Cinema Americano é Sempre Comercial?



Costumamos classificar sempre o cinema americano como “comercial”. É lugar comum fazermos tabula rasa em relação à produção considerada “secundária” ou “marginal” – mesmo quando se refere a grandes cineastas, de “primeira linha” – e considerarmos que existe uma categoria epistemológica própria, dentro da qual classificaríamos todo o cinema americano.

Pretendo com este breve artigo tentar “desmontar” ou pelo menos tornar relativo este mito, expondo o caso do cineasta Roger Corman e sua sucessão porque, em grande parte, todos os filmes “desviantes” do “padrão Hollywood” do cinema comercial, são produzidos hoje por cineastas que estão, de alguma maneira, ligados a Corman ou à sua sucessão.

Roger William Corman nasceu em Michigan em 1926. Iniciou-se em Hollywood, como produtor em 1953, e como cineasta em 1955, com filmes “baratos” (baixo custo) e “rápidos” (realizados em pouco tempo), os quais hoje chamaríamos de “classe B”. Um exemplo clássico é O corvo, ou então A pequena loja de horrores. Foi o responsável pela grande retomada e divulgação dos contos do escritor Edgar Allan Poe e pela ascensão meteórica de nomes como Cristopher Lee, Vincent Price e Boris Karloff.

Devido à grande liberdade que proporcionava aos seus assistentes, deu chance à expressão de tendências individuais, e bastante heterogêneas entre si, como os três cineastas apresentados acima e, na sua sucessão, nomes como Oliver Stone (Platoon, Apocalipse Now, Alexandre, etc) e Steven Spielberg (Amistad, A cor púrpura, etc), os quais, por sua vez, são responsáveis pela geração de cineastas como Ang Lee (Brokeback Mountain).

Quando temos acesso a este panorama mais amplo, temos também clareza da teia de relações que se estabelece entre todos estes cineastas e vislumbramos o nó que os une: a filiação a Roger Corman.

Em entrevistas, nos anos 80, Francis Ford Coppola afirmou que aprendera com Roger Corman que deve haver alguma exposição do corpo humano, quer seja um colo, um braço, uma perna, com uma certa constância, de tempos em tempos durante a ação, para prender a atenção do espectador. Estas características sensualistas, presentes até mesmo em filmes com altas doses de ação e carnificina, será um diferencial da sua produção.

Encontramos esta mesma característica, de forma visível, em Oliver Stone e Ang Lee. De tempos em tempos um torso, coxas, glúteos, que se insinuam sob as roupas ou se expõe para além das mesmas, mesmo em violentas cenas de batalha (Alexandre).

Já o jovem Spielberg, dará grande ênfase à temática social, o que o aproxima muito de Oliver Stone e Ang Lee. Na época em que ele ainda não havia alcançado o sucesso comercial, através dos efeitos especiais e da temática “cósmica”, ele dirigiu Amistad, onde demonstra o seu lado mais sensível, humano e engajado. Anos depois, tão rico e aclamado que não precisava mais fazer filmes para agradar às corporações dos grandes estúdios, recuperou este seu lado mais brilhante e mais nitidamente artístico, ao realizar A cor púrpura.

A cena em que a cantora do bar pede perdão ao pai, pastor protestante, através da música, onde o coro da igreja batista e a banda do cabaré ecoam juntas, e ela canta um spiritual travestido em blues, é uma das mais belas já filmadas por Spielberg.

A jovem está cantando no bar e, ao longe, escuta o coro da igreja. Ela então se põe a caminho da igreja, sem deixar de cantar, e os músicos do bar a seguem, sem deixar de tocar... Ela caminha ao redor do lago, a paisagem é bucólica... Conforme se aproxima da igreja do pai, tanto ela quanto o coro da igreja aumentam o volume da voz... Ela passa em revista o hinário batista e, do nada, está cantando um spiritual de arrependimento e de contrição. O pai derrama lágrimas...Ambos se abraçam no centro da igreja (que é também o centro da cena e da tomada) e todos que estão dentro do cinema, assistindo a tudo isto, choram copiosamente...

Apenas presenciei choro tão copioso, intenso e tão “unânime” numa platéia de cinema quando assisti, muitos anos depois, O segredo de Brokeback Mountain.

É sintomático que Ang Lee tenha produzido Brokeback Mountain em 2005, logo em seguida ao grande épico do seu “professor”, Oliver Stone, Alexandre.

Não é apenas a temática ligada à homossexualidade que aproxima os dois filmes. Existe, em ambos os casos, uma vontade de criar personagens reais e palpáveis, de carne e osso, que se aproximem das pessoas comuns e que, portanto, possam possibilitar identificação ou auto-reconhecimento. Todos conhecem alguém que se parece com Jack ou Ennis, que vivencia crises de consciência e problemas cotidianos semelhantes aos deles.

Tomemos como exemplo a cena em que Ennis tem de ir trabalhar e chega com as duas garotinhas, no colo, ao supermercado onde Alma trabalha. Ele as coloca no chão e, enquanto discutem sobre quem poderá tomar conta das meninas, uma delas derruba os potes de conserva de uma prateleira, quebrando vários deles.

A banalidade desta cena faz com que nos identifiquemos com as personagens, criemos um vínculo afetivo, de empatia, em relação às mesmas.

Da mesma maneira, Alexandre e Efestion nada têm de glamourosos. Eles estão sempre cheios de machucados e cicatrizes – em decorrência de sua participação nas batalhas - eles brigam, têm crises de ciúmes...Alexandre se casa para garantir a sucessão dinástica e, na noite em que ele irá manter relação sexual com a esposa, Efestion lhe dá de presente um antigo anel egípcio: é a sua “aliança”, que ele só deixa cair do dedo no momento em que seu espírito se desprende do corpo, sendo levado pela águia.

Ennis maduro – só, extremamente pobre e amargurado – guarda como relíquia, dentro do seu guarda-roupa, a camisa, a jaqueta de Jack e um cartão postal...É diante destas “relíquias” que ele jura fidelidade.

Ambos os filmes são extremamente sensíveis, apesar de Stone ter uma predileção mórbida pelas cenas de carnificina e as fazer imensas, intermináveis...A morte, ligada ao sangue, é vista e descrita nas suas mínimas nuances, a violência é uma metáfora. Interessante o fato da morte de Alexandre – que é o personagem principal do filme – ser tão rápida e virtualmente quase “indolor”. Acredito que isto se deva ao fato de que, para efeito de coerência estética e unidade estilística, a sua morte “real” já ter acontecido minutos antes, quando ele é carregado inerte, sobre o escudo, após uma batalha sangrenta e rumorosa, que conta inclusive com a presença de elefantes, na Índia.

Como podemos ver, todos os cineastas aqui comentados são considerados “de primeira linha” e, certamente, a maior parte da sua produção pode ser considerada como sendo cinema comercial. No entanto, nenhum dos filmes aqui elencados pode ser considerado como representante do “padrão Hollywood” ou do gosto do americano médio.

Gostaríamos diante do exposto de concluir afirmando que da mesma maneira que nem todo cinema produzido na Europa pode ser classificado como sendo “cinema de arte” ou “cult”, nem todo cinema produzido nos Estados Unidos deve ser classificado como sendo cinema comercial.


Autor: Luiz Carlos Cappellano


Artigos Relacionados


Não Aguento Mais Brigas...

Da Sensação Do Místico

"papo De Jornalista" - José Neto Pandorgga

‘paquetá’ E Os Seus Homônimos

Você Tem Jogo De Cintura?

Três Nomes Que Carecem De Oficialização

Você Me Magoou. Dá Pra Esquecer??