A Identidade Da Mulher Em Construção: Uma Leitura De As Doze Cores Do Vermelho, De Helena Parente Cunha



Resumo: O presente artigo, inserido na linha de pesquisa Literatura, Mulher e Identidade Cultural, propõe discutir as inquietações femininas e a busca por uma identidade própria na obra As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha. Tecendo um panorama histórico-social, o trabalho aponta as funções atribuídas à mulher ao longo do tempo e revela a sua necessidade em buscar autonomia e espaço.

Helena Parente Cunha, em sua obra As doze cores do vermelho, faz, de forma poética, um estudo crítico das relações de gênero e do papel da mulher, em vista da hibridização e do multiculturalismo que constituem a sociedade atual. Além disso, procura afirmar um discurso propriamente feminino e a construção identitária, processos necessários à reconstrução da condição feminina. O romance possui uma estrutura incomum, pois é dividido em quarenta e oito módulos e cada módulo em três ângulos, os quais se referem à vida da protagonista. Esta, mulher de personalidade fragmentada, mostra-se mais sensível para ir além do comum, por isso não se satisfaz em desenhar as formas retilíneas, simétricas e tradicionais. Dividida entre o ‘lado de cá’, que representava as normas, e o ‘lado de lá’, espaço da liberdade, a protagonista tenta se autoafirmar.

A personagem principal é o perfil da mulher que se submete às normas sociais, mas deseja transgredir. Encontrando-se entre a vontade de violar e os preceitos, não comanda suas ações devido à constante obediência às convenções. A mulher é retratada a partir dos seus medos e das suas coragens, dos seus fracassos e dos seus sucessos, das suas coerências e das suas incoerências. Dessa forma, observa-se a composição da personalidade da mulher que pode ser considerada, muitas vezes, inconstante. O romance permite depreender que o medo controla as atitudes da personagem, impedindo-a, assim, de construir a sua identidade. Os excertos abaixo revelam o quanto a protagonista, ao se intimidar diante das situações vividas, retarda o seu autoreconhecimento:

Você pega a sua bolsa e vai até a porta. Mas você não sai. Por que você tem medo? (CUNHA, 1998, p. 27).

O meio o receio o medo (Idem, p. 41).

O meio é o medo (Idem, p. 42).

Em todas as passagens, o medo limita a personagem, o que aponta para a prevalência dos preceitos sociais em detrimento dos desejos da mulher. É devido a isso que a fragmentação se torna mais evidente, visto que a protagonista aspira à independência, mas é obrigada a assumir o papel determinado pelo sistema falocêntrico. Somente com a pintura, através das cores, que não correspondem ao real, e de outros recursos, como a remissão a uma face sem boca, a protagonista consegue expressar o anseio de liberdade. Por isso, “meu namorado dizia que meus desenhos eram feios porque não tinham forma de nada. Que eu não devia colorir o céu de vermelho e não devia colorir as árvores de azul e não devia desenhar os rostos sem boca” (Idem, p. 48).

Além de revelar uma bipolaridade, o romance discute os princípios do patriarcalismo que impõem a obediência, condenam a transgressão e perpetuam a discriminação. Todas essas noções são transmitidas via um recurso inovador: as cores. Cada cor, além de estar associada a um tipo de comportamento, faz referência a uma personagem. Nesse caso, temos a amiga loura, a amiga negra médica, a amiga dos olhos verdes, a amiga prostituta dos cabelos cor de fogo, o marido da pasta preta e das meias e cuecas cinzentas etc.

Observa-se, então, conforme declara Barberena, que a mulher-artista será acompanhada durante toda a sua vida por um “mosaico de cores” (BARBERENA, 2007, p. 02). Essa policromia, recurso que intensifica e desestabiliza o ‘comum’, contribui para a compreensão da identidade que anseia ser formada. Do branco que indica luminosidade e pureza ao preto que incorpora a sombra e a obscuridade, as cores absorvem a essência humana e procuram transmiti-la a partir das experiências das personagens. 

Aliadas às cores, também determinam as personalidades, as formas exatas, atreladas à ordem – mulher loura e o marido da protagonista (personagens obedientes) – e as formas informes e a desordem – protagonista –:

A menina loura era a melhor aluna da classe. Classificável, classificada. Medalha de ouro e se sentava na frente e prestava atenção a todas as aulas nota dez em comportamento atenção contenção educação ão e ão o exemplo da escola e sorria humilde aureolada em sua altura e distância. (...) As minhas formas disformadas dissimetrias antiproporcional deslimite”(CUNHA, 1998, p. 32).

As cores evocam a personalidade de cada uma das mulheres presentes na obra e sugerem o que os nomes dificilmente poderiam expor. A amiga loura representa a obediência, princípio norteador da sociedade patriarcal. Lembra-se que o padrão falocêntrico, sendo uma herança européia, supervaloriza o branco e, por sua vez, o louro. Daí o estereótipo da mulher que segue às normas e respeita os princípios religiosos ocidentais. Assim, “sua amiga loura dizendo que a mulher casada deve se dar ao respeito” (Idem, p. 53).

A amiga prostituta de cabelo cor de fogo indica desde a sua denominação o perigo. Sendo filha de uma prostituta, deveria manter-se distanciada das outras mulheres. A discriminação a acompanhou em todos os momentos de sua vida. Nessa constante, “vozes estreitas repetiam que nós não devíamos falar nem devíamos brincar com a menina dos cabelos cor de fogo. A menina não tinha pai e a mãe não prestava. Não prestava as vozes ecoavam” (Idem, p. 20).

A amiga negra vive a exclusão, a subalternidade e a discriminação. Para se manter na escola, já que não pagava mensalidade, era preciso apagar, todos os dias, o quadro-negro e recolher os papéis do chão. Contudo, ao contrário do que se espera acontecer com uma pessoa negra na sociedade falocêntrica, a personagem obtém ascensão social, formando-se em Medicina.

Outro personagem que se revela a partir das cores é o marido da protagonista. A preferência por tons opacos é símbolo do comportamento extremamente organizado:

Ela dará ao marido uma pasta cor de terra úmida. Ele não deixará de usar a pasta preta com as divisões para seguros de vida e seguros de carro e seguros de imóveis e seguros de seguro. A voz do marido repetindo que a organização é fundamental para o equilíbrio doméstico e pessoal. Ela tentando remover as camadas de classificações (Idem, p. 25).

Em compensação, para a protagonista, as coisas não tinham formas nem cores exatas: “Eu coloria o céu de vermelhos. A professora dizia que o céu era azul (...) Minha laranja vermelha e azul não era uma linha redonda” (Idem, p. 16).

A cor vermelha presente sempre na estória refere-se à sexualidade e ao erotismo. Representa o calor humano, mas também dores, feridas e sangue. Quando a protagonista refere-se ao sexo conjugal fala em desvermelho, devido à falta de prazer na relação. Assim, “você fecha os olhos e vê ondas desvermelhas em volta de seu corpo desredondo” (Idem, p. 19). Já com o amante, ela vê reflexos coralinos, apesar da presença da culpa. A relação é desejada e se dá com prazer. Dessa forma, “você entra no quarto com seu amigo arquiteto. Ele tira sua roupa devagar e olha os espelhamentos das incidências. Desejo e marés. Seu corpo arco irisado dentro dos olhos dele em avidez simultânea (Idem, p. 85). Além disso, os diversos tons de vermelho e as formas arredondadas estavam sempre associados à felicidade:

O sol ficava redondo. O céu ficava vermelhos. Manhãs provinham na tarde cheia de asas. Vislumbres (Idem, p. 48).

O menino dos cabelos cor de mel quatro sorrisos vermelhos. Eu tinha o cabelo lilás e uma estrela acesa na boca. Ele sabia a cor da chuva. Ele sabia as doze cores do vermelho (Idem, p. 58).

Nos momentos de dificuldades, ela “calará espaços de difícil redondo. E não saberá se deve dizer o seu ardente pensar e o seu multicor sentir” (Idem, p. 19). Com isso, nota-se que as cores expressam o comportamento e as experiências tanto positivas quanto negativas da protagonista.

É possível ver a pintura como o símbolo da vitória e da tão sonhada construção da identidade da mulher-artista. Ela reúne na sua pintura todos os seus anseios e desejos. Por isso, “seus quadros e seus desejos em concretizações desconcretas e suas pulsações emanando feixes de luz flocos de sombra. Pessoas que vão à sua casa olham e perguntam o que é o que são. Seus desejos mais procedentes” (Idem, p. 33).

A escolha dos desenhos, a predileção pela formas informes e a seleção das cores já sugerem a sua predisposição em mostrar a diferença. O fato dos outros personagens, muitas vezes, não entenderem a sua obra de arte pode indicar a dificuldade da sociedade em reconhecer a diferença e valorizá-la. A pintura permitia que a mulher-artista se desvencilhasse um pouco do convencional e rompesse com o tradicional, procurando exprimir os seus sentimentos até então negados pela sociedade. Nesse sentido, a protagonista “coloria o céu de vermelhos” enquanto a professora [voz da sociedade patriarcal] “dizia que o céu era azul” (Idem, p. 16).

Considera-se ainda que a pintura é para a protagonista uma espécie de refúgio, espaço em que poderia, com prazer, expressar-se e fazer o que a sociedade não lhe permitia: ser ela própria. Era a única atividade que, distante das pressões falocêntricas, conseguiria satisfazer ao seu ego. Dessa forma, “o mundo na tela era o pouso da liberdade. Desejo e ter. Livre e ser” (Idem, p. 74). Mesmo tendo de deixá-la em segundo plano, pois precisava cumprir as funções de mãe e de dona-de-casa, a protagonista revela em sua pintura traços incomuns, demarcando, portanto, o seu próprio estilo.

Como foi visto, as personagens são denominadas por meio de nuances, o que comprovam a afirmativa de Antonio Silva acerca da protagonista de As doze cores do vermelho. De acordo com o autor, ela não possui nome e, conseqüentemente, não tem uma identidade. Por isso, “há pelo que se percebe, (...) uma espécie de perda da identidade – ou de busca, melhor dizer. O mundo falocêntrico parece reificar os seres, extinguindo-se ou negando-lhes um nome” (...) (SILVA apud CHAGAS, 2004, p. 110). Não se pode falar em perda e nem crise, pois essa mulher inominada nunca teve uma identidade, por isso não a perdeu. Não podendo se reconhecer enquanto sujeito, já que se volta para a família, para o marido, para os filhos, para sociedade e para a igreja, a mulher anula-se, o que nos leva a perceber que a anulação pode ocasionar a morte da identidade.

À medida que a mulher-artista abdica de alguns desejos para agradar ao marido e às filhas, retarda o seu equilíbrio psicossocial. Por mais que deseje e estude artes-plásticas, a protagonista precisa negar as suas vontades, acatando o que prega a sociedade. Tentando atender, ao mesmo tempo, a sua família e ao seu eu, acaba por fraquejar, não alcançando sucesso. Salienta-se, contudo, que esse insucesso faz com que a mulher se manifeste e se conscientize da sua posição de marginalizada e oprimida.

Nota-se, diante de tudo isso, que a mulher sofreu e continua sofrendo com as pressões externas que ditam como devem ser e reagir nos determinados momentos da sua vida. A contemporaneidade revela que a identidade feminina engendrada pela sociedade começa a se deslocar em virtude da emancipação dos sujeitos sociais. Daí a escolha de Helena Parente Cunha por abordar em sua obra a imagem de uma mulher desafiadora, porém intimidada pelo patriarcalismo. Os preceitos sociais, altamente punitivos, bem como o medo do desconhecido e a insegurança conseguiram mantê-la submissa, mas o próprio reconhecimento de sua condição pode ser considerado o primeiro passo rumo ao encontro de sua identidade.

REFERÊNCIAS

ABREU, Marcilio Ehms de. Vozes femininas na pós-modernidade: mulher (es) em tons de vermelho, leitura de As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha. In: CUNHA, Helena Parente (org.). Desafiando o cânone: aspectos da literatura de autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

ALVES, Ivia. A linguagem e as relações de poder e de gênero. In: Interfaces: ensaios críticos sobre escritoras. Ilhéus, Ba: Editus, 2005.

BARBERENA, Ricardo Araújo. A representação dos matizes nacionais em "As doze cores do vermelho". Disponível em: <http://www.helenaparente.com.br/criticas/ricardo.htm> Acesso em: 23 março 2007.

CHAGAS, Golbery de Oliveira. Mulher, pós-modernidade e discurso – a condição de (des) existência feminina a partir de vozes desestabilizantes, em As doze cores do vermelho, e de vozes de encurralamento, em São Bernardo.  SILVA, Antonio de Pádua Dias da; RIBEIRO, Maria Goretti (orgs.). In: Mulheres de Helena – trilhamentos do feminino na obra de Parente Cunha. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2004.

CUNHA, Helena Parente. As doze cores do vermelho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.


Autor: Maiane Moura Gomes


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