve; é cada uma que me aparece!". Funcionou com perfeição. "Ah, Doutor Vitorino, o senhor devia encomendar esse camarada a Peito de Moça".

-Quem?

-Peito de Moça. Lourenço Peito de Moça. Gente da maior confiança. Só trabalha pra gente fina. Serviço garantido. Profissional do maior gabarito. Um mestre do disfarce. Tem uma voz de trovão, mas imita qualquer tipo de voz com perfeição. E quando se disfarça, até os amigos mais chegados nunca o reconhecem. Nunca foi apanhado pela polícia. – Disse Jarbas, tentando agradar ao patrão.

-Mora onde?

-Mora no Rio de Janeiro. O endereço eu não sei, mas tenho um telefone para contato. – E entregou: "272-2499".

-Não Jarbas, sumiço não. Consiga aí algum malhado de confiança para esbarrar em Galo Cego lá no brega e começar uma briga. Mande dar aí mais uns cascudos nele. Mas fica só nisso, entendeu? Nada de sumiço.

-Pois, não Doutor, o senhor manda. Pode deixar comigo.

O nome e o número do telefone para contato indicados por Jarbas, não saíram mais da cabeça de Vitorino. Quando o assunto Galo Cego já estava definitivamente encerrado, depois de mais uns tapas que tomou gratuitamente sem nenhuma relação com os motivos alegados, Vitorino esperou mais uns três meses e partiu para o Rio de Janeiro em viagem "de negócios". Antes de embarcar, sacou uma montanha de dinheiro que converteu em dólares e conseguiu através de Jarbas uma carteira de identidade falsa para "usar em motéis no Rio". "Você sabe, Jarbas, de repente algum outro maluco ou maluca resolve também me chantagear e aí é melhor prevenir do que remediar". Jarbas riu e dizendo com um largo sorriso de aprovação "entendo, doutor, entendo", pediu quinhentos Reais e permissão para ir tomar as providências. Quatro horas depois estava de volta com uma carteira de identidade falsa em nome de Demerval Oliveira Sobrinho.

Três dias depois, de um telefone público de Copacabana Vitorino ligou às nove da manhã para o número memorizado. Uma estranha voz de mulher atendeu.

-Alô, 272-2499.

-Eu gostaria de falar com Pei... ah, com Lourenço.

-Com quem?

-Lourenço, moça. Senhor Lourenço.

-Aqui não mora nenhum Lourenço, não, moço. O senhor ligou para qual número?

-272-2499.

-É, o número é esse, mas aqui não tem nenhum Lourenço, não. Qual é mesmo o assunto?

Essa pergunta deixou Vitorino com a pulga atrás da orelha. Se não era lá, para que haveria quem atendeu de querer saber do que se tratava? Resolveu não citar o nome de Jarbas como referência para evitar que certos fios da trama jamais viessem a se relacionar. E arriscou:

-Dinheiro, moça. Muito dinheiro. Gostaria de acertar um serviço com ele.

-O senhor tem telefone? Quando o meu marido chegar vou ver se ele tem algum amigo ou conhecido chamado Lourenço e se for o caso ele entra em contato com o senhor.

-252-4666, Rio Othon Palace Hotel, apartamento 1616. Procurar o senhor Sobrinho.

Às nove da noite, acabado de sair do banho e ainda enrolado na toalha, Demerval Oliveira Sobrinho, como estava registrado no hotel, ouviu o telefone tocar e não foi sem algum sobressalto que escutou uma voz cavernosa, grave como a do Cid Moreira, mas com um timbre de trovão que ecoava no telefone e em seus ouvidos.

-Senhor Sobrinho?

-Pois não.

-Foi o senhor que ligou para cá procurando falar com Lourenço?

-Sim, fui eu.

-Como o senhor obteve o nome e o número?

-Hmm, ahh... Bem, a pessoa pediu para não revelar.

-Entendo... O senhor concorda em avistar-se comigo amanhã pela manhã em local e horário indicados por mim?- Vitorino lembrou-se das boas referências dadas por Jarbas sobre Lourenço e concordou sem hesitações.

-É claro. Basta dizer onde é.

-Bem, amanhã às oito horas da manhã, procure o Hotel Valência, na Rua Mem de Sá, 158, no Centro do Rio e dê instruções ao recepcionista para deixar entrar no quarto que ele lhe designar, um amigo seu que vai entrar logo a seguir. È um hotel para encontros de homens e por isso não vai levantar suspeita.

Meio horrorizado com a idéia, Vitorino concordou e despediu-se para tentar entender melhor. Depois de alguns minutos de reflexão viu que não tinha muito a perder ou arriscar: estava sob identidade falsa, depois não iria "rolar" nada de sexual entre eles, e por fim, em face de tanta precaução e de tanto anonimato, ninguém iria ficar sabendo de nada mesmo. Assim sendo, pontualmente às oito da matina, parou o carro numa vaga próxima ao endereço indicado e rumou para o hotel. A espelunca assustou. Escada esburacada, balcão imundo, paredes ensebadas. O "recepcionista", um velhote caolho, desdentado e subnutrido, arregalou o único olho diante de freguês tão bem vestido. Vitorino consultou o relógio de ouro. Era tarde para recuar. Ao preço de quinze Reais para "entrar e sair" Vitorino deu duas notas de dez e mandou guardar o troco. À vista da gorjeta, a boca banguela e malcheirosa do homem abriu-se num sorriso patético e sua cabeça acenou em concordância absoluta com as instruções de mandar entrar o "amigo" que estava para chegar.

Quase uma hora depois de adentrar o quarto mais repugnante que alguém possa imaginar e já pensando em jogar tudo para o alto e voltar para o conforto do Rio Othon Palace, Vitorino ouviu o toc-toc-toc na porta, e como já estava mesmo com a mão no trinco para ir embora, abriu-a.

Deparou-se com um tipo normal, de boa estatura, um metro e oitenta talvez, bem nutrido, quase gordinho, vestido sem extravagância e com uma cara de gente boa, talvez de empregado de banco, aí pela casa dos trinta e nove anos de idade. Não deixou de notar por baixo da camisa de seda as pequenas saliências que possivelmente deram origem ao apelido. Simpático - concluiu para si mesmo. Mas as aparências enganam. Assim que entrou, Lourenço, ou quem quer que fosse, empurrou Vitorino para cima da cama imunda e sacando uma enorme pistola PT380, uma das armas mais mortíferas da Taurus, mandou Vitorino tirar a roupa imediatamente, com a mesma voz de trovão ouvida ao telefone a qual, agora ao vivo, tinha um poder de convencimento que não deixava dúvidas quanto à determinação de seu dono em fazer cumprir as ordens que dava. Suando frio, Vitorino relanceou os olhos pelo tugúrio onde estava, em busca de alguma janela, uma saída, mas quem estava ali à sua frente de arma em punho sabia o que fazia. Dali não havia escapatória. Sentiu-se um rato encurralado. Afinal, temerosissímo das intenções do outro quanto a mandá-lo despir-se, começou a tirar a roupa com a bunda contra a parede e afinal ficou só de cuecas. "O que significaria tudo aquilo, meu Deus?"

-A cueca também. – Ouviu no mesmo tom de voz que lhe deu um frio na barriga. Obedeceu, mas objetou para o inflexível distribuidor de ordens, que poderia pagar-lhe a melhor e mais cara mulher da praça, mas que o deixasse em paz porque ele, Vitorino, não era homem disso e...

-Cale-se, idiota.

E após este último comando, começou a vasculhar as roupas de Vitorino. Bolso, por bolso, peça por peça, inclusive a cueca. Conferiu tudo que havia na carteira. Analisou cuidadosamente o documento de identidade em nome de Demerval Oliveira Sobrinho. Depois disso ordenou-lhe que ficasse de pé, que virasse de costas, e por fim, que ficasse de quatro. Agastado com a idéia, Vitorino começou a erguer a mão e a abrir a boca para protestar, mas o polegar do estranho acionando o cão da pistola convenceu-o instantaneamente. De quatro, em cima da cama, teve o traseiro perscrutado por dois olhos de águia e só depois desta última e absolutamente chocante inspeção, o estranho pareceu relaxar. Completamente aturdido com o que acabara de acontecer-lhe e temeroso de algum engano quanto ao número do telefone dado por Jarbas, receoso das histórias de violência que se banalizaram no Rio de Janeiro, Vitorino dirigiu ao algoz um olhar de ovelha no matadouro em busca de uma explicação para o que estava acontecendo. Mas Lourenço, já de arma guardada na cintura, transmitia através do olhar uma confiança e uma tranqüilidade absolutas. Falou:

-Tudo bem, camarada. Pensei que você fosse da Polícia. Por isso demorei a entrar nesta espelunca. Passei um tempinho aí fora checando meus contatos para ver se não montaram alguma armadilha por perto. Como não tinha campana nenhuma, pensei ainda que o distinto pudesse ser de alguma organização secreta e realmente tinha vindo só e com algum equipamento de gravação ou transmissão sem fio. A "inspeção" que fiz foi em busca dessas mini parafernálias modernas de gravação e transmissão. Mas o distinto tá limpo e agora podemos conversar. Vista-se.

Vitorino soltou um longo e sonoro suspiro de alívio. Diante de um profissional tão precavido, tão audaz, tão determinado, tão meticuloso, tão coordenado, perdoou-lhe o vexame de poucos minutos atrás e teve absoluta convicção de que seu plano seria um sucesso. Abriu logo o jogo:

-Bem, a pessoa que o recomendou, realmente sabia o que dizia.

-Posso saber quem foi? – Temeroso de que alguma indiscrição pudesse entrelaçar fios inadequados no bordado de seus planos, deu um seco não como resposta, e Lourenço não insistiu e disse-lhe: "Então vamos aos detalhes".

-Pois não. Há um certo homem, numa certa cidade, que precisa sair do meu caminho. Minha idéia é simular um assalto a sua residência e para isso o amigo terá, depois de eliminá-lo, que desarrumar todo o quarto, onde com certeza encontrará muita coisa de valor, e levar consigo tudo o que lhe interessar para despistar a polícia da idéia de crime de mando.

-Entendo.

-Para isso estou disposto a pagar cinquenta mil dólares ou cem mil Reais, o que escolher. Metade hoje e a outra metade quando o serviço estiver concluído. Mas faço absoluta questão de que este seja um trabalho que, custe o que custar, não deixe nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada. Lourenço olhou bem dentro dos olhos de Vitorino e o olhar lhe causou um frio glacial na barriga. Teve certeza de que Jarbas estava certíssimo em relação ao que dissera a respeito do matador. Lourenço cobrou o adiantamento para o mesmo dia e os detalhes da operação: nome, endereço, rotinas da vítima, uma fotografia recente.

-Poderíamos continuar a conversa em outro lugar?

-Não. - Foi a resposta curta e seca. Em seguida consultou uma pequena agenda de bolso e continuou: "E dentro de exatamente trinta dias, na manhã do dia seguinte à execução do serviço o amigo deve estar de volta a este hotel, no mesmo horário de hoje, com a outra metade do pagamento, porque este é o prazo para que tudo esteja resolvido". Vitorino concordou, mas olhando contra a vontade nos olhos de Peito de Moça, voltou a insistir: "Nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada".

-Não precisa se preocupar; sou um profissional. Foi a última palavra de Lourenço e Vitorino sentiu na voz de trovão que, realmente, daquele serviço não iria ficar nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada. Combinaram para depois do almoço um outro local para a entrega do adiantamento e dos dados sobre a vítima e despediram-se.

Vitorino sentiu-se tranqüilo e teve a tranqüilidade aumentada quando Peito de Moça despediu-se com um sucinto "Até logo mais à tarde, Senhor Sobrinho".

"Senhor Sobrinho! Qua Qua Qua Qua", riu por dentro, "Só se fosse sobrinho do caralho".

À tarde, quando foi entregar o adiantamento, desta vez na sala de espera do Cine Roxy, Vitorino passou-lhe uma maleta preta aonde, além do dinheiro, iam o nome completo, uma fotografia recente e um mapinha feito a mão com a localização exata da bela residência onde morava a vítima. Não mencionou uma palavra sequer sobre a existência de Dalva, mas fez questão de frisar e insistir num ponto: o serviço teria que ser executado inapelavelmente em um Domingo entre as sete e as nove da noite, na casa da vítima, e em nenhum outro horário ou dia da semana ou local, e mais uma vez recomendou com veemência: "Nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada".

A razão para tanta insistência em matar Sinhozinho num Domingo é que Dalva, de acordo com o que Felícia revelara, ainda continuava muito fiel à sua criação religiosa e não perdia por nada deste mundo as pregações do Pastor Dejair nos cultos dominicais noturnos. Essa foi a maneira que Vitorino enxergou para livrá-la de algum risco quando Peito de Moça fosse "dar de mamar a Sinhozinho".E foi por este motivo que jamais mencionou o nome dela em seus acertos com o assassino. Satisfeito, riu novamente consigo mesmo.

Peito de Moça desmontou a PT380 para a viagem. Limpou-a, lubrificou-a totalmente e incluiu na bagagem um silenciador americano que fazia os tiros parecerem algo como tosse de cachorro. Mas não partiu imediatamente para as plagas de Vitorino ou, melhor dizendo, Dermeval Oliveira Sobrinho. Mandou na frente o olheiro Pururuca. Rastreador de primeira e homem obcecado pela exatidão nos detalhes. Chegando à cidade o olheiro alugou um quarto na pensão de Manelito e durante as duas semanas em que ficou lá, disfarçado de camelô, vendeu na feira umas latinhas da pomada e das pílulas Nossa Senhora de Lurdes. Pílulas e pomada que, no linguajar de cigano de Pururuca, curavam de dor de cabeça a dismenorréia, passando por reumatismo, gota, frieira, impotência sexual, frigidez feminina, prisão de ventre, diarréia, câncer e todos os males causados pela ingestão excessiva de comida ou de bebida. Curavam até dor de corno, como apregoava nas vezes em que a cachaça lhe subia à cabeça. Quando não estava vendendo suas panacéias, travava amizade com o povo miúdo e quando parava nas imediações da casa de Sinhozinho, que ficava isolada nos arredores da cidade numa elevação majestosa dentro de sua fazenda, comentava sobre a beleza da moradia e os humildes moradores das casinhas da ponta da rua passavam-lhe informações preciosas sobre a rotina da vítima.Da vendinha de Bastião, onde volta e meia tomava uns goles da famosa cachaça Beata fabricada por Paulino Peixoto, Pururuca viu algumas vezes o Santana Quantum pilotado por Sinhozinho passar, indo ou vindo da cidade, e anotava mentalmente os horários. Por dois Domingos observou o devotado marido passar de ida, levando a mulher à igreja, voltar para casa uns quinze minutos depois e, novamente, umas três horas mais tarde, passar sozinho de volta para buscá-la. Notou também que aos Domingos, todos os empregados da casa tinham folga e só voltavam ao trabalho na Segunda-feira pela manhã. Quando afinal Peito de Moça recebeu o telefonema de Pururuca dizendo que pudesse vir, combinaram de encontrar-se numa cidade próxima para filtrar os detalhes.

Em seu último Sábado na cidade, Pururuca apregoou sua pomada milagrosa com redobrado vigor, tomou seus últimos goles de cachaça nas vendinhas da periferia próxima à casa da vítima e ninguém sequer prestou muita atenção ao tipo quase mal vestido que vinha com ele e que também bebericou uns goles com olhares de águia perscrutando a bela casa e suas redondezas.

Na mesma noite, Pururuca pegou suas tralhas, pagou sua conta na pensão e embarcou de ônibus para Vitória da Conquista e de lá para o Rio com a consciência da missão cumprida. Peito de Moça foi com ele até a cidade vizinha onde tinha deixado o carro roubado em São Paulo, um Fiat Uno com mais de dez anos de uso, escolhido a dedo para não chamar a atenção na pequena cidade e que começou a dar enguiços perto do fim da viagem. Foi dormir cedo na noite do Sábado e no Domingo ao anoitecer rumou para cidade natal de Vitorino com todos os passos de sua ação encaixados como um dominó em sua cabeça. Antes de pegar a Rua Larga, por onde se ia para a casa de Sinhozinho, deparou-se com o inesperado: um grave acidente automobilístico havia formado grande aglomeração e bloqueado totalmente o trânsito. Uma enorme carreta chocara-se contra um carro de passeio e o motorista deste último saiu gravemente ferido. Policiais tentavam desbloquear a passagem e Peito de Moça, consultando o relógio, começou a impacientar-se porque, de acordo com as informações de Pururuca, já era quase a hora em que Sinhozinho deveria estar de volta de sua sagrada missão dominical de levar a mulher à igreja.

Confiante na peruca loira, no basto bigode postiço e nas lentes de contato verdes, o perfeito disfarce que o tornava irreconhecível, Peito de Moça saiu do velho Fiat Uno e dirigiu-se a um dos policiais de trânsito para tentar conseguir passar de alguma forma; aproveitou para perguntar quem era o acidentado. "Um dos maiores e melhores homens de nossa comunidade, o Pastor Dejair. É uma pena". O policial pediu-lhe que aguardasse uns instantes. Peito de Moça desligou o motor e resignou-se a esperar. Depois de intermináveis minutos o trânsito finalmente foi liberado, mas quando o assassino virou a chave na ignição para afinal entrar na Rua Larga no rumo da casa de Sinhozinho, o motor não quis pegar. Confiante no disfarce, saiu do carro e pediu ajuda aos circunstantes para empurrarem o automóvel que, afinal, pegou no tombo. Após isso, mais do que apressado e aborrecido com os enguiços do carro e com os atrasos, rumou para a casa da vítima pensando em onde e como conseguir um carro melhor para chegar ao aeroporto de Ilhéus a tempo de pegar o avião depois do "serviço". Incomodado pela coceira provocada pelo bigode postiço e a ardência nos olhos provocada pelas lentes de contato, livrou-se do disfarce assim que ultrapassou a última casa da última rua. Guardou-o na sacola que providenciara para colocar o dinheiro e as jóias do roubo. Levou o carro até um pouco mais adiante da moradia de Sinhozinho, manobrou e estacionou no sentido do retorno, escondendo-o numa curva fechada em declive. Caminhou agachado pelo meio do capinzal alto até a vidraça da enorme sala onde Sinhozinho, completamente só, sentado em uma poltrona, falava ao telefone. Peito de Moça notou a porta da entrada entreaberta e pôde ouvir nitidamente parte da conversa:

-É, chocou-se contra uma carreta; o motorista da carreta estava embriagado.

-...

-Ah, sim, o estado é grave. Todos estão inconsoláveis.

-...

-Não, não fui não. Dalva foi sozinha.

-...

-Ah, mamãe, eu sei que devia ter ido com ela, mas não posso ver sangue e o médico me proibiu emoções fortes; preferi não ver a cena; a familia está desesperada. Como está o clima aí em Curitiba?

Não conseguiu entender a resposta. A surpresa diante do cano brilhante da PT380 o fez engasgar-se com a própria voz e o telefone escapuliu de sua mão. Depois de abrir o cofre sob a ameaça da arma e indicar onde estavam todas as jóias de sua mulher e todo o dinheiro da casa, Sinhozinho viu o polegar do bandido levantar o cão da pistola e emitiu apavorado um grunhido rouco, parecido com tosse de cachorro, que acabou se confundindo com os sons dos disparos abafados pelo silenciador.

Cerca de duas horas e meia depois o assassino embarcava no vôo das 11:45 de Ilhéus para o Rio de Janeiro.

Às nove horas da manhã em ponto, mal conseguindo disfarçar o volume dos vinte mil dólares do restante do pagamento, distribuídas em pacotes de notas de pequeno valor (como instruído pelo matador) nos bolsos de suas roupas, Vitorino entrou no Hotel Valência e quase matou de susto o velhote quando pagou o "entrar e sair" com uma nota de cinqüenta Reais e dispensou o troco.

Mal entrou no quarto, deparou-se com Peito de Moça já à sua espera.

-E aí? Nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada? – Perguntou ansioso.

-Nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada. – Respondeu o bandido, e acrescentou: "Apenas um detalhe: o velho Fiat Uno que escolhi para não chamar atenção na chegada estava um traste. Com ele não seria possível chegar a tempo de pegar o avião para estar aqui agora conforme o combinado. Precisava roubar outro carro melhor. Quando eu estava saindo, depois de despachar Sinhozinho deste mundo para o outro e de enfiar na sacola todo dinheiro e todas as jóias que pude encontrar, os faróis de um carrão iluminaram a porteira da casa e eu pensei: taí a minha oportunidade. Caminhei até o carro e vi, em pé, abrindo a porteira, a mulher mais linda que já vi em toda a minha vida. Quando anunciei o assalto para tomar o carro ela começou a gritar. Eu aí me lembrei que ela tinha visto o meu rosto sem disfarce na luz do farol alto e lembrei de sua recomendação de não deixar nenhuma pista, nenhuma testemunha, nada. Despachei ela também". Um tiro só, no meio da testa.

No saguão do hotel, apinhado de curiosos, repórteres, policiais... o assunto eram as dúvidas e os boatos sobre a verdadeira identidade do milionário suicida que estourara os miolos com um tiro no ouvido e que, somente no cofre do hotel, segundo os boatos, deixara depositados cento e cinqüenta mil dólares em dinheiro vivo.

FIM.

Carlos Lindberg Benício dos Santos

ENDEREÇO: Rua Luis de Macedo Boaventura, s/n, Centro

CEP 45290-000 – IBICUÍ – BAHIA – BRASIL

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Autor: carlos lindberg


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