LAS CASAS: UM PARADIGMA E ÍCONE NA DEFESA DA DIGNIDADE DOS POVOS INDÍGENAS DA AMÉRICA LATINA



George Laurindo de Andrade – [email protected]

Universidade Regional do Cariri – URCA(1)

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade apresentar uma visão panorâmica da contribuição de alguns pensadores e autores, e sua argumentação filosófica para questão dos direitos essenciais, tomando por princípio orientador dos direitos fundamentais, a dignidade humana. É anseio do referido artigo, realçar a importância da obra e vida de Bartolomeu de Las Casas, como defensor dos direitos humanos, bem como, cronista e protótipo do pensamento social, dos povos ameríndios no contexto do genocídio perpetrado contra os índios na colonização espanhola da América, no século XVI.

PENSADORES E MARCO HISTÓRICO

Falar da dignidade da pessoa humana no decurso do tempo que perpassa a evolução das sociedades é tarefa árdua, a qual foge ao âmbito deste breve ensaio. Trata-se de contemporizar e correlacionar fontes históricas das mais variadas, enfatizando a elaboração de pensadores da vertente que atribui tal característica do ser humano (a dignidade) desde sua origem "sagrada" à postura laica.

Eminentes autores já discorreram sobre a temática da dignidade do ser humano, iniciaremos este artigo, com a colaboração do insigne professor Ingo Wofgang Sarlet, o qual, discorrendo com maestria sobre o conteúdo e significado da noção de dignidade da pessoa humana, desde logo adverte o leitor das dificuldades inerentes ao tema por tratar-se de uma abordagem genérica e inevitavelmente incompleta, em função do quanto já foi escrito sobre o assunto.

Assim o festejado autor atribui o significado da dignidade humana, sua valoração intrínseca, em suas raízes no pensamento clássico e no ideário cristão (SARLET, 2007:29). Na mesma senda do citado mestre, Roberto Andorno, referenciado como um dos mais destacados pensadores argentinos contemporâneos (RABINOVICH, 2007:56) afirma que tanto a UNESCO, como O Conselho Europeu, têm se utilizado da noção da dignidade humana, para colocar limites ao crescente poder das Biotecnologias sobre a humanidade. No dizer de Andorno: "Eis que a dignidade humana seria um dos poucos valores comuns no nosso mundo plural filosófico, Nela se embasariam tanto os direitos humanos como a democracia. As maiores partes das pessoas assumem como um fato empírico, os seres humanos possuírem uma dignidade intrínseca."

O insigne mestre argentino Rabinovich (2007:57), sobre o tema, orienta que a idéia da dignidade humana tem sido posta em crise hodiernamente, quer pelo lado jurídico, a dignidade humana, confere base a normativa internacional em matéria de direitos humanos. Pelo lado filosófico, tem se mostrado crescente o questionamento fundado na sua ambigüidade. Dignitas, em latin, significa, entre outras coisas, "valor pessoal, mérito, virtude, consideração, estima, condição, honra". Ainda referenciando Andorno: "esta se associa normalmente com a importância suprema, o valor fundamental e a inviolabilidade da pessoa humana". Vinculação que se remonta a toda a história do Pensamento ocidental.

Retomando a "trilha histórica", se desta forma pudermos nos expressar, volveremos às raízes temporais do princípio em sua vertente clássica, e encontraremos no pensamento pré-socrático a feliz afirmação da sentença "o homem é a medida de todas as coisas", sendo atribuído ao ser humano parâmetro de significação e medida de axiológica de tudo o mais, presente na genialidade do pensamento grego inerente à condição humana, está centrada a idéia ou conceito metafísico, em sua ontologia, da dignidade humana.

A despeito da fórmula proposta por Protagóras, sejamos cautelosos em função dos limites impostos a pessoa humana, sobretudo no critério de igualdade dos homens na sociedade grega. Para Platão, em A República, a idéia de justiça, e em seu exercício como práxis humana, e implícita está a condição de sua dignidade, relacionada está na sociedade à virtude do bom desempenho de cada função. Destarte, justiça é concebida como a distribuição eqüitativa dos bens: a cada um o que lhe é devido. Justiça não é igualdade. Portanto, o viver "dignamente" para o filósofo grego, é ter em mente que cada indivíduo, ou classe a qual pertence, deveria ocupar-se apenas em desempenhar bem suas próprias atribuições, nunca ambicionando ou ocupando posições na sociedade para as quais não têm aptidão.

Na lição de FARIA (FARIA, 2007) para a polis e sua organização: "Platão acredita na possibilidade de imprimir à cidade uma organização justa, isto é, racional, dando a cada um o que lhe é devido, nem mais nem menos". Através desta ordenação, considerava possível neutralizar os interesses privados, as paixões desenfreadas, a ambição sem medida calcada no individualismo, fazendo com que cedo os homens sejam formados segundo regras estritas e implantando um sistema através do qual os mais sábios e justos (os filósofos) possam alcançar o poder e o governo da cidade.

Esta condição humana de "dignidade-igualdade funcional" e seu conseqüente ideário de justiça parcial distributiva, considerando por base as idéias de justiça atuais, estavam intimamente relacionados à concepção hierarquizada estamental da cidade-estado grega, mormente de Atenas em seu tempo.

Aristóteles, discípulo de Platão, rompendo com o dualismo de seu mestre, apresentam na obra Política, livro V, descreve a importância da justiça distributiva para a manutenção da paz na polis. Propõe o estagirita, a idéia de justiça proporcional, enfatizando que a justiça não se reduz à igualdade (dignidade). "Se há no dizer dos filósofos, algo de justo entre os homens, é a igualdade de tratamento entre pessoas iguais (...) A igualdade parece ser à base do direito, e o é, efetivamente, mas unicamente para os iguais e não para todos. A desigualdade também, o é, mas apenas para os desiguais" (Política, op. cit, p. 162).

Estava claro para tais pensadores, e assim o encaravam com certa naturalidade, que na sociedade não há igualdade plena de direitos entre os homens, portanto em se tratando de efetivar a aspiração maior do direito, qual seja, promover a justiça para cada um, de acordo com seu posto na sociedade, sendo perfeitamente aceitável com naturalidade, que existam e convivam homens em situações de desigualdade, inobstante sua origem divina, ou do "motor universal", não se apresenta destarte, de forma clara a condição e o valor da dignidade do homem, como condição implícita ao integrante de determinada classe, por exemplo, ao cidadão, por suas atribuições e funções é a quantificação e modulação da dignidade, no dizer de SARLET, sendo, portanto desigual, ao estrangeiro e ao escravo.

Ainda na antiguidade, em Roma segundo SARLET (SARLET, 2007) "... notadamente a partir das formulações de Cícero, que desenvolveu uma compreensão de dignidade desvinculada de cargo ou posição social - é possível reconhecer a coexistência de um sentido moral (seja no que diz às virtudes pessoais do mérito, integridade, lealdade, entre outras) e sociopolítico de dignidade (aqui no sentido da posição social e política ocupada pelo indivíduo). Ainda de Roma, com Sêneca, encontramos diretamente ligada a concepção de origem sacra: "O ser humano, para ser humano é algo sagrado".

Da lavra de Klaus Stern (SARLET. 2007:31) a concepção de inspiração cristã e estóica, seguiu sustentada por Tomás de Aquino, o qual chegou a referir expressamente o termo "dignitas humana", secundado posteriormente na Renascença pelo humanista italiano Pico Della Miràndola, o qual advogou a idéia de que racionalmente a dignidade humana é uma qualidade que possibilita ao ser humano construir de forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino.

Exaltando o ser humano em sua apresentação do tema sobre a dignidade do homem em forma retórica de pergunta, com o fim de despertar a curiosidade e captar a benevolência do auditório, o grande humanista Pico Della Miràndola assim manifestou-se com genialidade:

"Tenho lido, respeitabilíssimos senhores, nos livros antigos dos árabes, que Abdala, o Sarraceno, questionado a respeito de que coisa se lhe oferecia à vista como mais notável sobre o cenário deste mundo, respondeu nada haver de mais admirável que o próprio homem. Com essa sentença concorda aquela exclamação de Hermes: "Ó Asclépio, que portento de milagre é o homem"! "(...) O homem, na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos, por ser, efetivamente, um portentoso milagre."

A afirmação da idéia de dignidade humana foi engrandecida nos tempos modernos pela contribuição do espanhol Francisco de Vitória, contemporâneo de Frei Bartolomeu de Las Casas. Francisco de Vitoria, no século XVI, no sangrento processo de colonização espanhola ante a aniquilação, escravização e exploração dos índios na América, tomando por base o pensamento estóico e cristão, afirmava que em função do direito natural e de sua natureza humana, embora não sendo cristãos, católicos ou protestantes, eram em princípio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direitos, proprietários e na condição de signatários dos tratados firmados com a coroa espanhola (SARLET. 2007:32).

Nos séculos XVII e XVIII, sob o influxo do pensamento jusnaturalista, a dignidade passou por um processo de racionalização e laicização, o que no dizer de Frankenberg, citado pelo mesmo autor, é com Kant que, de certo modo, se completa o processo de secularização da dignidade, que de vez por todas abandona suas vestes sacrais.

BREVES COMENTÁRIOS SOBRE LAS CASAS

Voltemo-nos doravante, após brevíssimos relatos da evolução do princípio norteador da existência humana, para a ação e escritos de Bartolomeu de Las Casas, o qual no dizer de frei Carlos Josaphat (Las Casas. Todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000), é o modelo e o porta-voz da justiça social, o profeta de todos os direitos para todos na América.

Mas quem foi, e que legado transmitiu Las Casas? Pode ser inferida alguma repercussão jurídica oriunda do trabalho deste religioso dominicano do século XVI? Estas e outras questões serão brevemente abordadas neste ensaio, em função da extensão da obra de Las Casas e da grandiosa literatura esboçada sobre o mesmo, apresentaremos breves informes biográficos e resumidas considerações em torno do conhecido debate de Valladolid por sua repercussão jurídica.

Bartolomeu de Las Casas, foi um homem do seu tempo, com os olhos no futuro. É considerado um dos precursores da ciência antropológica, um teólogo de aguçada compreensão dos direitos humanos. O Apóstolo dos índios, "procurador e protetor universal de todos os povos indígenas, como se autodenominava, foi um cronista privilegiado, o qual vivenciou como poucos a "cruenta e insana" desgraça dos povos ameríndios, frente à exploração espanhola nos tempos da colonização. Transcreveremos á guisa de brevíssima biografia apenas alguns trechos da apresentação por Eduardo Bueno, da obra mais conhecida entre nós (infelizmente do pouco), O PARAÍSO DESTRUÍDO (L&PM POCKET Editores. 2001).

Bartolomé de Las Casas nasceu em Sevilha, em 1474. Em abril de 1502, já formado em direito pela Universidade de Salamanca, embarcou para a América em companhia de Nicolas de Ovando. Em 1511, de regresso a ilha de Espanhola, depois de uma estadia de quatro anos na Espanha, recebeu na localidade Concepción de la Veja, seu primeiro repartimento de índios, tornando-se assim encomiendero. Foi nessa condição que escutou o sermão de Antônio de Montesinos(cujos protestos , meses depois, foram calados por ordem do superior dominicano Alonso de Loyasa).

Apesar de profundamente abatido pela prédica de Montesinos, Las Casas deu prosseguimento a sua vida de descobridor e conquistador. Dois anos mais tarde, participou da conquista de Cuba, comandada por Diego Velásquez e Panfilo de Narváez. Durante os combates, Narváez - segundo seu próprio depoimento, nas Cartas de Relación - mandou degolar sete mil índios nas proximidades de Caonao. Depois dessa conquista, Las Casas recebeu novas porções de terra e outro repartimento de índios, em Jaguá, Cuba. Foi durante sua residência de um ano na ilha que tomou a decisão de abandonar suas posses, seus lotes de escravos e consagrar sua vida à defesa dos indígenasdo Novo Mundo.

De 1514 até o ano em que morreu, em 1566, com noventa e dois anos de idade, Las Casas levou adiante sua luta cada vez mais radical. Ardente e incansável, de temperamento combativo e turbulento, suas atitudes agitaram a metrópole e a colônia. Fez dezenas de denúncias, protestos, pedidos, exigindo que os indígenas fossem encarados como os verdadeiros "possedores y proprietários de aquellos reinos e tierras". Na prática, conseguiu duas vitórias que sempre considerou insuficientes: as Novas Leis promulgadas em 1542, que praticamente encerraram o sistema das "encomiendas", e as doutrinas jurídicas expostas na Universidade de Salamanca pelo grande reformador de teologia Francisco de Vitória, que lhe garantiram a vitória legal da explosiva polêmica contra Juan Gines de Sepúlveda, partidário da "servidão natural" dos índios da América.

Assim o ensaísta e poeta cubano José Martí descreve Las Casas exercendo o que viria a se tornar sua atividade primordial: escrever. E Las Casas escreveu muito. Os principais livros de Frei Bartolomé de Las Casas: Apologética História de las Índias - Universidade Autônoma do México, 1966; Del Único Modo de Atraer a Todos lo Pueblos a la Verdadeira Religión - México, Fondo de Cultura Econômica, 1972; Los Índios de México y Nueva España - México, Editorial Porrua, 1979; Opúsculos, Cartas y Memoriales - Madrid, Editorial Atlas, 1958; Tatados - México, Fondo de Cultura Econômica, 1966.

Sua tese era simples, direta: para ele, como para Miguel de Montaigne, a América era "a mais bela e rica parte do mundo", uma reminiscência do paraíso terrestre, e os índios, seus habitantes, seres humanos, inteligentes, audazes e belos". Em sua opinião extremada, garantia poder assegurar "com certeza e sem medo de errar que os espanhóis jamais tiveram uma guerra justa contra os índios", senão que eram todas provocadas "pela ganância, luxúria e cegueira desses cruéis conquistadores". Não só os massacres, mas também a terra roubada e usurpada, o trabalho estafante e obrigatório ao qual os indígenas eram forçados indignavam profundamente Las Casas. Em resumo, era contrário a instauração dessa nova espécie de feudalismo naquelas terras paradisíacas. E assim se manteve, por toda a vida.

O DEBATE DE VALLADOLID: LAS CASAS E A IGUALDADE E DIGNIDADE DOS AMERÍNDIOS

Da vida em contato com a realidade marcante da expansão colonial espanhola, resultando em mortes e verdadeiras carnificinas perpetradas às comunidades indígenas, proporcionaram ao dominicano, homem dotado de cultura e racionalidade, a compreensão da utilização em seus escritos da retórica e da lógica aplicada aos fatos sociais, tornando-o um incansável defensor da dignidade humana. Tanto é que ele dizia: "é preciso juntar el hecho y el derecho, dar-se conta da realidade e dos fatos e procurar fazer acontecer o direito, aquilo que é devido a todos" (OLIVEIRA. 2002).

Destarte, tal visão de conjunto da realidade social de seu tempo, e de suas conseqüências futuras, o qualifica como um precursor do pensamento sociológico e antropológico atual. Ousaria dizer que no direito, em função da vasta obra produzida, em especial seus debates contra as teses de Juan Gines de Sepúlveda, que entrou para os anais da história do direito, como o Debate de Valladolid, ocorrida em duas sessões no ano de 1550, diante de um tribunal composto por 14 juízes, dentre os quais, teólogos, juristas e letrados de alto renome, só para citar, fazia parte o renomado Francisco de Vitória, qualificaram Frei Bartolomé, em nossa modesta opinião, além de defensor da dignidade humana,uma figura precursora do ponto de vista histórico, Las Casas seria um protótipo de amicus curiae das populações indígenas no continente americano. Atualmente, muitas instituições, ONGS, e pessoas se qualificam como representante deste instituto jurídico processual, utilizado juridicamente como terceiro que traz ao processo elementos e convicções ao julgador na melhor compreensão e julgamento das lides, mormente na defesa dos direitos humanos. Tal instituto jurídico em franco crescimento e uso no direito internacional, aos poucos tomando vai tomando corpo no nosso sistema jurídico pátrio.

Necessário se faz priorizar o polêmico debate travado entre Las Casas e Sepúlveda, momento ímpar da obra do frade dominicano, que entrou definitivamente para os anais da história, como uma disputa de teses dispares, as quais no bojo da peroração, esboçavam temáticas de justificação ideológica para a dominação dos índios, questões de direito natural, bem como aspectos ético-religiosos, focadas para expor a verdadeira motivação da conduta dos espanhóis nas Índias: a inferioridade dos índios.Todas estas diretamente relacionadas ao contexto histórico da expansão colonial do século XVI.

Em lados opostos estavam Juan Ginés de Sepúlveda, doutor em artes e teologia, além de ter estudado direito e filosofia na Universidade de Bolonha, historiador e partidário da teoria aristotélica da "servidão natural" dos "povos inferiores". Ávido por publicar seu opúsculo escrito em latim elegante e intitulado Democrates alter, sirve de justis belli causis apud indos, fora o doutor Sepúlveda proibido de publicar seus escritos, apresentando em três horas no debate Valladolid, a leitura de 44 páginas de seu livro, baseando sua retórica em Aristóteles, afirmando que os habitantes das índias não viviam em estágios civilizatório, apresentando somente indícios de que os índios encontravam-se no estado de barbárie.

Sepúlveda absorve o entendimento proposto desde antiguidade sobre o olhar do outro, no uso de explicações como esta de Bodin, citado Laraia(LARAIA. 2007: p.14 e 15):

"Jean Bodin filosofo francês do século XVI, desenvolveu a teoria que os povos do norte".

Na lição de TODOROV(TODOROV.1993) para Sepúlveda, com base no filósofo grego, a dominação e a desigualdade dos índios, se justifica, na desigualdade dos índios onde o perfeito deve dominar sobre o imperfeito, assim como o adulto sobre a criança, o homem sobre a mulher e o clemente sobre o feroz. "Todas as diferenças se reduzem, para Juan Ginés, a algo que não é uma diferença, a superioridade/inferioridade, o bem e o mal".

Utilizando-se do excelente artigo de lavra do ilustre professor José Carlos Moreira Filho(WOLKMER. 2004) na visão de Sepúlveda, a conquista, na verdade, é um ato emancipatório, porque permite ao bárbaro sair de sua barbárie. E para a realização desse feito admite-se a violência irracional e a "guerra justa".Nas palavras do mestre acima citado comentando essa pretensa ação emancipa tória:

"Como já se afirmou alhures, é curioso perceber que nesta visão emancipadora os povos "subdesenvolvidos" são duplamente culpáveis. Primeiro, por "serem" inferiores; segundo, por "darem motivação" à ação violenta da conquista ao não acatarem corretamente a "verdadeira cultura" (WOLKMER. 2004).

Os argumentos de Sepúlveda revelam notoriamente a visão do conquistador, no chamado processo civilizatório, posição marcadamente etnocêntrica, digna de justificação ideológica do vencedor sobre o vencido; do conquistador sobre o conquistado, mas à época não se vislumbrava ainda a compreensão e o olhar da alteridade, tão bem apresentado mais tarde pela contribuição da antropologia social e cultural. Por estes e outros exemplos, como no debate em questão, e nos escritos apresentados, os historiadores e cientistas sociais apontam Las Casas, como um precursor da Antropologia.

Aliás, justificações ideológicas, as mais abjetas, terríveis e despropositadas para nós homens do século XXI, que contraditoriamente elevamos às alturas a dignidade do homem nas "Cartas Magnas" liberais, passando pelo Manifesto Comunista, adentrando ao século conhecido como "a era dos extremos", o dizer de Hobsbaunw, o século XX, "esculpindo o princípio no frontispício" do documento máter das Nações Unidas, a despeito de todas essas conquistas, esta nossa sociedade dita "civilizada e global" assiste e decreta a morte de milhões de seres humanos igualmente dignos, no holocausto, nos campos de trabalhos forçados, nos períodos negros da ditadura militar, ou mesmo, na "guerra diária", pelas mais diversificadas formas de violência gestadas nas cidades do Brasil e do mundo.

Tamanha era e virulência e incoerência das justificações, as mais díspares possíveis para o "genocídio" dos índios americanos, para não mencionar unicamente aquelas evocadas por Sepúlveda, assim citando trechos de As Veias Abertas da América Latina (GALEANO. 1989: p.52,53):

"Não faltavam as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nasceu um sistema de álibis para as consciências culpáveis. Transformavam-se os índios em bestas de carga, porque resistiam a um peso maior que do que suportava o débil lombo da lhama, e de passagem comprovava-se que, na realidade os índios eram bestas de carga. O vice-rei do México considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para curar 'a maldade natural' dos indígenas. (...) O conde de Buffon afirmava que não se registrava nos índios, animais frígidos e débeis, 'nenhuma atividade da alma'. O abade De Paw inventava uma América onde os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer como semelhantes os 'homens degradados' no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e disse que os índios tinham perecido ao sopro da Europa.

No século XVII, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de ascendência judaica, porque, como os judeus, 'são preguiçosos, não crêem nos milagres de Jesus Cristo e não são gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fizeram'. (...) O Padre Bartolomeu de Las Casas agitava a corte espanhola com suas inflamadas denúncias contra a crueldade dos conquistadores da América: em 1557, um membro do conselho real respondeu-lhe que os índios estavam nos últimos degraus da escala da humanidade para serem capazes de receber a fé. Las Casas dedicou sua fervorosa vida à defesa do índio, frente aos desmandos dos mineiros e encomenderos. Dizia que os índios preferiam ir ao inferno para não se encontrarem com os cristãos. (grifo meu)"

Las Casas reage vigorosamente, na polêmica de Valladolid, em sua peroração falou durante cinco dias, com tamanha eloqüência, bem como se utilizando de todo o material recolhido e produzido em território americano, exposto em sua Apologia, com 253 páginas, e por sua Apologética história das índias, contendo nada maia nada menos que, 257 capítulos finalizados em cerca de 800 páginas rebatendo a argumentação de Sepúlveda, com superior argumentação aristotélica! Para os historiadores, o debate, representou um verdadeiro marco contra a ação espanhola na América. Eduardo Bueno (apresentação do PARAÍSO PERDIDO: 2001) assim aduz:

"Os argumentos de Sepúlveda, entretanto, foram derrubados pelo juiz dos debates, Francisco de Vitória, em seu veredicto definitivo: 'De tudo o que foi dito, concluiu-se que, sem dúvida alguma, os bárbaros tinham, assim como os cristãos, um poder verdadeiro tanto público como privado. Nem os príncipes, nem os cidadãos poderiam ser despojados de seus bens sob o pretexto de que não possuíam verdadeiro poder. Seria inadmissível recusar àqueles que nunca cometeram injustiças o que conhecemos como Sarracenos e Judeus, inimigos eternos da religião cristã. Reconhecemos de fato a esses últimos um poder verdadeiro sobre seus bens, exceto quando se apossaram de territórios cristãos (...)'

A decisão histórica de Francisco de Vitória, entretanto, chegara tarde demais. Em 1550, mais de noventa e cinco por cento da população indígena do Caribe já estava exterminada(grifos meu)."

Por sua ação e dedicação em vida à causa dos índios americanos frente à matança e regime de servidão daqueles excluídos, que mais uma vez nos servimos de José Carlos Moreira da Silva, em magistral artigo intitulado: "Da invasão da América aos sistemas penais de hoje" (WOLKMER. 2004: p.299):

"(...) Além disso, há que se considerar que, ao pedir um tratamento mais humano para os índios, mesmo sob termos assimilacionistas, fez a única coisa que em nível imediato, era possível para mitigar o sofrimento dos habitantes originais daquelas terras. Também não se pode olvidar que a maioria de suas cartas eram dirigidas ao rei, e estrategicamente não poderia sugerir que este abdicasse de suas possessões além-mar (conselho que mais tarde, irá efetivamente pronunciar). Usou então o expediente de que tal domínio fosse feito por padres e não por soldados, o que garantiria aos índios uma proteção contra os suplícios. Nesse sentido, Bartolomé de Las Casas é considerado o primeiro defensor, na América Latina, do que viria a ser chamado de 'direitos humanos'(grifo meu)".

O genocídio ameríndio foi assim perpetrado, milhões de seres humanos foram trucidados, em nome do "ouro, poder e glória", velho lema mercantilista, traduzido na palavra ganância e argumentado sob diversos subterfúgios ideológicos, sobraram apenas algumas vozes "ecoando no deserto da dor", como a voz de Las Casas, para reagir e bradar em luta do direito e da dignidade do homem indígena. E por tratar-se de legado hodierno, necessário, tanto quanto, premente a luta pela dignidade humana, deve ser também estimulada na preservação da memória da vida e obras de homens dedicados a tão nobre causa, no intuito de transmitir às gerações futuras um mínimo ético-reflexivo capaz de criar e promover sujeitos históricos cada vez mais comprometidos com os valores plurais, dentre os quais, a dignidade como fundamento dos direitos do homem, mormente direitos essenciais, como a vida e a liberdade, por exemplo.

É tão necessária tal ênfase, que nos valemos da lição do mestre argentino anteriormente citado para compreender a razão maior de ser e de existir de uma sociedade dita civilizada (RABINOVICH. 2007: p.57):

"La dignidad humana podria pensarse, pués, como um 'derecho a non ser humilado'. Pero Andorno cree que la dignidad no és um derecho humano, sino la base de todos ellos (aunque algunos ataques la afecten más directamente que otros: tortura, esclavitud, etc.) De aqui derivan dos corolarios. Que los derechos humanos no podrian ser retirados, porque derivan de la dignidad, no de la voluntad del gobernante. Y que todos los humanos poseerian las mismas prerrogativas esenciales, por tener idéntica dignidad. La noción de dignidad humana seria, pués, 'condición necesaria para estabelecer uma sociedad civilizada'."

 

 

A GUISA DE CONCLUSÃO

Hoje mais que nunca, fazer, ensinar e construir memória, sobre a realidade permeada pela dor; o desespero e a desgraça dos excluídos do passado, não é tarefa única dos historiadores e cientistas sociais, como atitude reflexiva e construtiva, para formação da cidadania. Urge, mormente àqueles que se dizem "operadores do direito", é nesse contexto importa dizer, é mister decisivo que tal tarefa, seja iniciada no período de formação dos futuros juristas, nos bancos das faculdades de direito, desde o primeiro ano, com a adoção de perspectivas e programas de ensino jurídico, realmente voltados para uma postura Crítica do Direito, visto primordialmente como um fato social, com o objetivo de ajudar na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual.

Se com "sangue" derramado, Jesus Cristo, Filho de Deus, fez nascer para os cristãos, a crença "do direito a salvação"; se com sangue foram e estão sendo escritas as páginas da história da sociedade humana; com sangue foram constituídos também nossos direitos a vida, a liberdade, ao trabalho, a educação, a família, inclusive dos nossos "quase ex-irmãos índios" e dos milhões de excluídos desta chamada "Ordem Social", positivada nos títulos I e VIII da CF, a ser preservada pelo Estado de Direito. Se tudo isto existe, ainda que, ao menos no papel, é tão somente por conta de um único princípio; um prius, que deveria ser objetiva e verdadeiramente "venerado" na Carta Magna de 1988, e definitivamente "esculpido" na consciência do povo brasileiro; a dignidade da pessoa humana.

BIBLIOGRAFIA

1 O autor é Advogado e Professor Assistente do curso de Direito da Universidade Regional do Cariri – URCA.

WOLKMER, Antônio Carlos Wolkmer. Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GALEANO, Eduardo Galeano. As veias abertas da América latina. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1988.

TODOROV, Tzevetan Todorov. A conquista da América: a questão do ouro.São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LARAIA, Roque de Barros Laraia. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2007.

FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de Faria. Direito e ética: Aristóteles, Hobbes, Kant.São Paulo: Paulus, 2007.

LAS CASAS, Frei Bartolomé de Las Casas. O paraíso destruído: A sangrenta história da conquista da América Espanhola. Porto Alegre: L & PM, 2007.

RABINOCH–BERKMAN, Ricardo David Rabinovich-Berkman.Derechos Hmanos. Una introducción a su naturaleza y a su história. Buenos Aires: Quorum, 2007.

RABINOVICH–BERKMAN, Ricardo David Rabinovich-Berkman. Um viaje por la história del derecho. Buenos Aires: Quorum, 2007.

MIRANDOLA, Giovanni Pico Della Miràndola. A dignidade do homem. São Paulo: Escala, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.


Autor: George Laurindo de Andrade


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