PRUDÊNCIA, JUSTIÇA e LIBERDADE NA ÉTICA DE ARISTÓTELES



Ms. Edilson S Abad Trigo1

Aristóteles, no início dos seus três tratados: a Metafísica, a Ética a Nicômaco e a Política, afirma que "Todos os homens, por natureza, desejam conhecer" (Metafísica), que "todos os homens tendem a um bem... ao Sumo Bem" (Ética a Nicômaco), e também que "a observação nos mostra que cada Estado (Pólis) é uma comunidade (koiné) estabelecida com uma boa finalidade (télos) uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom" (política).

Aqui se apresentam três dimensões indissociáveis da natureza humana: O homem é um ser Racional, Moral, e Político. E é nesta indissociabilidade que reside a complexidade desta natureza, a dificuldade de sua análise, a enormidade de seu desafio. Principalmente levando em consideração que o Homem pode ser também irracional, imoral e apolítico, ou seja, pode se revoltar contra a sua natureza. Ou seja, é detentor de uma outra dimensão a que chamamos de liberdade.

Tais dimensões são tão intimamente ligadas que apenas podem ser corretamente verbalizadas na unidade fundamental da linguagem (indo-européia), o seu princípio ativo e unificador – a Ousía (derivado em grego do próprio verbo eimí – traduzido pelo verbo "Ser"). Nela se poderiam projetar todas as complexas dimensões da Antropologia que é física porque envolve um corpo; e também biológica porque também envolve um ser com alma; e também racional porque nesta alma há um logos, potencialidade verbalizadora – ou construção de uma linguagem (a palavra "logos" significa: "palavra" ou "verbalização"); e também moral porque esta racionalidade pode escolher um bem ou bem maior; e é política porque a linguagem só é possível se verbalizada a outros – há uma simbioseconstante entre racionalidade e comunicação, e é esta interrelação e conjugação comunicativa interracional que conduz a objetivos comuns que formam a comunidade e a partir dela o Estado (pólis).

Quadro muito bonito, mas falso. Poder-se-ia dizer que isso que eu descrevi é aristotélico – pode ser a idéia de um dos seus seguidores, mas não é o Aristóteles histórico, talvez outro filósofo, mas não Aristóteles. Essa é a descrição de como tudo deveria ocorrer, mas não ocorre. Pode até explicar a constituição da sociedade, mas não explica a sua dissolução e transformação. Tal seria a descrição de sua Geração, mas não de sua Corrupção. E é esta a questão mais importante: De onde vem a corrupção do Estado? De qual destas unidades interligadas? Responder tais questões é tão difícil quanto estabelecer a sua Antropologia, já que todos os seus elementos estão interligados.

O ponto que faz Aristóteles ser reconhecidamente tão bem sucedido nas suas análises deste processo está na sua concepção Ontológica baseada no que se convencionou chamar de analogia (prôs hên). Neste conceito ele afirma que não há uma unicidade na definição do Ser ("o ser se diz de várias maneiras..."). É nesta multiplicidade de possibilidades do Ser que se deve procurar as respostas às questões colocadas, também aí reside a sua dificuldade. Isto equivale falar que é na análise da linguagem e nos seus múltiplos significados que se pode desvendar a origem do fracasso de uma civilização. É no exame dos casos individuais que se apresentam a nós não apenas intelectualmente, mas também dos Estados já constituídos.

Se no livro I da Política Aristóteles faz todo um percurso de descrição da constituição natural do Estado a partir da família até o cidadão, é porque é no âmbito individual que se deve estabelecer o melhor Estado. "Todos esses assuntos serão necessários na discussão das formas de constituição. Porque são todos assuntos pertinentes à administração da família e toda família é parte do Estado (Pólis); e a virtude (Areté)da parte precisa ser examinada em relação à virtude do todo" (Aristóteles, Política, 1999 Livro I, §58, p.168).

O Homem é um Zoon Politikon que naturalmente tende a se congregar em sociedade, pois "um instinto social é implantado pela natureza em todos os homens, e aquele que primeiro fundou o Estado (pólis) foi o maior dos benfeitores" (Aristóteles, 1999, Livro I §10, p. 147). Mas, isso não significa que viverá em uma boa sociedade – Isso porque viver em uma boa sociedade não é algo que venha de modo simples, é um projeto racional do estabelecimento de uma virtude, tanto individual, quanto coletiva e que deve ser "examinada". Em outras palavras, a dimensão política depende da dimensão moral para ser plenamente realizada, e para tal, depende da dimensão racional (phrônesis)e o seu fruto é a ciência Ética onde se pode entender o que é a virtude.

E a justiça (diké)é para Aristóteles a principal das virtudes, sendo "o vínculo dos homens, nos Estados; porque a administração da justiça, que é determinação daquilo que é justo, é o princípio da ordem numa sociedade política" (Idem, 1999 Livro I §10, p. 147). Ou seja, é a cola social que a mantera unida, enquanto relacionamento entre pessoas diversas – a sociedade. Frase bastante surpreendente e aparentemente até ingênua. É fácil entender porquê: suponhamos uma classe cujos alunos fazem péssimos trabalhos escolares, as suas notas baixas serão justas, porém, jamais será um fator de unidade desta sociedade. Poder-se-ia questionar os critérios de avaliação do professor, a sua metodologia de ensino, ou seja, o critério de justiça poderia ser relativizado. O mesmo se dá com o choque de tantos interesses que formam a sociedade, que se fosse esperar tal justiça como meio de conjugação social, nenhuma sociedade existiria.

Haveria em Aristóteles um naturalismo da virtude da justiça? Ou seja, ao se juntarem os homens viriam ao mesmo tempo as três distintas dimensões humanas: racional, moral e política? Mais uma vez devo reiterar que isto é claramente aristotélico, mas, não é Aristóteles; e aqui também o princípio do ser como analogia (prôs hen) tem que ser novamente resgatado. Na passagem supracitada se dá destaque à importância da justiça para que uma comunidade sobreviva, mas não se coloca a quantidade e a qualidade da justiça que seria necessário para que esta sociedade permanecesse unida, ou para que alcançasse o seu fim último, o maior dos bens segundo Aristóteles, que é a Eudaimonia(felicidade, auto-realização). Isso porque examinando as sociedades vê-se nelas muita injustiça.

Mas mesmo com tal relativização da quantidade de justiça necessária para cada Estado se manter, aos modernos tais formulações parecem bastante nobres, mas pouco aplicáveis. Para eles, por sua vez, o que se deve destacar é a importância do poder, composto por meios técnicos para se manter a paz social – através da coação, ou aparelho monstruoso, cujo principal elemento de manutenção da ordem social seria o medo. E mesmo que se limite tal poder coercitivo monstruoso, havendo eleições democráticas, tal limitação é apenas uma concessão, uma doação do poder constituído de fato, que são os aparatos burocráticos, isto é, aqueles que detêm os meios de constituição de tal sociedade. Assim, o destaque recai na técnica militar, na técnica judiciária, na técnica científica e de modo muito pobre nos fins sociais a serem atingidos. Havendo divórcio das dimensões política e moral.

Modo bastante diferente da concepção Aristotélica de constituição (e avaliação) da sociedade, que parte da quantidade de virtudes dos cidadãos e não do poder, sendo que a existência (ou não) de virtudes viria antes do poder, e por isso mesmo sendo seu fruto ou conseqüência. Assim, as virtudes funcionariam como parâmetro de avaliação do surgimento das características de uma sociedade: De homens brutos nasceria um poder bruto (é o caso dos bárbaros), de homens virtuosos um poder virtuoso (é o caso da Pólis). Ou seja, aqui a dimensão ética é a causa e não um mero meio de melhorar ou manter a sociedade em paz, como aparato ideológico.

É por isso que a ciência ética tem tanta relevância em Aristóteles, ela não é apenas um aconselhamento ou método de bem estar individual, mas é a manifestação do éthos(costume) de uma sociedade, e ao mesmo tempo do indivíduo, e o único meio de transformá-la.

Deste modo, a Ética não tem apenas uma finalidade epistêmica, mas têm também um forte teor terapêutico holístico. E a plenitude da saúde é a Eudaimonia (felicidade – auto-realização) de todas as partes, onde indivíduo e sociedade se interagem para atingir a sua plenitude. E é nesta concepção de sociedade que faz sentido a virtude da justiça como meio de junção social, pois, embora a injustiça seja também na sociedade burocrática moderna um fator de instabilidade, a falta da justiça não trará necessariamente a sua desintegração.

Na Ética a NicômacoAristóteles distingue o que será responsável nos seres humanos pelo estabelecimento da virtude, e, por conseguinte, uma Vontade Moral, que é mais um dos tipos de virtude chamada de Dianoética (intelectual) que é executada pela faculdade da Phrônesis (razão prática). Essa virtude da Phrônesis quando é praticada é responsável por estabelecer bons fins, e delimitar o que a nossa vontade deve ou não querer, sendo, "um raciocínio desiderativo ou um desejo raciocinativo" (Aristóteles,1991 p.102). Mas essa ação virtuosa não se dá de modo simples, mas é uma tarefa de realização das potencialidades ou virtualidades da natureza humana. Conforme Nogueira:

A natureza requer, pois, a intervenção do homem, o qual, guiado pela virtude dianoética da frônesis, a sabedoria prática, pode alcançar com segurança a auto-realização. Esta, porém, não se dá automaticamente, mas requer uma disciplina que impõe esforço e cuidados contínuos. A virtude ética, hábito efetivo ordenado pela razão (metalogon), que visa "tornar bom" o sujeito, forma-se pelo exercício, ou seja, pela repetição de Bons Atos (Nogueira, 1993, p.43).

E a phrônesis, a razão prática, então estabelece tais virtudes aparando as arestas dos extremos e estabelecendo o justo meio entre estes: entre o comer demais e o de menos há a temperança, entre a avareza e a prodigalidade há a liberalidade, entre a covardia e a temeridade há a coragem, entre outros exemplos. Não sendo o relegar dos prazeres, mas a sua delimitação de acordo com a natureza individual das pessoas.

Se há uma palavra que pode sintetizar todas as outras no bom uso da razão prática (phrônesis) é a justiça (dike), pois nela também está implícito: o justo meio; a justa deliberação – que é a justa formulação de regularidades, isto é, normas ou leis; o justo julgamento – que é a justa aplicação da lei ou eqüidade (epikéia).

Esse é o ponto que tange tanto à individualidade quanto ao coletivo, ele abarca não apenas as singularidades dos indivíduos, quanto toda universalidade da Sociedade. Porque a justiça caracteriza-se em ter esta dupla face, como o deus Juno: o bem particular, e os princípios universais do bem comum. E a manifestação formal desta dupla face está expressa sob a forma da lei (nômos). Entretanto, a manifestação legal da justiça não é a justiça. Ela não tem a razoabilidade (ou maleabilidade) da justiça que se manifesta pela sua aplicabilidade do juiz ou do examinador, através de uma outra virtude relacionada a ela – a Eqüidade (epikéia).

Aqui está o modo de se comparar a lei ao éthos e às situações concretas para julgar de forma verdadeiramente justa – coisa que a simples forma da lei não pode fazer, ou seja, interpretar a si mesma; dando a pena necessária para cada caso específico, interpretando-os (hermenêutica). Desse modo, para aqueles que necessitam penas mais severas – a severidade da lei; ao invés dos que têm uma maior possibilidade de regeneração. Diz Aristóteles que "o homem comum não obedece por natureza ao sentimento de pudor, mas unicamente ao medo, e não se abstém de praticar más ações, porque elas são vis, mas pelo temor do castigo" (Aristóteles, 1991 p.192).

Ou seja, vê-se reiterado, quase de modo hobbesiano, a necessidade de coerção dos que tendem à injustiça por natureza, pois, não cultivam o hábito virtuoso que é bastante penoso, mas ao mesmo tempo tem um sabor verdadeiramente bom, embora a minoria não o aprecie.

Se Aristóteles visse apenas este lado sombrio da natureza humana, possivelmente também chegaria à conclusão da necessidade de um Leviatã burocrático, como propôs Hobbes ou outros modernos. Mas o que o distingue destes é mais uma vez a sua concepção que relativiza a tentativa de se formar normas absolutas com a analogia (prós hên).

A possibilidade da virtude não tem uma existência natural na natureza humana, mas o que ele vê como natural no Homem é um fator preponderante nesta complexa questão da natureza humana, e, consequentemente da sociedade civil, da vida em sociedade:

Até em nossas viagens podemos ver o quanto cada homem é chegado e caro a todos os outros. A amizade também parece manter unidos os Estados, e dir-se-ia que os legisladores têm mais amor à amizade do que à justiça, pois aquilo a que visam acima de tudo é a unanimidade, que têm pontos de semelhança com a amizade... E quando os homens são amigos não necessitam de justiça, ao passo que os justos necessitam também da amizade, e considera-se que a mais genuína forma de justiça é uma espécie de amizade (Aristóteles, 1999, p.139).

E é este um ponto bastante esclarecedor de como aparamos tantas arestas e que torna possível o convívio social, pois não se vê nas sociedades pessoas amigas ou que pertencem à mesma comunidade se matarem umas às outras, como sugere Hobbes e outros modernos. É claro que é necessária a coerção das leis aos brutos, mas é a amizade que permite que sejamos realmente um Zoon Polítikon e o primeiro que descobriu isso foi "o maior dos benfeitores" (Aristóteles, 1999, p.147), pois, é a própriarealizaçãodoseuSer nassuas três dimensões da natureza humana: a Racional (Prudência – phrônesis), a Moral (Justiça ou Bem Supremo), e a Política (Amizade) que realiza o seu fim supremo no exercício da liberdade – a Felicidade de todos.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco Editora Abril Cultural: São Paulo, 1991 (Coleção Os Pensadores).

ARISTÓTELES. Política. Editora Abril Cultural: São Paulo, 1999 (Coleção Os Pensadores).

NOGUEIRA, J C. "A Ética, A Felicidade e o Dever: confronto crítico entre a ética aristotélica e a ética kantiana" Revista Reflexão. PUCCAMP: Campinas, nº 55/56, pp. 29-47, Janeiro/Agosto/1993.

1 Mestre em Filosofia Social pela PUC-CAMPINAS, 2005

Professor na Faculdade de Direito, EDUVALE de Avaré – SP

Professor na Faculdade de Pedagogia, UNICESPI – Pirajú – SP


Autor: EDILSON TRIGO


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