TRIBUTO A UM INESQUECÍVEL HOMEM



Não haveria nenhum sentido se os termos conceituais, e sobejamente conhecidos, expressados em quaisquer que sejam os meios, atribuídos a uma pessoa __ quer em sua particularidade, quer na universalidade humana __, não conduzissem, de pronto, o atento observador à reminiscência de quem os merece. O fecundo escritor, capixaba, de idade avançada e autor de quarenta livros, Humberto Del Maestro, em sua obra de teor filosófico, “Ditos, Adágios e Aforismos” (da qual guardo um exemplar, que me foi endereçado, com estimada dedicatória), em sua lucidez e patente inteligência, registrou que “Um homem iletrado, do interior do Nordeste (…), poderá, em sua simplicidade, estar evoluindo muito mais do que certos médicos, professores, artistas e catedráticos da nossa culta sociedade, pois a evolução nem sempre se processa através do saber, mas quase sempre pela honestidade, pureza de coração e, principalmente, pelo sofrimento e desprendimento de bens materiais”. Mais adiante, prossegue: “(…) o sábio é um sujeito simples, moderado, consciente de suas limitações, de conduta transparente (…). E tudo isso sem nenhuma relutância ou estardalhaço”. Isso posto, não poderia furtar-me à recordação de uma figura singular: a do homem simples e ordeiro, Raimundo Fernandes Frota, meu avô paterno, carinhosamente alcunhado de “Mundim”, cuja memória tornou-se-me vivificada. Oportuno é ressaltar que o elo familiar, aqui, se caracteriza pelo registro de sua memória, através das palavras, mas, à parte os sentimentos existentes, diz respeito, deveras, à gama de epítetos e feitos que lhe marcaram a personalidade. Pelo fato de que tais atributos o mantêm à altura dos adjetivos, a olhos vistos (sendo, desse modo, digno deles), haverá de concordar quem o conheceu. Omiti-los, portanto, seria olvidar o seu legado. Filho de Luiz Fernandes Batista e de Feliciana Fontinele Frota, Raimundo Fernandes Frota, oriundo de Santo Isídio, Comarca de Viçosa no Ceará, nascido a 21 de março de 1921, lançara-se, ainda moço, ao trabalho. A sua dedicação o forçou à procura de cidades com estruturas propícias a atingir a condição que desejava. Daí a sua passagem por glebas cearenses e a piauiense de Campo Maior e, por volta dos idos sessenta, Parnaíba, terra que adotou como segundo berço e onde viveria a maior parte de sua vida, até retornar ao acolhimento de Tianguá, completando e encerrando os seus oitenta e quatro anos e sessenta e sete dias de vitalidade, em 27 de maio de 2005. É coerente alvitrar. Arrimo de família, dispunha, apenas, de uma força interior, abraçada à sua esperança, desafiando a tudo quanto se lhe apresentasse como obstáculo, em todo o palmilhar de sua modesta vida, confrontando os limites humanos e superando os percalços introduzidos, desde a mocidade. Do rincão que lhe foi berço, trouxe consigo a magia da coragem, a saudade de suas raízes e a responsabilidade de auspiciar os vinte e um irmãos, suprindo-lhes a amarga ausência dos pais __ feito que só os homens de elevado espírito, e nutridos de uma inexprimível abdicação dos desejos genuínos da egocentricidade humana, poderiam alcançar. Fez de sua existência alicerce de outras. Em verdade, a sua grandeza poderia consistir em haver zelado, durante algum tempo, com empenho e solicitude, pelos numerosos irmãos. No entanto, a sua probidade, firmeza de vontade e a natureza paternal, especialmente, levaram-no a constituir uma prole. Conheceu, então, Maria do Livramento Cardoso de Souza, com quem viria, a 30 de outubro de 1959, em Tabainha, Município de Tianguá, contrair núpcias. E unidos ficariam, até os seus olhos se fecharem, em definitivo, para o mundo. Filha de João Cardoso de Souza e de Maurícia Tereza de Jesus, dona “Menta”, como gosta de ser chamada, nascida a 6 de abril de 1927, também cearense, ainda plena de forças, aos cuidados dos oitenta passos florescentes, com um carinho ímpar, acolhe, em seu fraternal seio, a memória do grande homem que foi o seu primeiro namorado e único marido, estendendo tal afago aos descendentes, e percebe, eivado de sinceridade, o amor dos seus familiares. Como diria o célebre escritor Balzac, “A ternura de uma mãe? É o amor sem desejo”. Constituem os rebentos do querido par: Francileuda Fernandes Nunes; Carlos Leônidas Fernandes Fontenele; Lúcia Fernandes Pinho; Carlos Fernandes Fontenele e Francisco das Chagas (…). Todos casados, com filhos e netos, salvo o último __ embora pai, não seja avô. Homem veraz, de forte pulso, e de uma honradez incrível, sempre primou pelo cumprimento da palavra, repudiando atos indecorosos, tão logo os observasse. Tive o privilégio de vê-lo saindo, antes de alvorecer, como era de seu hábito, levando uma garrafa com chá e um maço de cigarros __ seu único vício __, rumo ao cumprimento do ofício. Trabalhando com afinco, em seu estabelecimento, de dez a onze horas diárias, procurava qualificar a produção, destinando-a ao consumidor exigente, destacando-se pelas urbes onde fixou moradia. Vários objetos eram por ele produzidos, entre os quais calçados, cintos e chapéus. Na qualidade de profissional gabaritado, que era, figurou, em Parnaíba e em Tianguá, entre os melhores na arte artesanal, havendo comercializado incontáveis peças, de valor elevado, de sua ininterrupta produção, para consumidores de outros Estados, tal era a procura e a propalação dos seus bem-acabados serviços. Exímio em sua área, não guardo lembrança alguma que lhe transpassasse a guarda da modéstia, qualquer elogio que tenha recebido. Credor da admiração e estima dos que o conheciam, não tardava em avalizar solicitações de homens com o poder aquisitivo muito superior ao dele, tamanho o apreço de sua palavra. Quanto à verossimilhança nisso, eles que o digam. Todos os seus quefazeres estavam voltados para a pós-morte: a preocupação e todo o seu desvelo com a estrutura familiar, de todas as ordens, não lhe restando tempo para algum desenfado, eram provas disso. E quando a morte se lhe avizinhava, expondo os seus acenos, ele, reflexivo em uma cadeira, parecia sussurrar: __ Morrerei, mas tranqüilamente, ciente do meu dever cumprido, como homem. Erudito ancião, como se conhecesse a filosofia do alemão Arthur Shopenhauer, afirmando que “quando prevalece o conhecimento, o homem avança ao encontro da morte com o coração firme e tranqüilo, e daí honramos sua conduta como grandiosa e nobre”. A fonte do conhecimento de que seu “Mundim” se serviu, a seu modo, granjeando o saber, foi a mesma da qual se serviram, dentre outros filósofos, John Locke e David Hume. Isso mesmo, do Empirismo. Certa feita, demonstrando, por escrito, o seu objetivo de vida, pediu a um dos filhos que escrevesse, numa parede interna de sua residência: “O homem, ainda que pobre, tem o que deixar aos filhos __ o bom exemplo”. Embora não tenha sido o manejador do pincel, foi ele o autor da máxima, agregando, com isso, a sua teoria à prática em andamento. Estaria completa, por assim dizer, a sua existência. Por vezes, eu me perguntava que vigor humano seria capaz de prender um homem simples, e não escolado, a notáveis feitos, a uma desmedida retidão; qual força reflexiva havia em sua filosofia de vida pela qual vivia tão-somente para os que o redeavam, não desanimando quando os reveses da vida lhe desferiam os seus assombros. Seu “Mundim”, o cidadão querido e respeitável, o homem iletrado que recitava aforismos, de sua lavra; que professava para os que a ele recorriam; de conduta impecável, proferindo acerca do civismo e da moralidade, não sendo versado em magistratura; não tendo acesso à educação sistêmica, nem por isso hesitou em cuidar da educação escolar dos filhos, encaminhando-os ao Ensino Superior. E, sobretudo, não trilhou a senda dos escritores, filósofos, graduados ou algo que haja de correlato para tal. Todavia, legou uma obra de mérito: o bom exemplo humano, do qual seus filhos, netos, bisnetos e colaterais, podem e devem se servir e se orgulhar. Sem alguma sombra de dúvida, quem conviveu com ele poderá alçar a importância dos acontecimentos habituais e significativos, ocorridos em sua trajetória de muita luta e de êxito, porque, o que se verifica entre os seus descendentes, na presente época, ações muitas enraizaram-se em suas memórias. Porquanto a sua obra excede o tempo cronológico, fortalecendo-se no psíquico. São raras, pois, as famílias que advêm de estirpe humilde, tendo, à sua frente, o cuidado de um patriarca que se fundamentou no paradigma exemplar de procedimento moral, durante a experiência de viver. Ah, sertanejo admirável! A sua história desconhece as fronteiras espacial, temporal e psicológica, fixando a certeza de que valeu, e valerá a pena, todo o esforço dedicado, bem como a exatidão de que ela não findará por aqui. Pelo contrário: eis o seu princípio, e será, no silêncio deixado pelo seu infausto, que se erguerá a sua serena voz, embevecida na saudade indelével dos seus. Parnaíba (PI), 12 de fevereiro de 2007.
Autor: Escritor Renneé Cardoso Fontenele


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