Propriedade e Contrato em John Locke



PROPRIEDADE E CONTRATO EM JOHN LOCKE

 

Por José Reinaldo Felipe Martins Filho

 

 

 

Ao longo da história da filosofia surgem vários teóricos que abordam a problemática da origem da sociedade humana e do estado civil conferindo-lhes um caráter, cada vez mais pertinente àquilo que se é experimentado em sua própria época. Neste caminho, destaca-se o pensador John Locke, filósofo inglês do século XVII e colaborador no processo de edificação do contratualismo. Locke, em sua obra “Segundo tratado sobre o Governo”, apresenta a humanidade sob um ponto de vista natural, comprovando a autenticidade da propriedade privada inerente na natureza do homem. Ao mesmo tempo, apresenta a passagem do estado natural para o estado civil. Nesta mudança surge uma contradição extremamente importante para a compreensão de sua obra. Como pode, o homem, deixar sua condição natural de liberdade e igualdade de direitos para aderir a uma sociedade onde abdicaria seus direitos instituídos pela natureza? Na tentativa de responder a esta pergunta faz-se necessário compreender como Locke justifica a propriedade privada e, não obstante, como os homens podem escolher tal mudança de vida. Para isso, é preciso analisar os conceitos e argumentos elaborados por Locke e retirar alguns trechos que possam colaborar para a compreensão de tamanha dicotomia.

De fato, para Locke, a razão e o mundo foram dados por Deus ao homem para que dele pudesse tirar tudo o que fosse necessário para sua vida. Entretanto, Locke defende a propriedade privada alegando que a mesma sempre existiu. Em primeiro lugar, cada individuo possui a propriedade de seu próprio corpo, e isso não pode ser negado. Já a terra e todas as suas criaturas são propriedades comuns de todos. Por conseguinte, uma vez que algum objeto esteja disposto na natureza para uso de todos e alguém, por necessidade própria, empregue sobre o mesmo seu esforço pessoal, para que este o satisfaça, a força de trabalho depositada sobre o objeto torna-o propriedade daquele que a empregou. Assim, para Locke, a justificativa para a propriedade privada é o trabalho de cada um para conseguir algo. Isso se evidencia, de modo especial, nos parágrafos 27 e 28 da obra “Segundo Tratado sobre o Governo”. O trabalho se torna a linha divisória entre o comum e o privado. Uma coisa comum se torna privada na medida em que alguém lhe concentra seu trabalho. O meu trabalho fixado sobre algo que esteja em estado comum o deixa sujeito à minha propriedade.

Mesmo sendo dotada de racionalidade, a humanidade reconhece, ainda hoje, que uma coisa que esteja disposta em um ambiente comum a todos, uma vez que alguém lhe impõe seu trabalho, se torna proprietário dela. Como exemplo Locke usa o caso do pescador que pesca no oceano, lugar comum da humanidade. Todavia, os peixes pescados lhe são propriedade por direito, afinal, foi ele quem os pescou, quem se esforçou para consegui-los. Disto ninguém pode discordar. Este argumento, ainda usado atualmente, é a base para a explicação que Locke dá a respeito de como a  propriedade privada era aceita no estado de natureza, sendo o homem dotado de razão. Isso se percebe no parágrafo 32 de sua obra, onde afirma: “Tanto Deus como a própria razão lhes ordenavam dominar a terra, isto é, melhorá-la para benefício da vida e fecundá-la com algo que lhes pertencesse, o próprio trabalho. Aquele que obedecendo esta injunção divina, dominou, lavrou e semeou parte da terra, agregou-lhe com isso algo que era seu, a que ninguém mais tinha direito, nem podia, sem causar dano, tirar dele.” (Locke, 1995, parág. 32) Desta forma, mesmo enquanto vive em estado natural, contando com a capacidade da razão, o homem é capaz de reconhecer a legitimidade da propriedade privada provinda do trabalho.

Contudo, não se pode dizer que no estado de natureza haja uma divisão eqüitativa do mundo. Divisão eqüitativa significa distribuir igualmente entre todos. Isso se dá pelo fato de que no estado natural uma pessoa somente pode ser proprietário daquilo que consegue obter pelo trabalho. O direito de posse perdura enquanto o indivíduo consegue desenvolver seu trabalho. A partir do momento em que o mesmo não consegue trabalhar em sua propriedade, ela deixa de ser seu direito e volta à condição comum. Caso exista alguém com maiores capacidades físicas e, por decorrência, consiga trabalhar uma maior porção de terras que outro, com menores condições de trabalho, isso não seria injusto, segundo Locke, em um estado natural, garantir, àquele que consegue trabalhar mais, uma maior quantidade de posse na distribuição da propriedade. Deste modo, sempre haveria relativa desigualdade entre os proprietários. Por conseguinte, conclui-se que no estado de natureza não se pode afirmar que exista divisão eqüitativa. Daí a importância de destacar a sociedade organizada como uma forma de equilibrar esta divisão. 

Além disso, mesmo estando o homem ciente de que não poderia possuir além daquilo que fosse necessário para sua subsistência, ele ainda encontra uma maneira de transformar aquilo que excedia seu limite em forma de enriquecimento próprio. Graças ao dinheiro a antiga regra de propriedade natural, onde cada qual possuía somente o que precisasse, foi substituída por uma nova forma de concepção. Nesta, o homem pode transformar seu excesso em algo que não se estraga nem se esvai (como o ouro, a prata etc.), podendo acumular aquilo além do necessário. O dinheiro, a partir de um consentimento mútuo, permite ao indivíduo trocá-lo por vários outros produtos. Vale dizer que mesmo assim, é o trabalho que confere à terra a maior parte de seu valor. É a ele que se deve a maior parte de seus produtos úteis.

Por decorrência, o homem percebendo-se em uma sociedade natural onde a constância de segurança não lhe seria garantida, renuncia sua liberdade do estado de natureza em função de proteger sua propriedade (vida, bens, saúde, trabalho etc.). Como afirma Locke, o maior objetivo que leva os homens a formarem uma sociedade e se submeterem ao poder daqueles aos quais ele fosse outorgado era a garantia da preservação de suas propriedades. Isso se apresenta no parágrafo 124 da obra à qual nos remetemos anteriormente.

Não somente a preservação dos bens materiais era procurada, mas esta, era almejada em correlação com a intenção de preservar a si próprio, à sua liberdade e, por fim, a propriedade privada, como vemos no parágrafo 131. A vida no estado natural não garantia a certeza de uma estabilidade. O temor dominava o homem, que vivia rodeado de perigos. As invasões e ataques à propriedade eram constantes.  Graças a isso, o homem, que mesmo vivendo em meio a tantas intempéries, gozava de sua liberdade plena, prefere abdicar seu direito e confiá-lo a uma instância superior, a um soberano – representante - que teria o papel de governar e salvaguardar os direitos de seus súditos. Assim, vivendo em uma sociedade, onde a guerra, os ataques, a insegurança e as demais desventuras, não representassem a maior preocupação dos indivíduos, os mesmos teriam maiores oportunidades de desfrutar de suas propriedades.  

Para isso, Locke elenca três fatores - que não podem ser encontrados no estado de natureza - como principais contribuintes para o estabelecimento da sociedade. São eles: a carência de uma lei estabelecida, fixa, conhecida, recebida e aceita mediante o consentimento comum; a falta de um juiz conhecido e imparcial; e a carência de um poder para apoiar e sustentar a sentença quando justa e dar a ela a devida execução. Tudo isto pode ser percebido nos parágrafos 124, 125 e 126 da obra trabalhada.

Um ser racional nunca optaria por mudar de uma condição de vida para outra que fosse pior. Quando o homem abre mão de seus direitos do estado de natureza, está fazendo uma tentativa de melhorar a forma de viver. O poder do Estado é obrigado a assegurar a propriedade de cada um, através de suas medidas contra os inconvenientes que tornam o estado de natureza tão inseguro. E como afirma Locke, o governo é exercido através de um poder que governa segundo leis vigentes promulgadas pelo povo, e de conhecimento deste. “Tudo isto visando apenas à paz, à segurança e ao bem geral do povo.”


Autor: José Reinaldo Felipe Martins Filho


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