CURA DA FILHA DE UMA SIRO-FENÍCIA (Mc 7, 24–30)



CURA DA FILHA DE UMA SIRO-FENÍCIA (Mc 7, 24–30)

Jair Correia da Silva

O estudo teológico sistemático desse pequeno trecho, (8, 24-30) situado no Evangelho de São Marcos, tem o objetivo de contribuir para um maior conhecimento e aprofundamento nas diversas riquezas oferecidas pelas Sagradas Escrituras, através dos acontecimentos e milagres, realizado por Jesus num magnífico encontro com uma estrangeira que, já dar a compreender a universalidade da difusão da Boa Nova, e em sentido teológico, permite-nos conscientizar sobre a facilidade de ter uma experiência com Deus sem racismo religioso. Considerando que cada um dos evangelistas procurou enfocar aspectos da vida que nos mostra <<a pessoa, a mensagem e a doutrina de Jesus Cristo>>, durante sua estada aqui na terra.

1.Origem da Obra, Autor, Data e Contextualização

Desde a leitura da obra e análise da escrita diretamente em grego semitizante, não se pode deduzir senão que era um cristão helenista, possivelmente judeu. O Evangelho atribuído a São Marcos é aceito unanimemente pela Tradição testemunhada por Papías, bispo de Hierápolis, da Igreja primitiva que aparece no final do século I. Identificado com João Marcos, parente de Barnabé e companheiro de Paulo, do qual falam os Atos dos Apóstolos e Paulo (cf. At 12, 12.25; 15, 37.39; Fm 24; Cl 4, 10; IITm 4, 11) e além disso, é constantemente chamado intérprete, discípulo e colaborador de São Pedro citado também em (cf. IPd 5, 13). Os testemunhos externos tampouco estão de acordo, alguns colocando a redação durante a vida de Pedro (Prólogo Antimarcionita, Clemente de Alexandria) e outros depois da sua morte (Irineu). A maioria dos comentaristas sustenta que foi escrita aproximadamente nos anos 70 d.C. e antes da redação de Mateus e Lucas. Hoje em dia aceita-se como histórico o nome de Marcos. E esta obra foi acolhida como testemunho autorizado da tradição de Jesus, algo que somente podia acontecer com o testemunho dos cristãos palestinenses, que gozam de muita autoridade.[1] A obra foi editada de forma anônima, como um escrito redigido por um membro da comunidade, a seu serviço público, por isso não aparece o nome do autor na obra.

E este Evangelho foi escrito para cristãos não-judeus. É o que indica quanto ao <<lugar>>, os dados internos sugerem-no fora da Palestina, em contexto cultural-administrativo romano: com evidência, a explicação de expressões judaicas e de palavras aramaicas (p. ex., "Boanerges, isto é, filho do trovão" (3,17). Em geral, os numerosos latinismos encontrados em Marcos podem ser excluídos como termos militares e técnicos de uso corrente.

Em duas ocasiões notáveis, contudo, uma expressão grega é explicada pelo seu equivalente latino: "... duas <<lepta>> (moedas gregas), isto é, um <<quadrante>> (moeda romana)" (12,42); o "interior do pátio, isto é, do Pretório" (15,16). Esses esclarecimentos levam a crer que o evangelho foi escrito em Roma, pois explicações de moedas hebraicas com sua equivalência romana (12, 42), apresentação de um romano como o primeiro que descobre a identidade de Jesus (15, 39)... Mas, a crítica interna não nos permite concretizar e assinalar um lugar determinado. Os testemunhos externos mencionam "as regiões da Itália" (Prólogo Antimarcionita) e mais concretamente em Roma (Irineu, Clemente de Alexandria, Cf. Papías), e estas opiniões é geralmente aceita pela maioria dos comentaristas. A seu favor está o fato de que as citações mais antigas sobre Marcos encontram-se em obras associadas a Roma, em I Clemente 15, 2 e Hermas (Similit., 5, 2).

Não se põe em dúvida, que o Evangelho de Marcos tenha sido escrito antes dos anos 70 d. C., sustentado pela maioria dos comentaristas e por causa dos dados internos da obra que indicam um tempo de perseguição (cf. 8, 34s. 38; 10, 30.33.45; 13 8.10) e o relacionamento com a destruição do Templo de Jerusalém (cf. 13) apesar de que os exegetas interpretam de diversas formas os dados do discurso <<escatológico>>, percebendo algumas alusões ao tempo anterior (cf. E. Best, M. Hengel, X. Léon-Dufour, W. Marxsen, B. Rigauux, E. Trocmé...) e outros, ao posterior (cf. S. G. F. Brandon, R. Pesch, B. Standaert...), apesar de não relatarem por menores sobre os acontecimentos, ou seja, a destruição de Jerusalém e do Templo, porém, isso nos leva a compreender que é um dos mais antigos escritos recolhidos, a respeito da vida de Jesus, nas primeiras comunidades cristãs.

2.Estrutura geral do Evangelho de São Marcos

O Evangelho de Marcos é composto de duas partes complementares. A primeira (1, 18-8, 30) trata do mistério da identidade de Jesus; é dominada pela indagação: "Quem é Jesus?" A segunda parte (8, 31-16, 8) se ocupa do misterioso destino messiânico de Jesus.

Introdução tese: Evangelho é Jesus, Messias, Filho de Deus (1,1-13);

Parte I: o mistério do Messias: Revelação da pessoa de Jesus (1, 14-8, 30).

Três seções, cada qual começando por um sumário da atividade de Jesus e uma narrativa referente aos discípulos, e concluindo com a adoção de uma atitude em relação a Jesus.

Evangelho é Jesus enquanto é o Messias que proclama o reino de Deus.

Atuação de Jesus e resposta dos fariseus (1, 14-3, 6) (1, 14s. 16-20; 3, 6).

Atuação de Jesus e resposta do povo (3, 7-6, 6a) (3, 7-12. 13-19; 6, 1-6a).

Atuação de Jesus e resposta dos discípulos e os gentios (6, 6b-8, 30) (6, 6b; 6, 7-31; 8, 27-30).

Conclusão e transição (8, 27-33) Confissão de Pedro;

Primeira profecia da Paixão, correção de Pedro.

Parte II: O mistério do Filho do Homem: Revelação dos sofrimentos de Jesus.

Evangelho é Jesus enquanto é o Filho de Deus que morre e ressuscita.

Caminhando pela Galiléia e Judéia, Jesus se dirige a Jerusalém, anunciando sua morte e ressurreição (8, 31-10, 52).

Atividade de Jesus em Jerusalém antes da paixão (11-13).

Paixão, morte e a proclamação da ressurreição em Jerusalém (14, 1-16, 8).

3. Perícope: Cura da filha de uma siro-fenícia (Mc 7, 24-30)

24c Saindo dali, foi para o território de Tiro. Entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse, mas não conseguiu permanecer oculto. 25 Pois logo em seguida, uma mulher cuja filha tinha um espírito impuro ouviu falar dele, veio e atirou-se a seus pés. 26A mulher era grega, siro-fenícia de nascimento, e lhe rogava que expulsasse o demônio para fora de sua filha. 27Ele dizia: "Deixa que primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos". 28 "É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos!" 29 E ele disse-lhe: "Pelo que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha". 30Ela voltou para casa e encontrou a criança atirada sobre a cama. E o demônio tinha ido embora.

4. Delimitação da Perícope

A narração da cura da filha de uma siro-fenícia se encontra na primeira parte do livro do Evangelho de São Marcos, tendo como tema precedente a <<impureza>> que para os judeus torna o homem inábil para o encontro com Deus. E Jesus explica: a relação com Deus não depende da observância de normas ou de gestos religiosos, mas da atitude para com os demais homens. Diante da dicotomia entre o <<sagrado e o profano>> criada pelas religiões, em particular pela judaica, Jesus afirma o amor universal de Deus e a bondade do Criador. O mundo não se divide em duas zonas, uma que goza do favor de Deus (a do sagrado) e outra excluída dele (a do profano); Deus não aborrece nada do que fez. Nada é preciso fazer como obra especial para que Deus seja favorável: seu amor se estende gratuitamente a todos e a tudo. A única coisa que pode separar o homem de Deus é o mau uso da própria liberdade.

Antes de Jesus entrar em terras estrangeiras, faz um ensinamento sobre o <<puro e o impuro>> (Mc 7, 14-23), mostrando seus critérios verdadeiros e exortando os costumes tradicionais que tornaram puramente leis humanas que despreza os mandamentos de Deus, afastando dos homens os ensinamentos que deveriam servir para evangelizar e salvar. Esse critério suprime toda discriminação entre os seres humanos baseada em preceitos, ritos ou observâncias religiosas. Em princípio, todo homem é sagrado e toda criatura de Deus é boa em si mesma e pode ser benéfica para o homem. É o próprio homem e só ele que pode romper o vínculo com Deus.

E o tema posterior do qual estamos tratando, é o da <<cura de um surdo-gago>>, outro gesto significativo de Jesus em território pagão. Faz um percurso estranho, sai de Tiro, passa pela Sidônia, e a Decápole. O que importa não é a lógica geográfica, mas seu sentido: Jesus está girando por um território pagão, onde se verifica outro milagre e a segunda multiplicação dos pães.

O tema dominante é ainda o do chamamento dos pagãos à salvação. O surdo-gago, curado e reintegrado em suas faculdades – como a mãe pagã que conseguiu o milagre, com a sua firme fé – se torna representante destas primícias de salvação no mundo dos excluídos. O relato do milagre surpreende pelos gestos curiosos e estranhos de Jesus, que lembram as práticas terapêuticas populares do tempo, no ambiente judaico e no grego. Mas tais gestos, levando em conta o estilo e o comportamento de Jesus, não podem ser assimilados às práticas mágicas ou de sugestão psicoterapêutica. Os gestos simbólicos e a atitude de Jesus substituem, no caso presente, o diálogo com o doente, componente essencial dos milagres evangélicos, já que o diálogo visa a suscitar o relacionamento pessoal com Jesus e a adesão de fé. Para a comunidade de Marcos o milagre do surdo-gago é o cumprimento da promessa profética que se realizou primeiro no gesto de Jesus e agora plenamente na comunidade dos convertidos pagãos que escutam a palavra do evangelho e professam a sua fé.

5. Análise Literária


Mt 15, 21- 28 Cura da filha de uma mulher cananéia

21 Jesus, partindo dali, retirou-se para a região de Tiro e de Sidônia. 22 E eis que uma mulher Cananéia, daquela região, veio gritando: "Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim; a minha filha está horrivelmente endemoninhada". 23 Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: "Despede-a, porque vem gritando atrás de nós". 24 Jesus respondeu: "Eu não fui enviado se não às ovelhas perdidas da casa de Israel". 25 Mas ela, aproximando-se, prostou-se diante dele e pôs-se a rogar: "Senhor, socorre-me!" 26 Ele tornou a responder: "Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos". 27 Ela insistiu: "Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!" 28 Diante disso Jesus lhe disse: "Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!" E a partir daquele momento sua filha ficou curada.

A força da oração

Mc 7, 24- 30

24 Saindo dali, foi para o território de Tiro. Entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse, mas não conseguiu permanecer oculto. 25 Pois logo em seguida, uma mulher cuja filha tinha um espírito impuro ouviu falar dele, veio e atirou-se a seus pés. 26 A mulher era grega, siro-finícia de nascimento, e lhe rogava que expulsasse o demônio para fora de sua filha. 27 Ele dizia: "Deixa que primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos". 28 "É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos!" 29 E ele disse-lhe: "Pelo que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha". 30 Ela voltou para casa e encontrou a criança atirada sobre a coma. E o demônio tinha ido embora.


Os acontecimentos que Mc narra, relativos à missão de Jesus entre os pagãos e a incorporação à comunidade cristã, é a constatação de um contraste de uma fé viva que aparece no meio do povo pagão de surpreendente vigor, e não apenas o que pertencem propriamente ao tempo da vida histórica de Jesus. Representam o desenvolvimento na história da mensagem universalista de Jesus. A perícope põe em relevo toda a desumanidade que esta injustiça encerra.

Jesus entra em território pagão! Este é o motivo dominante da narração atual. Contra o costume judaico de não pisar em território pagão (impuro), Jesus leva à prática o universalismo da sua mensagem. É a explicação prática do princípio de liberdade que Mc já lembrou (7, 15) em relação aos tabus e divisões traçadas em nome do puro e o impuro. Se o coração é o espaço decisivo do autêntico relacionamento com Deus, também uma mulher pagã, considerada impura pela mentalidade judaica, pode participar nas primícias da salvação.

Jesus adverte que é preciso preparar o terreno para a difusão da mensagem, trabalhando em primeiro lugar pela humanização progressiva dessa sociedade. Esse seria o objetivo primário da missão. Enquanto a relação entre os homens não tiver o mínimo de humanidade e os indivíduos não alcançarem em alguma medida o nível de pessoas, não se pode propor a mensagem. A sociedade pagã, antes considerada do ponto de vista dos escravos em rebelião (5, 2-20: geraseno), está agora representada por uma mãe e sua filha. Esse binômio está em paralelo com o de Jairo e sua filha (cf. 5, 23 e 7, 25: <<filhinha; 5, 35 e 7, 25.29: sua / tua filha; 5, 39ss e7, 30: a menina)>>,que em forma figurada descrevia a situação extrema em que se encontrava o povo submetido à instituição religiosa judaica.

A mãe é <<grega>> quer dizer, pertence à classe privilegiada, à cidadania livre, embora ela mesma fosse de origem indígena <<(siro-finícia)>>; representa a classe dominante. A filha, figura da classe dominada, está infantilizada <<(25: filhinha; 30: menina)>> e tem um espírito imundo (cf. 5, 2), um demônio (26.29.30, cf. 5,15), ou seja, está alienada por um espírito de ódio que leva à autodestruição; não se resigna à sua condição, mas sua falta de desenvolvimento humano (infantilismo), efeito da opressão, a priva de toda iniciativa.

A mãe reconhece a superioridade e o poder de Jesus <<(se lançou a seus pés)>>, mostrando ao mesmo tempo a gravidade do seu problema. A situação de sua filha lhe é insustentável. Quer que Jesus a liberte do espírito imundo, da sua atitude de ódio, da qual ela, no entanto, não se sente responsável. Não analisa a causa que origina essa situação nem lhe vem à mente que causa esteja na própria estrutura da sociedade, isto é, na relação existente entre a classe dominante (mãe) e a classe dominada (filha). A saciedade pagã reconhecia plenos direitos a uma parte dos seus membros e os negava a todos os demais, em particular aos escravos. Mas a classe dominante simplesmente não se explica que os dominados não se contentem com sua situação.

A resposta de Jesus surpreende pelo seu tom desprezivo, mas replica à mulher desse modo para fazê-la compreender o que ela faz dentro da sua sociedade. Se os judeus, que se consideram privilegiados como povo, chamam de cachorros os pagãos, ela, a classe social privilegiada, trata como cachorros os oprimidos que dela dependem. Nessa sociedade, os membros da classe dominante têm direito a tudo e indefinidamente, os da classe dominada terão de esperar até que os outros queiram. É esse o obstáculo que impede a mudança de situação, e depende da classe dirigente que desapareça. Quer dizer, não se pode solucionar o problema da surda rebelião dos oprimidos sem mudar a relação entre as classes.

Ao ouvir a frase despreziva, a mulher não vai embora. Compreende a repreensão e responde reconhecendo para os desprezados ao menos um mínimo direito humano, o direito à sobrevivência, à vida. Não é preciso esperar, como dizia Jesus, que se saciem os filhos; os cachorros podem comer ao mesmo tempo, ainda que sejam as migalhas. Dá assim um primeiro passo para diminuir a distância social.

Jesus a despede (Vai): fez o mínimo indispensável, reconhecendo que deve compartilhar em certa medida com a classe dominada. Por esse mesmo fato fica libertada a <<menina>>, denominação que indica minoridade, mas não há dependência nem possessão ("minha filha"). Embora continue sendo menor, o termo <<menina>> designou os que comem à mesa e deixam cair as migalhas dos idólatras (28)[2]; desse modo o evangelista, ao designar a classe dominada com um termo que expressa a sua igualdade com a classe dirigente, propõe o ideal que se deve alcançar.

Não Jesus quem expulsa o demônio, este saio pela mudança de atitude da "mãe". Enquanto esta começa a tomar consciência da injustiça que pratica, começa a desaparecer o obstáculo; mas "a menina" ainda não tem vitalidade <<(deitada na cama, sem força)>>; só o encontro com Jesus poderia dar-lha (5, 41s).

Jesus não fala aos pagãos sobre a Lei judaica nem sobre normas a que teriam de ater-se. É a renuncia à injustiça da sua sociedade que abre a responsabilidade de aceder ao reino de Deus e de fazer parte da nova comunidade universal.

6. História das formas

Afirma que o evangelho é compilação de uma série de coleções anteriores, que recolhiam unidades formadas nas diversas comunidades. Entre essas fontes distinguem-se o relato da paixão e algumas coleções dos milagres, das parábolas, das controvérsias e dos ditos.

7. Critica textual

O Evangelho de Marcos foi escrito originalmente em grego koiné com influência semita, relativamente simples e popular, conforme as conclusões da crítica textual, seu texto primitivo chegou-nos de forma completa e substancialmente boa, atestado em papiros, manuscritos, traduções, lecionários e testemunhos dos escritores eclesiásticos que remontam até o início do século III. De flagrantes de afinidades com a linguagem falada da vida de cada dia. O evangelista só usa as construções mais simples, em um simples olhar de relance ao evangelho, mostrará que as frases são o mais das vezes ligadas pela conjunção "e", e que nas suas páginas os aramaísmos são freqüentes ao extremo. A simplicidade do grego pode induzir em erro: Marcos é um escritor muito mais hábil do que geralmente se tem achado. É um narrador consumado. Os traços nítidos, vivos que animam as narrativas são sua contribuição pessoal – não reflete a influência de uma testemunha ocular.

8. Crítica da narração ou Interna

O Evangelho de Marcos foi, durante muito tempo, considerado nada mais que uma versão abreviada de Mateus. Deram-lhe, por este motivo, menor importância, e só em tempos recentes obteve a atenção que lhe era devida. Hoje se reconhece claramente que Marcos não é, de forma alguma, resumo de Mateus; quando muito, pode o contrário ser verdade, em alguns poucos casos. Marcos se impõe por seus próprios méritos, e até – por ser o mais antigo de nossos evangelhos – reveste-se de especial importância: está mais próximo da fonte.

Logo de início notamos o fato de ser mais breve que os outros sinóticos. Quão poucos ditos de Jesus se encontram nele. Só há três discursos, todos eles muito breves: o discurso em parábolas (4, 1-34), o discurso da comunidade (9, 33-50) e o discurso escatológico (13, 1-37). Por outro lado, em narrativas comuns aos três sinóticos Mc é, via de regra, mais rico em por menores e mais pitoresco. Temos flagrante exemplo disto no relato da ressurreição da filha de Jairo; é por certo indiscutível que Mc não está abreviando aqui, como o mostra com evidência uma comparação dos textos dos três sinóticos (Mt 9, 18-26; Lc8, 40-56; Mc 5, 21-43).

Estas passagens não é caso isolado, porque há muitos outros exemplos, notadamente na primeira parte do evangelho: por exemplo, a cura do paralítico (Mc 2,1-12; Mt 9, 1-8; Lc 5, 17-26); a tempestade acalmada (4, 35-41; Mt 8, 23-27; 8, 22-25); a primeira multiplicação dos pães (Mc 6, 30-44; Mt 14, 13-21; Lc 9, 10-17). Mc não é resumo. Conquanto seja mais breve que Mateus e Lucas, isto é devido à própria escolha e método do evangelista. Por isto, hoje Marcos ocupa o lugar que de direito lhe cabia.

9. Critica Externa

Outros autores, sem negar em princípio a validez da crítica das fontes, centralizaram-se na crítica literária, estudando a obra de Mc como um todo literário homogêneo, que tem sentido próprio em si mesmo, à luz dos recursos da crítica literária. Para isso, estudam as características literárias do conjunto, como estilo, construções concêntricas, axiais, paralelos, etc., e as características dramáticas, como papel do narrador, a trama, os contextos e os caracteres (cf. D. Rhoads, D. Michie, aplicam a Mc os métodos críticos narrativas. Estudaram o evangelho à luz da tragédia clássica. G. Lüderitz estuda todas as técnicas e assim cada um estuda os pontos de vista diferentes.

Destes estudos, destacam-se os que aplicam ao texto de Mc, de maneira especial, as técnicas estruturalistas, como B. Standaert, J. Delorme, J. Radermakers e outros. Esses estudos são úteis, mas há perigo de cair no subjetivismo caso se prescinda totalmente dos métodos históroco-críticos, que permitem conhecer as raízes do escrito na história.

Esta análise do evangelho de Mc põe de novo em questão a notícia de Papias: Mc teria escrito a catequese de Pedro, tal como ele a dava conforme as circunstâncias, e, portanto, sem ordem. Não seria, portanto ele que teria composto um evangelho tão bem estruturado, sobretudo em sua primeira parte. Mas o problema é sem dúvida mais complexo. Constata-se com efeito em Mc duplicatas notadas há tempo. Ensinamento de Jesus em Cafarnaum (1, 21-22. 27) e "em sua pátria" (6, 1-2) contados em termos análogos. Dois relatos de multiplicação dos pães (6, 35-44; 8, 1-9) seguidos pela observação de que os discípulos não compreenderam seu sentido (6, 52; 8, 14-20). Dois anúncios da paixão seguidos pela ordem de se tornar o servo de todos (9, 31. 35; 10, 33-34. 43). Dois relatos da tempestade acalmada (4, 35-41; 6,45-52). Duas observações sobre a atitude de Jesus para com as crianças (9, 36; 10, 16). O Mc atual teria, portanto, ou misturado dois documentos diferentes, ou completado um documento primitivo por meio de tradições paralelas. O Mc de que fala Papias poderia ser então um dos dois documentos de base, consideravelmente remanejado no Mc atual.

10. Elementos teológicos

A partir da análise exegética desta perícope, é possível aduzir elementos para uma rica reflexão teológica. Dentre estes elementos pode citar: O chamado e a salvação oferecida aos gentios, a rejeição dos herdeiros naturais da promessa, os judeus; a cura pelo repreensão e anúncio da palavra e pelo dom da salvação; e princípio da fé.

O Evangelho de São Marcos foi, provavelmente, escrito para cristãos não-judeus. Nas comunidades ainda se encontra, uma acentuada preocupação com o cumprimento dos princípios de observância do significado religioso de um tabu alimentar pode receber (como no martírio de Eleazar 2Mc 6, 18. 31). A questão dos alimentos teve um papel importante na comunhão de mesa entre judeus e pagãos e o ensinamento evangélico propõe a ultrapassar os limites da letra da Lei.

A ótica da narração está exatamente no encontro e diáloga de Jesus com a mulher, que o evangelista tem urgência de apresentar: é uma grega, isto é, pagã de religião; e é siro-finícia de nacionalidade (7, 26). Nesta situação emerge logo o tom escandaloso e dura resposta de Jesus ao pedido da mulher. O pão dos filhos, isto é, reservado aos fiéis judeus, não pode ser atirado aos <<cachorrinhos>>, isto é, aos infiéis pagãos (7, 27b). Como o epíteto <<cão>> indicava-se, no ambiente judaico, o ímpio ou o pagão idólatra. A dureza da resposta de Jesus é em parte atenuada pela introdução: <<Deixa que primeiro se saciem os filhos>> e também pelo diminutivo de Mc: <<os cachorrinhos>>. À primeira vista, porém, a imagem usada por Jesus dá a impressão de racismo religioso. A continuação da narração oferece a chave para a reta compreensão desta sentença que Mc conservou no seu evangelho, embora escrevendo para os cristãos de origem pagã.

A mulher retoma a imagem de Jesus, desenvolvendo-a em seu favor: <<Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos debaixo da mesa comem as migalhas dos filhos>>, 7, 28. É a única vez que Mc relata o título de <<Senhor>>,em grego Kyrios, dirigido a Jesus num contexto narrativo. É a invocação com que a comunidade cristã se dirigirá a Jesus ressuscitado. Aquela mulher não é mais só uma mãe pagã que procura arrancar um milagre ao taumaturgo judeu que sai de seus confins, mas é a representante da comunidade dos pagãos vindos à fé. Por isto, a resposta última de Jesus é o dom da salvação, a cura da filha, como primícia da salvação por meio da fé: <<por esta tua palavra, vai... (7,29)>>.

Em poucas palavras, Jesus inaugura e antecipa com este gesto de salvação a missão aos pagãos: já agora, isto é, na vida e ação histórica de Jesus, também os pagãos são admitidos ao banquete salvífico, podem comer o pão dos filhos. O tema do <<pão>> ofereceu o motivo para inserir este episódio na grande seção do pão, 6, 30-8, 26. Para os leitores cristãos do evangelho de Mc, a sentença de Jesus acerca do <<pão dos filho>> lembrava a primeira multiplicação dos pães, onde foram <<saciados>> os membros do povo de Deus, os filhos. Na segunda multiplicação, que será contada no início do c. 8, 1-10, participarão os pagãos da Decápole. Assim o episódio da mulher pagã marca a transição entre estes dois banquetes messiânicos; os pagãos desde já tomam parte no banquete messiânico que na comunidade cristã é renovado na mesa eucarística. Mc pôs este episódio em relevo no seu evangelho, pois dava uma solução autorizada a um problema de grande interesse para a comunidade: a posição dos pagãos na história salvífica.

Mesmo se este problema particular, para além de sua importância histórica, parece irrelevante para a experiência atual dos crentes, nem por isso é desprovido de significado. O risco do racismo religioso é uma tentação permanente, porque é a justificação religiosa das divisões culturais e estratificações de poder. A solução oferecida pelo evangelho, embora respeitando a evolução histórica, que vai dos judeus aos pagãos, oferece a chave para a superação das castas e das elites, que tendem a se coagular em torno dos privilegiados religiosos. A fé sincera é o título fundamental e único para a pertença à comunidade salvívica. E a fé é a possibilidade oferecida a todo homem de viver em liberdade diante de Deus.

Conclusão

Portanto, mesmo com toda simplicidade, este Evangelho nos transmite um grande anseio de aprofundamento e uma curiosidade a respeito de nossa fé, garantida na revelação do Verbo Encarnado, que através do anúncio de Jesus aos pagãos nos ensina a humildade e acolhimento aos estrangeiros sem nenhum racismo. Pois, a proposta deste Evangelho, nos ajuda compreender o valor da humildade e simplicidade, no sentido teológico, que com nosso esforço podemos colaborar no plano salvífico de Jesus e de sua Palavra, que nos encaminhará ao conhecimento da mensagem, pessoa e da sua doutrina, formidável e confortadora capaz de transformar e reintegrar o gênero humano daquilo que não lhe é próprio (pecado) para sua justificação.

11. BIBLOGRAFIA

1.BÍBLIA DE JERUSALÉM, Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais. Tradução das introduções e notas de La Bible de Jerusalém, edição de 1998, publicada sob a direção da "Ecole biblique de Jerusalém".

2.DATTLE, FREDERICO, D259s Sinopse dos Quatros Evangelhos, Edição 7ª 2005. São Paulo, 1986.

3.HARRINGTON, WILFRID JONHN. Chave para a Bíblia: a revelação: a promessa: a realização; [tradução Josué Xavier, Alexandre Macintyre]. São Paulo: Paulus, 1985.

4.MATEOS, JUAN, S. J. Marcos: texto e comentário, [tradução José Raimundo Vidigal]. – São Paulo: Paulus, 1998. – (coleção comentários bíblicos).

5. RINALDO FABRIS, BRUNO MAGGIONI, Os Evangelhos I / tradução e comentário de GIUSEPE BARBAGLIO; tradução Jaldemir Vitorio, Giovanni di Biasio; Loyola, 1990.





Autor: Jair Correia da Silva


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