ADÁGIO [Jacquerie Vogel, Direitos Reservados]



Antigas noites em que afastou a possibilidade. Mesmo antes do gesto. Sufocadamente alegre. Consumada no que pensava impossível, atravessou aqueles dias todos cega. Mas, nesta noite Beatriz dançava pela sala para amolecer as poesias que por todo o seu corpo-alma penetravam, transpassavam. Dançava frenética, às vezes músculos tensos, noutras absolutamente lançada ao acaso do movimento, ainda tentando controlar, girando célere, olhos atentos, o ar passando por seus cabelos recém raspados por uma navalha, castanhos, singularidade quase pega no toque, mas ainda existem resquícios de razão sem afeto, sem tragédia, a felicidade é seu pulso de imaginação, desejos para sempre incompletos.

Em cima da mesa os comprimidos deixados ainda dentro do pequeno saquinho de papel branco, estavam lá desde a última noite de outono, noite em que havia desligado o som e a televisão, deixado os livros, deixado a lua entrar em sua pequena sala. Nesta noite Beatriz resolvera ficar consigo mesma, verificar suas propriedades e enxergar suas interações, mas acima de tudo, Beatriz interagia com sua alma. Queria a vida como se quer, vagabunda, humana, a solução de Deus em si. Seus pensamentos vinham velozes, sem licença: Lentidão; tempo cão; tempo deus; algo deve ser referência suprema, mesmo que este algo seja a felicidade; padrões de consumo; entrega-se o corpo; e ininterruptamente reposta com mais consumo, mais consumo; homem produto, corpo vendido, acumulado, violentado, não pense, reze!...Não! Beatriz relaxa seu corpo, corpo irritável-verdadeiro, escorrega no sofá negro, nada além das luzes fracas da lua, misturada com as luzes da cidade e uma brisa suave e sem cheiro invadia a saleta.

Naquela noite sufocada. Dançava flutuante como um piano e sua introdução, entre seus solos cadentes e as improvisações dos demais desta orquestra infinita, seu corpo esbelto, suas costas nuas agora sentiam aquelas notas lentas, sentia o tempo tocando sua pele, sentia o pensamento igual ao corpo, mas ainda negando a vida continuava a dançar, pensamentos ainda tumultuosos, agitados, turbulentos: Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. Ainda recusa o presente por um futuro promissor, dança, mas ainda nega o corpo, as sensações, o agora, as transformações, os conflitos. Busca compreender sua imaginação, o encaixe e dança. Sala minúscula.

Beatriz não quer alcançar os céus, quer alcançar si mesma, ser humana acima de tudo, e continua. Volta ao início de sua dança em grandioso conjunto, e neste momento está arrebatada por uma felicidade sem explicações, solo, mas acompanhada, única, está tensa, se descobre frágil e por isto sensível, capaz de se inventar no presente, a cada segundo, com as dores e prazeres desta vida, sem invenções que escondam a realidade. Beatriz não luta mais com o tempo. E agora com as mãos vazias, corpo nu, finalmente começa a voar. Agora Beatriz ri. Ri muito. Uma risada jamais ouvida. Dançando em sua sala singular e invadida por cheiros de alecrim e canela. Como um adágio ao luar, aprova a existência e a realidade, aprova a alegria de viver. Foi no fim daquela noite, no início da primavera.wwwopassaro.com


Autor: jacquerie vogel


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