Princípio da Presunção de Inocência



1.1Origem e análise histórica

O princípio da presunção de inocência possui reflexos no direito romano, mas durante a Baixa Idade Média perdeu o seu destaque com a existência do procedimento inquisitório[1].

Durante o período medieval, era dever da pessoa acusada provar a sua inocência. Considerava-se o acusado culpado com base na opinião pública. Com isso, surgia a possibilidade de impor medidas de restrição à liberdade pessoal do acusado durante o processo, inclusive recorrer ao uso da tortura.[2]

A revolução liberal do século XVIII fez ressurgir tal princípio, que trouxe o debate dos limites do poder de punir do Estado em face da liberdade individual e da necessidade de garantir a segurança.

Após a Revolução Francesa, este postulado, que se enraizou no contexto do Princípio do Devido Processo Legal, sendo-lhe decorrente de forma direta e espalhou-se pelo mundo.

Embora sua consagração se tenha dado na França, é na Itália que encontramos um amplo debate sobre a presunção de inocência , atrelado às concepções de processo de cada escola.

A escola clássica, encarando o processo com um duplo objetivo, castigar os delinquentes e evitar a condenação dos inocentes, este último objetivo prevalecendo sobre o primeiro, via na presunção de inocência uma absoluta condição de legitimidade de procedimento penal, com o propósito de restringir a ação do acusador e do juiz, a fim de evitar o arbítrio e o erro.[3]

Críticas a essa concepção partiram da Escola Positivista, negando-a para aqueles apanhados em em situação de flagrante delito e para quem condessasse espontaneamente.

A Declaração dos Direitos dos Homem e do Cidadão de 1791,proclamava em seu art. 9º que:

" Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei". [4]

Tal princípio repercutiu, mais recentemente, na Declaração dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, que consagrou em seu art. 11:

"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa".

Observe-se que, historicamente, o princípio é contemplado ora em termos de presunção, enquanto outras se prefere a referencia à posição do acusado durante o processo (estado de inocência ou de não culpabilidade). Neste diapasão nos explicaChivario[5],que:

"embora não se trate, de perspectivas contrastantes, mas convergentes, é forçoso reconhecer que no primeiro caso se dá maior ênfase aos aspectos concernentes à disciplina probatória, enquanto que no segundo se privilegia a temática do tratamento do acusado, impedindo-se a adoção de quaisquer medidas que impliquem sua equiparação com culpado."

O princípio em estudo só foi introduzido de forma expressa em nosso Ordenamento Jurídico, com o advento da Constituição Federal de 1988. Todavia, o mesmo já vinha sendo aplicado, ainda que de maneira acanhada, em decorrência dos princípios do contraditório e da ampla defesa .

No início da vigência da atual Constituição Federal, houve quem sustentasse que o legislador constituinte ao anunciar uma "não-culpabilidade", cuja dimensão seria mais limitada, não adotou o princípio da presunção de inocência, ao menos em sua concepção original, mas sim, o princípio da não-culpabilidade, que teria menor abrangência.

De acordo com Antônio Magalhães Gomes Filho[6], essa interpretaçãoperdeu o sentido desde que o Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo n.º 27, de 26 de maio de 1992, aprovou o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o Governo Brasileiro em 25 de setembro de 1992, depositou a Carta de Adesão a esta Convenção, determinando-se seu integral cumprimento pelo Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1992, publicado no D.O.U. de 09.11.92, pág. 15.562 e ss.

O princípio da presunção de inocência passou a ser assegurado em nosso Ordenamento Jurídico, por duas normas: o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" e o art. 8, I, do Pacto de São José da Costa Rica, que tem valor de preceito constitucional.

1.2 Interpretação do princípio da presunção de inocência

No Estado Constitucional e Democrático de Direito, até mesmo a produção do Direito tem que observar as regras constitucionais, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista material, possuindo assim, um núcleo de valores , regras e princípios fundados nos direitos fundamentais.

O sistema de garantias emanado de tal modelo de Estado, como afirma Ferrajoli, citado por Luiz Flávio Gomes, possui duas características: no caráter positivo das normas, já não é a moral a fonte dos direitos e o fato de que o Estado Democrático tem o seu ordenamento jurídico sujeito às regras formais e substânciais[7].

Decorre disso o estabelecimento de limites constitucionais e a partir desse momento, a validade de uma lei vigente dependerá de sua coerência com a constituição.

Com o Estado Democrático de Direito e esta imposição de uma interpretação constitucionalizada, não mais nos é suficiente a proclamação, o anúncio, a afirmação ou enunciação de direitos fundamentais. Exige-se, hodiernamente, a efetivação , a implementação, fazê-los vivos e pulsantes para as pessoas e grupos, enfim, que sejam verdadeiramente agregados à vida dos cidadãos.

O sentido de efetividade que se pretende alcançar é o da eficácia social, a fim de que o círculo da efetividade, da realização do direito, do desempenho concreto de sua função social se complete e para que haja a aproximação possível entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. Tais direitos só passam a ser realidade jurídica quando existe uma múltipla articulação, unindo-se numa rede de poderes públicos que se controlam reciprocamente.

Daniel Marques ao citar a crítica de José Augusto Linggren tem bastante pertinência:

"Filhos legítimos da modernidade e herdeiros presuntivos da Ilustração, os direitos humanos vivem em situação contraditória nesta fase de pós-modernidade. Aquiriram inusitada força discursiva, mas são ameaçados de todos os lados. Afirmaram-se como baliza da legitimidade institucional, mas sofrem rudes golpes da globalização econômica. Fortaleceram-se na ciência política e são quase que descaracterizados pela filosofia epistemológica".[8]

Desta forma, o intérprete e protagonista jurídico precisa extrair o máximo de efetividade dos comandos relacionados aos direitos fundamentais, devendo o princípio da dignidade da pessoas humana funcionar como diretriz e limite à atuação do Estado, além de último reduto da hermenêutica. Assim, os direitos fundamentais deixarão gradativamente de ser meras aspirações da alma humana e dos juristas comprometidos com a justiça social, passando a fazer parte do mundo concreto das realizações.

Para delimitar a importância do direito fundamental da dignidade da pessoa humana, Daniel Marquesao citar João Pedro Gebran Neto mostra que :

"...a violação desse princípio ocorre sempre que a pessoa humana for rebaixada a objeto, a mero instrumento, coisificada; sempre que restar descaracterizada como sujeito de direitos. Por isso que o princípio engloba, por exemplo, em sua dimensão individual a igualdade de tratamento, a proteção à integridade física , a liberdade de pensamenteo e expressão, a autodeterminação. Na dimensão social, envolve a garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, abrangendo alguns direitos sociais e direitos à prestações materiais por parte do Estado.

Trata-se de direito individual indisponível,intimamente ligado a autonomia e autodeterminação de cada pessoa, mas também relacionado à igualdade entre os homens e à garantia de um mínimo vital. Trata-se de limite e tarefa de persecução estatal porque, ao mesmo tempo em que estabelece a defesa dos direitos individuais, especialmente da liberdade física e intelectual, a dignidade da pessoa humana, também funciona como dever do Estado guiar-se visando garantir a cada um o pleno exercício da dignidade e o mínimo para viver.

Embora a dignidade da pessoa humana constitua reduto intangível e inalienável de cada indivíduo, poderá sofrer restrições ante a colisão de direitos, mas sempre respeitando o princípio da proporcionalidade (...)

Nessa perspectiva é que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser lido como o núcleo essencial da hermenêutica. Ao tempo das primeiras constituições, que procuravam limitar o poder absoluto dos soberanos, os direitos fundamentais eram concessões aleatórias do Estado de direitos e garantias individuais. Agora, com a primazia dos direitos humanos, essa perspectiva se inverte , sendo o Estado transformado em instrumento desses direitos vitais mínimos. Aqui reside a exegese emancipatória, por que o intérprete deve tomar a dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da constituição, funcionalizando-se o Estado ao cumprimento desta tarefa". [9]

A partir do momento que o ser humano é respeitado, os seus direitos e garantias verdadeiramente implementados, é que se passa a ter sentido e importância a dignidade das pessoas.

Interpretar o processo penal à luz da Constituição não significa, como pensa a maioria, pautar-se a exegese estritamente em isolados dispositivos selecionados, mas sim interpretá-lo sistematicamente, como um todo, tendo como sustento básico os princípios constitucionais, conforme nos direciona a melhor hermenêutica.

Assim, no âmbito penal, um verdadeiro processo constitucional deve não só priorizar o respeito às garantias processuais do réu, oportunizando-lhe efetivos meios de defesa, como também cotejá-las com os valores materializados pela sociedade, também de cunho normativo constitucional, tais como a dignidade da pessoa humana, a segurança pública e a paz social.

É neste contexto de pós-positivismo e constitucionalismo moderno que se dá ênfase à dialética entre a possibilidade de se decretar prisão provisória, que visa, na maioria das vezes, a preservação da paz social e da ordem pública, e o princípio do estado de inocência, ambos consagrados normativamente por nossa Constituição Política de 1.988.

Entra-se, em cena, pois, a técnica da ponderação de valores, regra-mestra da moderna hermenêutica constitucional, que permite ao julgador, diante uma dialética entre direitos/princípios de mesma hierarquia, sopesar os valores intrínsecos nas normas litigiosas, solucionando o conflito.

No que toca ao princípio da presunção de inocência devemos utilizar tal técnica para ponderar valores como a possibilidade de manutenção da paz social e da ordem publica,a garantia de celeridade processual, um devido processo legal,a necessidade de garantir a segurança jurídica e a possibilidade de recorrer em liberdade apoiado no princípio da presunção de inocência. Para estabelecer tal parâmetro devemos ponderar a respeito da interpretação a ser dada ao princípio da presunção de inocência e suas consequências jurídicas, será tal princípio absoluto ou relativo?

De acordo com o voto do Ministro Celso de Melo no HC 89754,percebemos que a posição adotada pelo STF é de que o princípio da presunção de inocência adquire uma interpretação relativa ao entrar em conflito com a possibilidade de recorrer em liberdade. O próprio ministro enfatiza que, a Convenção Americana de Direitos Humanos não assegura de modo irrestrito ao condenado o direito de sempre recorrer em liberdade, pois o Pacto São José da Costa Rica, em termos de proteção ao "status libertais" do réu, estabelece que ninguém será preivado de suas liberdades físicas, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas, admitindo a possibilidade de cada sistema jurídico os casos em legitimará a privação da liberdade. Apesar de dar uma interpretação relativa, o próprio STF em alguns casos garantiu o direito de recorrer em liberdade , mesmo diante de recurso sem efeito suspensivo, como o que ocorreu no HC 85710, HC 88276, HC 88460.

Manter a interpretação desse princípio de forma relativa implica redobrar o cuidado ao aplicar sanções como as prisões cautelares, pois deverão ser aplicadas apenas em casos excepcionais que justifiquem tal medida, caso contrário haverá uma corrupção com o sistema de garantias constitucionais do Estado de Direito. Caso contrário deixaríamos de aplicar essas prisões como exceção e tornariam se a regra.

De outro lado, estabelecer tal princípio de maneira absoluta implica em querer tornar o sistema processual penal muito mais célere, pois impediria qualquer tipo de prisão antes do trânsito em julgado da sentença, mas dessa maneira teríamos um conflito com a manutenção da paz e da ordem social . Não podemos esquecer de que adotar tal princípio de maneira absoluta implica de maneira sútil numa redução da preocupação com as condições de superlotação dos presídios brasileiros.

Portanto, acredito que devemos optar por um processo penal centrado no respeito à liberdade individual e à dignidade do ser humano, mantendo a interpretação de tal princípio de maneira relativa, onde de certa maneira (na medida em que tais conceitos como garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal são extremamente vagos), conseguiremos manter uma razoável possibilidade de segurança jurídica, pois para haver o cerceamento da liberdade do réu haverá necessariamente de existir uma fundamentação certa e razoável, para a aplicação de uma medida excepcional.

1.3 Aspectos Práticos: desdobramentos do princípio da presunção de inocência

O princípio constitucional da presunção de inocência é entendido hodiernamentesegundo a concepção de que

"existe apenas uma tendência à presunção de inocência, ou, mais precisamente, um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. Por isso, a nossa Constituição Federal não 'presume' a inocência, mas declara que 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII), ou seja, que o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e seu estado só se modifica por uma sentença final que o declare culpado. "[10]

Esse princípio repercutiu em nosso ordenamento jurídico infraconstitucional, desdobrando-se no processual penal, em quatro aspectos práticos:no que tange à regra probatória, invertendo-se o seu ônus, como presunção legal relativa de não-culpabilidade; no momento da valoração da prova, confundido-se neste aspecto, com o princípio do in dubio pro reo;como paradigma de tratamento do acusado durante todo o transcorrer do processo penal e no atinente à imposição de qualquer espécie de prisão cautelar ao acusado.

Quanto ao ônus da prova, oacusado não tem o dever de provar a sua inocência, cabe ao acusador comprovar a sua culpa, sendo considerado inocente, até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. Esta sentença deve decorrer de um processo judicial, dentro dos moldes legais, o qual deve ser instruído pelo contraditório, pela proibição de provas ilícitas e esteja arrimado em elementos sérios de convicção. Só depois desta, o suspeito será considerado culpado[11]. Entretanto, onerar a acusação com a tarefa de provar, de forma segura, os requisitos para a responsabilização penal do acusado não significa autorizar a defesa a se valer dos mais variados sortilégios para dificultar a atuação da parte contrária, sem sofrer qualquer tipo de consequência processual em razão de sua escolha.

Isso porque a atribuição do ônus da prova precisa ser equacionada como princípio do contraditório, cuja afirmação plena depende de um sistema processual que consagre a liberdade probatória mais ampla possível em favor de ambas as partes.

Limitar-se a enunciar a necessidade de participação em contraditório, sem construir um sistema que assegure de forma efetiva, é no dizer de Cândido Dinamarco

"permanecer no limiar do sistema processual, sem penetrar na sua dogmática e nas técnicas do que ela se vale. Só se estará falando em termos estritamente jurídicos quando se definir, em termos de situações jurídicas, o fenômeno da participação contraditória. Pois a efetivação da exigência política do contraditório, no procedimento, dá-se pela outorga de situações jurídicas aos litigantes: situações jurídicas ativas, que lhes permitem atos de combate na defesa de seus interesses, e situações jurídicas passivas, que lhes exigem a realização de atos alheios. São em suma, o substrato jurídico das regras do combate civilizado através do procedimento." [12]

Outra decorrência da inversão do ônus probatório, é a delimitação de prazos razoáveis, para a realização de atos processuais, importando na garantia de que o réu não será infinitamente investigado pelo Poder Público, e se estiver preso, deverá ser imediatamente libertado, caso os prazos não sejam respeitados, pela acusação ou pelo Juiz.

Do mesmo modo, em face da exigência da comprovação legal da culpa do acusado, temos a impossibilidade de serem formuladas provas de culpabilidade conseguidas por meios criminosos, ou que tenham sido forjadas, com o objetivo de incriminar o suspeito.09

Quanto a valoração das provas a presunção de inocência relaciona-se com o princípio do "in dubio pro reo" resultando que após o devido processo legal, se a prova colhida na instrução criminal for insuficiente para a formação plena da culpabilidade do acusado,este será declarado inocente, através de uma sentença absolutória, não bastando o arquivamento do feito, visto que é direito fundamental do indivíduo, o estado de inocência, ou seja, o Estado tem o dever de fazer cessar qualquer dúvida, que paire sobre o indivíduo, em relação ao fato investigado.

Desta forma, este princípio deve nortear, também, o tratamento dispensado ao acusado durante as investigações e o processo, até o trânsito em julgado, pois enquanto não condenado definitivamente, presume-se inocente o réu, não podendo ver-se diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo. Esta dimensão atua sobre a exposição pública do imputado, sobre a sua liberdade individual, funcionandoprecisamente comolimite às restrições de liberdade do acusado antes do trânsito em julgado, evitando a antecipação da pena.[13]

1.4 Estado de Inocência e Antecedentes Criminais

No que diz respeito a extensão do princípio da presunção de inocência, é de grande importância a questão da possibilidade de instauração de inquérito policial configurar maus antecedentes.

Para alguns autores não é cabível sequer valorar qualquer tipo de antecedente criminal, entre eles Amilton Bueno de Carvalho nos ensina que

"É inegável que a valoração da história de vida do acusado, da forma com que se estabeleceu no ordenamento jurídico pátrio, cria um mecanismo incontrolável do arbítrio judicial, pois tende a (pré)determinar juízos de condenação"

E o que realmente se vê é que, geralmente, chegado o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu e muitas vezes a tendência de condenar está fortemente influenciada pela extensão da folha de antecedentes do réu.

Partindo da lógica do direito penal do fato e não do direito penal do autor e considerando que o juiz julga o fato e não as pessoas, pouco importam seus antecedentes, de maneiraque ampliar a pena em função deles é não punir o fato imputado ao réu, mas sim outras condutas diversas e pretéritas.

Quanto a possibilidade de se utilizar ou não o fato de o réu responder a inquérito ou ação penalcomo maus antecedentes, existem três correntes na doutrina e na jurisprudência:

A primeira corrente afirma ser a presunção de inocência óbice intrasponível para a valoração da existência de inquéritos policiais ou de processos em andamento como maus antecedentes. Essa corrente também é adotada pelo STJ, como podemos ver no Resp 1002872 de relatoria do Min. Felix Fisher "Penal-Recurso Especial – Estelionato – Dosimetria da Pena – Fixação da pena-base – maus antecedentes – processo em andamento – Não configuração. Em respeito ao princípio da presunção de inocência, inquéritos e processos em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para exacerbação da pena-base. Precedentes do Pretório Excelso e do STJ. Recurso Especial provido"

De acordo com o informativo 405 do STF podemos notar que o STF adota esta corrente ao ler o voto do Ministro Celso de Mello: "O princípio costitucional da não-culpabilidade, inscrito no art. 5º, LVII, da Carta Política, não permite que se formule, contra o réu, juízo negativo de maus antecedentes, fundado na mera instauração de inquéritos policiais em andamento, ou na existência de processos penais em curso, ou , até mesmo, na ocorrência de condenações criminais ainda sujeitas a recurso, revelando-se arbitrária a exacerbação da pena, quando apoiada em situações processuais indefinidas, pois somente títulos penais condenatórios, revestidos da autoridade da coisa julgada, podem legitimar tratamento jurídico desfavorável ao sentenciado. Doutrina.Precedentes"(RTJ 187/646, rel. p/ o acórdão Min Celso de Mello). "Impossibilidade de considerar –se maus antecedentes a existência de processos criminais pendentes de julgamento, com o consequênte aumento da pena-base. Recurso parcialmente provido para, mantida a condenação, determinar que nova decisão seja proferida, com a observânciados parâmetros legais"(RHC 83.493/PR, rel p/ acórsão Min. Carlos Britto).

Deste modo, percebe-se que a simples existência de situações processuais ainda não definidas revela-se insuficiente para agravar a situação jurídico-penal do réu ou para legitimar a recusa jurisdicional de determinados benefícios legais, que só podem ser negados àqueles que já sofreram condenação penal irrecorrível. O código penal ao definir as circunstâncias judiciais que deverão orientar o magistrado na fixação da pena-base ( CP,art. 59), determina que se considerem os antecedentes do réu. O ato judicial de fixação da pena não pode emprestar relevo jurídico-legal a circunstâncias que meramente evidenciam haver sido o réu, submetido a procedimento penal, sem que desse haja resultado , com trânsito em julgado definitivo, qualquer condenação de índole penal. A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais, ou ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado , em caráter definitivo, qualquer título penal condenatório, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para justificar ou legitimar a especial exacerbaçãoda pena. Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave e inaceitável lesão ao princípio constitucional que consagra a presunção juris tantum de não-culpabilidade dos réus ou dos indiciados em geral.

A segunda corrente defende a possibilidade de adoção do inquérito policial como maus antecedentes. Capez, como um de seus representantes sustenta que:

"Entendemos que anteriores envolvimentos em inquéritos policiais e processo-crime, mesmo que não tenha havido condenação, caracterizam maus antecedentes. Absolvição por insuficiência de provas também indica maus antecedentes ( art 386,VI, CPP)"[14].

A terceira corrente, de posição intermediária, defendendo que à luz do caso concreto, é possível aceitar como maus antecedentes a existência de vários inquéritos ou processos. Essa corrente fundamenta-se na impossibilidade de não haver informações suficientes ao esclarecimento dos fatos que teriam ensejado esses feitos, não sendo possível saber nem os crimes pelos quais o condenado estaria respondendo.

1.5Princípio da presunção de inocência e a aplicação de medidas de coação

Antônio Gomes Magalhães já dizia que a prisão anterior à condenação definitiva constitui a maior contradição do processo penal, pois, se este existe justamente para apurar a culpabilidade do acusado e impor a sanção punitiva correspondente ao crime praticado, não se pode explicar, com argumentos racionais, a sobrevivência de qualquer forma de restrição de um bem fundamental, como é a liberdade, antes de estar judicialmente reconhecido o direito de punir do Estado.

Ao contrário da prisão dita definitiva, que decorre de sentença condenatória irrecorrível, existe no nosso ordenamento jurídico, a prisão provisória, que é uma providência adotada no curso do processo, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, tal prisão não seria nada mais do que uma execução antecipada da pena privativa de liberdade, e, isto, violaria o princípio da presunção de inocência.

A prisão provisória é uma medida cautelar pessoal detentiva, de caráter excepcional, que só se justifica como um meio indispensável para assegurar a eficácia de um futuro provimento jurisdicional, presentes que estejam o fumus boni iuris e o periculum in mora.

Não estando presentes os requisitos gerais da tutela cautelar, e, não servindo apenas como instrumento do processo, a prisão provisória não seria nada mais do que uma execução antecipada da pena privativa de liberdade, e, isto, violaria o princípio da presunção de inocência.

No ordenamento pátrio, em decorrência dos princípios constitucionais, o juiz não pode fundamentar a prisão apenas na sua convicção, deve decretá-la com base no poder geral de cautela, justificando a necessidade da prisão vinculada a um dos motivos que a lei processual respalda. É preciso que a fundamentação seja séria, fundada e bem justificada.

Pode-se afirmar, que a consagração do princípio da inocência não afasta a constitucionalidade das espécies de prisões provisórias, que continuam sendo, pacificamente, reconhecida pela jurisprudência, por considerar a legitimidade jurídico-penal da prisão cautelar, que, inobstante a presunção relativa de não-culpabilidade dos acusados, pode validamente incidir sobre sua liberdade.

Entretanto, em reiterados julgados o STF tem enfatizado que a prisão cautelar, por afetar a liberdade do acusado antes de uma decisão final prolatada no processo, em que poderá ser declarada a sua inocência, constitui recurso acentuadamente violento e de extremo rigor, somente justificável quando indeclinavelmente necessário, tachando-a, não sem motivo, de medida odiosa.

Por isso, a imposição de extrema violência, que em última análise se converte numa prisão sem pena, vem exigindo, na moderna doutrina e jurisprudência, que se arrime na mais absoluta conveniência ou na maior necessidade.

Desta forma, a prisão cautelar não atrita de forma irremediável com a presunção de inocência, existindo, em verdade, uma convivência harmonizável entre ambas, desde que a medida de cautela preserve o seu caráter de excepcionalidade e não perca a sua qualidade instrumental. Permanecem válidas, pois, as prisões temporárias, preventivas, em flagrante, decorrente de sentença penal condenatória sem trânsito em julgado e decorrente de pronúncia.




[1] FERRAJOLI, 2002, p. 441

[2] GOMES FILHO, 1991, p.10

[3] VILELA, Alexandra. Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal. Coimbra: Editora, 2000, pp 33-34.

[4] " Tout homme étant présumé innocent jusqu'a ce qu'il ait été déclaré coupable; s'il est jugé indispensable de l'arrêter, toute rigueur Qui ne serait nécessaire pour s'assurer de as personne, doit être sévèrement reprimée par la loi".

[5] CHIVARIO, Mario. Processo e Garanzie Della Persona. Milano, Giuffrè, 1982, Vol. II, pág.12

[6] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. O Princípio da Presunção de Inocência na Constituição De 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Revista do Advogado. AASP. N.º 42, abril de 1994, p. 30.

[7] GOMES, Luiz Flávio. Legislação Penal Emergencial e seus limites constitucionais

[8] CAMARGO, Daniel Marques. Jurisdição crítica e direitos fundamentais. Ed. Núria Fabris. Porto Alegre, p.25

[9] CAMARGO, Daniel Marques. Jurisdição crítica e direitos fundamentais. Ed. Núria Fabris. Porto Alegre, p.33

[10] MIRABETTI, Julio Fabrini. Processo Penal, Atlas, 1991, pág. 252

[11] Antônio Magalhães Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal", p. 113, item n. 7, 1997, RT

[12]DINAMARCO, Cândido, 2005,p.163

[13] NICOLITT, André. As subversões da Presunção de Inocência: Violência, Cidade e Processo Penal. Coleção Pensamento Crítico. Lumen Juris , RJ,2006.

[14] CAPEZ, Fernando , Curso de direito penal – Parte Geral , p. 404.


Autor: Aline Borges Nascimento


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