A FLEXIBILIZAÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO COMO CONSEQUÊNCIA DA CRISE DO PARADIGMA SOCIOCULTURAL DA MODERNIDADE



 

O mundo atual enfrenta um grande dilema a respeito da flexibilização das relações de trabalho, e isso decorre, dentre outros fatores, da necessidade das empresas em se adequarem a métodos eficientes de competição econômica em um cenário de livre fluxo dos mercados. Além da profunda revolução tecnológica, que gera modificações radicais na organização da produção e, conseqüentemente, o desemprego.


Essa situação é uma conseqüência do terceiro período do capitalismo, chamado capitalismo desorganizado, que é pensado e estruturado por Boaventura de Sousa Santos em seu texto “O social e político na transição pós-moderna”. Como também dos ideais e características da teoria neoliberalista.

 

O projeto da modernidade se solidifica ao longo dos séculos XVII e XVIII, sustentado por dois pilares, o Pilar da Regulação e o Pilar da Emancipação. Os princípios basilares do Pilar da Regulação são três: o Princípio do Estado (Hobbes), o Princípio do Mercado (Locke) e o Princípio da Comunidade (Rousseau). Enquanto que o Pilar da Emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estéticoexpressiva, a racionalidade moral-prática e a racionalidade cognitivo-instrumental.

Esses dois pilares e os seus respectivos princípios e racionalidades se articulam internamente, porém isso não ocorre de uma forma estática, uma vez que existe um movimento preferencial entre um princípio e uma racionalidade. Eles se relacionam a partir do fato de estarem “[...] ligados por cálculos de correspondência. Assim, embora as lógicas de emancipação racional visem, no seu conjunto, orientar a vida prática dos cidadãos, cada uma delas tem um modo de inserção privilegiado no pilar da regulação”. (SANTOS, 1995. P-77).

 

Segundo Boaventura, o projeto sociocultural da modernidade inicia a sua constituição entre os séculos XVI e XVIII. Somente a partir desse momento é que “[...] se inicia 2 verdadeiramente o teste do seu cumprimento histórico e esse momento coincide com a emergência do capitalismo enquanto modo de produção dominante [...]”. (SANTOS, 1995. p-78).

 

Para o autor, o capitalismo pode ser entendido a partir de três momentos históricos diferentes: primeira fase, Capitalismo liberal; segunda fase, Capitalismo organizado e terceira fase, capitalismo desorganizado.


O primeiro período é onde o processo de industrialização é bastante intenso, e o estado será reduzido a mero legitimador do desenvolvimento econômico do capitalismo. O segundo período é o momento em que se busca distinguir dentro do projeto sociocultural da modernidade o que é realmente possível e o que não é de se realizar em uma sociedade capitalista em expansão.

 

Já o terceiro período do capitalismo, Capitalismo desorganizado – em virtude da dicotomia entre o pilar da regulação e o da emancipação –, surge no final da década de sessenta e continua em vigência até os dias de hoje.

 

Esse período se caracteriza pelo fato de nenhum dos princípios da regulação se mostrar capaz de, por si só garantir a regulação social em situação de tanta volatilidade. É quando existe uma atmosfera de desregulação e flexibilidade ao nível de vários setores da vida coletiva, onde tudo parece negociável e transformável ao nível da empresa, do sindicato ou do partido.

 

O capitalismo desorganizado é sustentado pelo neoliberalismo; um conjunto de idéias políticas e econômicas capitalistas que defende a não participação do estado na economia, com o objetivo de gerar crescimento econômico e o desenvolvimento social no país. Essa doutrina surgiu na década de setenta como uma solução para a crise que assolou a economia mundial no ano de 1973, provocada pelo aumento excessivo no preço do petróleo. Tem como princípios básicos a não intervenção do estado na economia e no mercado de trabalho de um país, além de defender a política de privatização de empresas públicas.



O capitalismo transforma tudo em mercadoria, bens e serviços, incluindo a força de trabalho. O neoliberalismo o reforça, mercantilizando serviços essenciais, como os sistemas de saúde e educação, fornecimento de água e energia, sem poupar os bens simbólicos”. (Frei Beto, 2005).


Segundo Boaventura de Souza Santos, o paradigma sociocultural da modernidade apresenta de um lado o excesso de cumprimento de algumas promessas, e de outro lado o défice no cumprimento de outras tantas. São esses fatos, os grandes responsáveis pela crise do paradigma sociocultural da modernidade, que é, “[...] à nível mais profundo, uma situação de transição.” (SANTOS,1995. p-77).

 

Tal crise pode ser mais facilmente percebida neste terceiro período do capitalismo, uma vez que, a maioria das formas de organização que existiam nos períodos anteriores entrou em colapso. Podemos começar destacando o crescimento desgovernado do mercado mundial, como uma conseqüência das multinacionais; que tornaram a relação salarial mais precária, e deram o “ponta pé” inicial na flexibilização das relações de trabalho, que é o tema do presente artigo.

 

Aqui nos defrontamos com um grande dilema: Será possível as empresas sobreviverem economicamente respeitando as garantias mínimas indispensáveis à dignidade dos trabalhadores?

A revolução tecnológica favoreceu a globalização, que tem exigido por parte das empresas uma maior competitividade como forma de sobrevivência. Isso influencia profundamente nas relações trabalhistas, uma vez que existe uma quantidade ponderável de encargos que incidem sobre a folha de pagamento das empresas, de tal forma que, para cada trabalhador empregado com carteira assinada, o empregador paga um salário para o trabalhador e outro salário referente aos encargos. Essa situação resulta no menor consumo da coisa taxada, o que gera um aumento na taxa de desemprego.

 

Nesse contexto, surge a discussão sobre a necessidade da flexibilização das relações de trabalho. Esse assunto é bastante polêmico e divide consideravelmente as opiniões dos estudiosos.


Para uns, a flexibilização é o anjo, para outros, o demônio. Para certas pessoas é a forma de salvar a pátria dos males do desemprego, para outras, é a forma de destruir tudo aquilo que o trabalhador conquistou em séculos de reivindicações, que apenas privilegiam os interesses do capital, sendo a forma de fazer com que o empregado pague a conta da crise econômica(MARTINS, 2000. p-13).


De acordo com o Dicionário Aurélio, flexibilizar é “tornar flexível”, é algo que pode se curvar, se moldar. Portanto, pode-se dizer que ao pretender flexibilizar as normas trabalhistas, o que na verdade se busca é que a regulamentação trazida por ela seja moldada aos interesses, tanto do empregado quanto do empregador.

 

Segundo Sérgio Pinto Martins, a flexibilização das normas do Direito do Trabalho objetiva assegurar um conjunto de regras mínimas ao trabalhador, ao mesmo tempo em que garante a sobrevivência da empresa durante os períodos de crise econômica.

 

Existem três correntes doutrinárias a respeito da flexibilização das relações de trabalho. A primeira é a Flexibilista, que defende que o direito do trabalho passa por fases diferentes: a da conquista, a promocional e a de adaptação à realidade atual. Assim, deveria ser possível, para que se modernizassem as relações de trabalho no país, que as convenções coletivas de trabalho pudessem ter cláusulas in melius e in pejus para o trabalhador, possibilitando uma maior adequação à realidade da época, do setor, do tamanho da empresa, etc. A segunda corrente é a Antiflexibilista, e entende que a proposta de flexibilização mero pretexto para reduzir os direitos dos trabalhadores, é algo nocivo para os mesmos e pretende eliminar algumas conquistas que foram feitas ao longo anos. Por fim, a terceira é a Semiflexibilista, que acredita que a flexibilização deve acontecer, mas por iniciativa dos trabalhadores de forma gradual e através de negociações.


No Brasil, a flexibilização tem início com a Lei 4.923/65, que legisla sobre a redução geral e transitória dos salários até o limite de 25%, por acordo sindical, caso a empresa tivesse sido afetada por caso fortuito ou força maior em razão da conjuntura econômica. Assim como com a promulgação da Lei 5.107/66, que deu ampla liberdade ao empregador para despedir os empregados regidos pelo FGTS, e a Lei 6.019/74, conhecida como “Lei do trabalho temporário”.

 

Flexibilizar as normas trabalhistas com o objetivo de adequar o direito do trabalho à situação atual vivida tanto pelos empregados quanto pelos empregadores é bastante louvável. Contudo essa flexibilização não deve resultar na mitigação dos direitos dos trabalhadores. Um exemplo claro desta reflexão é a divisão de posicionamentos no TST quando o assunto é o adicional de periculosidade; uma vez que uma parte defende a permanência do acordado entre as partes sobre o preceito legal, e outra parte entende que os acordos coletivos não podem dispor de forma contrária às garantias mínimas de proteção ao trabalhador, asseguradas pela legislação.

 

Existe uma outra situação que também se apresenta à discussão; que é a possibilidade de as empresas de pequeno porte dividirem o décimo terceiro salário de seus empregados em parcelas mensais, com o objetivo de evitar o acréscimo de mais uma taxa trabalhista. Entretanto, o décimo terceiro salário foi criado com o objetivo de garantir ao trabalhador um acréscimo no salário no final do ano. No ano de 1965 a Lei 4.798 possibilitou que o empregado tivesse a faculdade de requerer parte de seu décimo terceiro salário no mês de Dezembro e a parte restante no mês de Janeiro ou todo ele de uma única vez. Portanto, aqui, o direito trabalhista esta sendo moldado de acordo com o interesse do trabalhador.


Então conclui-se que a flexibilização pretende ajustar as normas jurídicas existentes e as normas a serem criadas com a realidade econômica vigente em um determinado país, de modo a contribuir para solucionar os problemas no Direito do Trabalho. Ela está vinculada às questões do desemprego, dos novos processos de administração da produção, dentre outros. Por meio dela, a empresa ajusta sua produção, mão-de-obra e condições de trabalho às flutuações do sistema econômico. E a maior dificuldade vivida nos dias de hoje é estabelecer quais são limites mínimos impostos pelo sistema jurídico brasileiro.

 

Porém não se deve esquecer que entre os princípios do Direito do Trabalho se destaca o princípio das garantias mínimas do trabalhador, que é respeitado no mundo inteiro. Tais garantias são impostergáveis, assim como os princípios fundamentais, que são inerentes à pessoa humana. O Direito do Trabalho é formado por preceitos de ordem pública ou de caráter imperativo onde prevalece o amparo ao trabalhador como ser humano.

 

Segundo Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante:

“A flexibilização não pode ser vista como possível pela simples substituição da tutela legal pela sindical. Porém, é razoável, mesmo mantendo-se a tutela legal imposta pelo Estado, outros critérios de fontes, através das negociações coletivas e que representam avanços para as classes trabalhadoras. Deve ser valorizada a flexibilização como avanço no trato das relações trabalhistas, mas não se pode negar a necessidade de manutenção de direitos que foram alcançados após décadas de lutas".


Portanto, não podemos permitir que a flexibilização das relações de trabalho, sob a desculpa da evolução do direito do trabalho e da sobrevivência econômica das empresas, passem por cima das garantias trabalhistas conquistadas através das incansáveis lutas travadas ao longo dos séculos.

 

A flexibilização das relações de trabalho devem sempre objetivar a adequação do seu conteúdo à realidade vivida pelas empresas e seus empregados, de modo a solucionar, da melhor maneira possível, os conflitos decorrentes desta relação, e não a mitigação dos direitos trabalhistas.


Autor: Natália Campos


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