Marrons e Catanhos: o diálogo dos olhos



 

A água ferveu, estava pronta a fundir-se a essência do pó e o café logo estaria pronto. Fez aquilo como fazia todos os dias, ajeitou e pôs a mesa, abriu as janelas, ligou o rádio, sentou-se. Seu café não era amargo, ela mesma dotava quês de açúcar em ser ar gentil e ainda podia recordar nitidamente enquanto mexia o líquido muito quente, recém preparado, que ia mudando a coloração com a mescla drástica do leite, mas que lhe atribuía um tom equilibrado de marrom pastel. Marrom!

Sua mão às vezes tremia e derramava um pouco de açúcar sobre o pires tal era a nitidez da lembrança, ria sozinha. Ele em sua frente, tão próximo e tão distante, dentro de um limite possível, cercado de impossibilidades; era como se pudesse tocá-lo e não senti-lo, mas olhava e não se cansaria de fazê-lo. Olhava e olhavam-se. Ela não tinha mais nenhum medo, não possuía o menor receio em desafiar os olhos lhe observando, sentia apenas certo estranhamento, não sabia explicar, talvez fosse a ignorância de seus próprios olhos (e também até daquelas retinas que lhe digeriam) em não saber dizer certas coisas apenas nesse mínimo ato, mas ainda assim olhava, não deveria recusar-se ao risco!

Diziam algo? Sim, diziam! Mas o quê? Perguntava-se aflita que mensagem codificada era aquela transmitida. Queria saber, queria falar e ouvi-lo falar. Poderia suportar por mais tempo um silêncio tão eloqüente quanto este?

Ele sorria. Ela tremia e disfarçava. O café não poderia derramar, ele perceberia!

Lembrava-se... Um sorriso se esboçava sutil em seus lábios preenchidos, com a xícara fumegante entre as mãos percorria a casa inteira; quem sabe o encontraria num cômodo por acaso? Certamente seria convidado para sentar-se à mesa posta e tomariam novamente uma xícara de café.

Como queria encontrá-lo! Como queria surpreender-se mais uma vez: levantar a cabeça e olhos tão marrons como aqueles encontrarem os seus castanhos. Como ansiava por um novo encontro, pelo percurso desnudo que aquelas pupilas dilatadas  fariam em seu rosto em brasa, ao ponto de notar sua sobrancelha curta, ingenuamente completada com  lápis  de olhos.

Caminhava. Voava e sentava-se. Pegava mais biscoitos, mastigava-os; mastigava ainda as mesmas palavras que não queria e não conseguia engolir. Não queria... mas ele também as mastigava, será que  engolia as palavras tão pacificamente como parecia mastigá-las?

Não queria aceitar esse ato! Por que tal conformismo? Causaria indigestão aquelas palavras, queria vomitá-las nele e não se incomodaria em resposta semelhante, porém tudo precisava ficar mais claro entre eles. Queria abranger aquele íntimo tão oposto. Queria aquela companhia para si, materializá-la, abraçá-la e beijar-lhe a testa, afagar os cabelos. Seria singelo, mas queria. De perto e mais perto aproximar as pupilas, fazê-las se penetrarem simultaneamente.

Lembrava-se... Ali sentada, sempre se lembrava. Sorria amarga, numa felicidade dolorida, punha mais café na xícara marrom – como era difícil livrar-se do marrom! – Amargo. Misturava um pouco de açúcar, uma lágrima afogava-se no meio, mas faltara leite. O leite acabara? Correu ao armário, não havia mais leite! Conformava-se. Compraria leite no bazar da esquina mais tarde.

 – Uma lata de leite, por favor.

 – Aqui está. Deseja mais alguma coisa?

Sim! Desejava! – Tinha vontade de gritar. Sair correndo e gritar. Correr pela calçada e gritar. Abrir a janela e gritar: sim, eu desejo! O trânsito pararia? Era tão complexo somente desejar... Quem lhe daria olhos marrons? Não quaisquer uns, mas aqueles mesmos olhos marrons! E aquela boca pacífica mastigando cruelmente as palavras? Aquele ar irônico que ela odiava, mas amava? Quem lhe daria? O vendedor do bazar da esquina?

 – Humm... Deixe-me ver... Olhos marrons... Luiz – gritaria para o outro vendedor do bazar – tem olhos marrons no depósito?

Sua ingenuidade febril transbordaria de esperança.

 – Lamentamos muito moça, mas não tem olhos marrons aqui.

Ela sairia cabisbaixa. Estava constatado, nada adiantaria: nem o vendedor do bazar, nem seu intenso desejo, nem sua vontade imensa de gritar, de sair correndo pelas ruas de loja em loja, nem mil xícaras de café adocicado. Talvez não se permitisse aceitar que os olhos não seriam encontrados por nenhuma daquelas maneiras. Mas queria, numa persistência inútil, percorrer ainda mais lugares, quem sabe haveria de encontrá-los?

Ainda sentada com a xícara na mão, lembrava-se e lembraria sempre!

Lavaria os pratos e sempre sentiria cravado em si aquele olhar e a presença de palavras soltas, esvoaçantes, supérfluas, banais, não tão mais importantes que as palavras outrora mastigadas.

Música, filmes, trabalhos, água, chão, unhas, esmalte, panelas, ingratidão. Variedades de palavras que percorreria os ouvidos e as bocas de ambos. Falariam de tudo, mas nada seria dito, não o que de fato mais importava.

Teria a brusca necessidade de largar os pratos; e com as mãos ainda molhadas tocar sua face. Seguraria entre as mãos o seu rosto, num diálogo tão intenso e provocante que o castanho amadeirado de seus olhos se esconderia na profundidade marrom daquele olhar.  “Não fale mais nada agora. Deixe-me tocar sua alma, senti-la e acariciá-la com minhas mãos molhadas. Cadê aquelas palavras? Ditas de forma tão vã? Acaso lembra-se? Fale-as agora, estamos nos olhando, percebe?! Deixe que eu explore esse mundo tão vasto e estranho. Sente-se, tomemos mais uma xícara de café.”

Utopia!

Utopia sem açúcar, sem leite, sem lágrimas.

Mexia o café mecanicamente, a música ainda ressoava “... enquanto tomo o meu café amargo, ainda boto fé de um dia te esperar ao meu lado...”, ao menos o sol a beijava, no entanto o seu pensamento navegava e a essa altura ela tremia mais; não era frio nem nada, mas fechou a janela, desligou o rádio e pôs a xícara na pia.


Autor: Deisiane Barbosa


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