REMINISCÊNCIAS DE UM CORAÇÃO



      O que me ia à alma naquele momento poderia ser descrito como fogo que arde, deixando dor, angústia, desolação e principalmente medo. Medo das lembranças e de tudo que, há muito, deixei para trás. O sol ia alto, como sempre, a paisagem também não havia mudado. Somente eu já não era mais a mesma, eu mudei quando de lá sai e novamente mudei agora que retorno.

      As velhas lembranças me atormentavam a cada instante, sabia que em alguns minutos a dor e a mágoa se tornariam tão intensas quanto há 10 anos atrás. Realmente eu tentei fugir do passado, tentei esquecer-me de tudo e todos, mas o destino teimava em reaproximar-me outra vez do passado.

      A cada instante eu voltava ao passado, a cada momento eu relembrava as estações dolorosas de minha existência. Tentava encarar tudo de frente, afinal já fazia tanto tempo, mas os episódios eram tão dolorosos que me era impossível não temer o que estava por vir. Francamente eu não ia conseguir, mas eu precisava e tinha de ser forte.

       Conforme ia chegando mais a memória teimava em recordar os fatos mais doídos de minha vida. Coisas que eu não gostaria de relembrar, mas que faziam parte de mim, de minha vida e de minha alma. Guardei no mais profundo do meu ser todo o passado, até o momento em que aquela carta trouxe de volta todos os fantasmas que eu queria esquecer.

 

II

   

      Minha infância posso dizer que foi venturosa, sem más atribulações alguma. Como qualquer criança eu fui feliz nas traquinagens infantis, subindo nas arvores, tendo sonhos de criança, enfim, não pensava no futuro, e, principalmente jamais imaginei que ele seria tão cruel.

       Filha única, nunca pensei que um irmão me faria tanta falta, mas Deus não quis que tivesse alguém para partilhar minhas dores. Bem que meus pais tentaram me dar um, eu sempre pedia como presente de natal ou de aniversário, mas meu pedido acabou levando minha mãe para o outro lado da vida, ela e meu irmãozinho. Até que me senti um pouco culpada, mas com os carinhos de meu pai compreendi que eram coisas da vida. Ainda guardo na lembrança o último sorriso de minha mãe.

        Quando tinha quinze anos meu pai ficou doente, não me preocupei, pois achei que deus não levaria o meu único ente querido. O pai tentava me confortar e eu, queria acreditar claro, que tudo ia se resolver.

         Foi numa tarde quente, minha terra natal sempre teve o sol escaldante, que começou meu malfadado sonho de amor. O jovem estava no armazém do meu pai, me olhou com os belos olhos verdes assim que atravessei o batente da porta, ele era muito bonito, daquelas belezas ofensivas, que era impossível não notar. Foi realmente amor à primeira vista, meu coração tremeu e minha pele eriçou e, claro, que isso foi percebido por meu pai.

         Depois deste dia, todas as tardes o encontrava a prosar com meu pai, Osvaldo, este era seu nome ficava durante horas e só desaparecia depois de me dar um “boa tarde...” . Isso durou quase um mês, até que uma tarde o pai me chamou e explicou quem era aquele rapaz, era novo na cidade, filho de um bom amigo seu, tinha uma chácara, solteiro e buscava ampliar seus negócios nos arredores. Lembro que ressaltou a palavra “solteiro”, ou se eu queria escutar aquilo e me apeguei à palavra. Enfim, depois os olhares do belo Osvaldo eram constantes sobre mim, até incomodada, mas também me envaidecia. Bem o namoro se iniciou, fui feliz naqueles primeiros tempos de flertes, mas a insistência do pai em apressar o casamento me deixava insegura, pois não queria eu deixar meu único elo familiar.

      Mas a triste fatalidade veio para aterrar meu coração, realmente Deus não poupou meu velho pai, e eu, com apenas quinze anos me vi sozinha naquele sertão escaldante. Foi neste momento que me apeguei em Osvaldo, em uma semana vendemos o armazém e a velha casa onde passei os melhores anos da minha vida. Casei e parti para outra parte da vila, com uma pessoa que nem ao menos conhecia direito.

 

III

      O ônibus parou, sai das recordações. A velha rodoviária ainda era a mesma, um pouco mais moderna, tinha até um velho computador, mas as mesinhas vermelhas onde os viajantes tomavam o café aguado eram as mesmas.

     A centenária Zefa vendedora dos bilhetes de passagem já não estava mais lá, meu pai dizia que de tão velha não teria serventia no céu, eu ri disto na época e agora me emociono em lembrar as coisas que dizia meu saudoso pai. Entristeci-me ao lembrar-me de Zefa, pois da velha ouvi a última palavra amiga, naquele mesmo lugar, quando deixei tudo para trás e parti em busca de esquecer minhas magoas.

      As pessoas pareciam às mesmas, com a cara sofrida e queimada pelo sol, ao olhar para elas lembrei novamente dos dizeres de meu progenitor “quem neste sertão árido tiver a pele branca não é um bom trabalhador” e isso analisado bem é um fato verdadeiro.

      Sentei-me a um banco, o único com aparência agradável, e esperei, pois segundo a maldita carta alguém viria buscar-me. Fiquei observando o céu claro e os desenhos das nuvens, mania que tenho desde que me lembro de existir. Uma buzina me fez deixar as divagações, quase morri naquele instante, a velha caminhonete Ford ainda era a mesma. Porque o passado me perseguia tanto meu Deus.

       Da caminhonete saiu um jovem de uns vinte anos, agradeci naquele momento não ser o velho Bento (tão velho quanto a Zefa da rodoviária) caseiro da chácara de Osvaldo, certamente já não fazia mais parte do mundo dos vivos.        Parecendo que já me conhecia e depois de um “boa tarde” sorridente, o jovem (Danilo era seu nome) pegou minhas malas e esperou meu embarque no decadente carro. Depois das palavras rotineiras “como foi de viajem” ou “por aqui as coisas não mudam muito” o trajeto seguiu silencioso. O rapaz atento à estrada e eu perdida em pensamentos.

         Já ao enxergar a velha árvore (testemunha das minhas peripécias infantis) meu coração acelerou, sabia que para chegar á chácara teria de passar por minha antiga casa, mas não pensei que fosse sofrer tanto assim. Pedi a Danilo para parar a caminhonete e a desculpa de não me sentir bem, corri ao encontro da querida árvore e quando pus a mão nela parece que toda minha vida passou diante de mim, tudo que passei e que lutei anos para esquecer veio como um raio fulminante em minha alma. Minhas pernas tremeram e me fiz uma pergunta que evitei durante toda a viajem “por que voltei” ou “porque tive de atender ao pedido de Osvaldo, ao me escrever”. Sai do devaneio com a mão do jovem Danilo em meu ombro:

     “-- A senhora está bem? Precisamos seguir para não pegar a noite na estrada!”

     “--Sim, foi só um momento de fraqueza! (não se ele entendeu o real significado daquelas palavras).”

         O percurso restante foi feito em meia hora. E a dor veio, veio como um raio que ofusca a visão, lá estava a casa onde sofri durante um ano inteiro. Lá estava todo o passado que eu não queria lembrar e o resquício de felicidade que eu não queria esquecer. Tudo, mas exatamente tudo continuava igual, como se 10 anos não se tivessem passado, como se eu apenas fosse dar um breve passeio e retornado para meu lar.

      Uma mulher, mais ou menos de minha idade, saiu da porta que eu sabia (por lembrança ou intuição) ser o quarto de Osvaldo, simplesmente me olhou, senti um leve toque de desprezo, falou:

“—Osvaldo está cansado e somente amanhã poderá falar com a senhora, tem janta na cozinha no mesmo lugar de sempre, o quarto é o mesmo que seria do menino. O que era seu já está ocupado. Boa noite!”

      Dirigi-me à cozinha e com familiaridade abri a velha geladeira e me servi um copo de leite, fui para o quarto. “Porque ele fez isso comigo, sabia das tristezas que vivi naquele quarto, por que meu Deus!”

       Ao abrir a porta do quarto, meu corpo estremeceu, meu coração gelou e as lágrimas, reprimidas durante tantos anos, vieram em enxurrada. Tudo estava lá, como se acabasse de ser usado, o berço, as roupinhas e tudo mais do filho que eu não cheguei a pegar nos braços, a dor inundou minha alma.

 

IV

      Depois de casada fui morar em uma bela chácara, Osvaldo era um homem belo, bondoso, porém rude. Fazia tudo para me agradar, mas era um tanto fechado para conversas e por isso fui me sentindo cada vez mais só, a solidão invadia meus dias. Era tão recatado que parecia envergonhar se de entrar em nosso quarto enquanto eu não houvesse deitado e me enrolado nos lençóis, muitas foram as vezes que o esperei na cama ansiosa por seus braços, pois em minha fantasia de moça sonhadora era normal um casal se amar quando tivesse vontade. Mas isso não acontecia, meu marido cumpria seu dever matrimonial somente uma vez por semana, isso foi nos afastando cada dia mais.

      Foi assim que concebemos o nosso bebê, mas nesta época eu já não sentia mais a felicidade dos primeiros meses de casada. O afastamento de Osvaldo esfriou, mas não apagou o que eu sentia.

      Os meses foram passando e em nada mudava meu marido, que somente expressava um olhar de alegria quando se referia ao bebê, já ao que se referia a mim era somente um olhar de mágoa, coisa que eu jamais entendi por que.

        Em uma noite Osvaldo não voltou para casa, eu me preocupei, pois em minha cidade quando um homem não voltava para seu lar era possível que ele estivesse em alguma casa de mulheres ou, na pior das hipóteses, morto por alguma desavença. Raiou o dia e eu pedia a Deus para nada de grave ter acontecido, mas ao mesmo tempo rezava para que ele não estivesse com alguma meretriz. Quando já eram nove horas da manhã ouvi o barulho da Ford, agradeci aos céus naquele momento, mas a raiva aflorou em meu coração.

         Por orgulho não perguntei nada, simplesmente o olhei, despejando todo meu desprezo neste olhar, e o mandei servir se com o café que acabara de coar. A partir deste dia, as coisas pioraram para nós, já não escondíamos o desprezo um pelo outro. Por vezes eu pensava “Onde está aquele olhar de amor dos tempos do armazém do pai?” ou refletia que nosso casamento não passou de um favor para um velho amigo (meu pai).

        Então meu orgulho de mulher refletia em minha alma, e tudo que eu podia dar a Osvaldo era meu desprezo, por tudo que ele representava: O destruidor dos meus sonhos de amor. Por que não me deixou sozinha, por que não me deixou virar-me por conta própria, por que tinha de fazer essa caridade tão cruel ao desposar uma desconhecida, somente para ela não ficar sozinha no mundo.

...

      Acordei pela manhã com o canto do galo, já havia me esquecido deste som e sorri ao recordar disso, porém o sorriso morreu logo ao lembrar de onde estava. Senti cheiro de café e com isso veio a fome, tomei coragem e desci para a cozinha, esperando encontrar Osvaldo, mas foi em vão, estava tudo silencioso.

     Sentei-me na mesa e logo entrou a mulher da noite anterior, “seria a nova mulher de Osvaldo?” a este pensamento me ocorreu que não havíamos nos separado legalmente. Então era isso ele mandou-me buscar para legalizar a situação com aquela outra. Isso me fez mal, será que havia me esquecido, bem ninguém espera uma mulher, que não ama, durante dez anos. Mesmo assim meu coração estremeceu, ao lembrar de como poderia ter sido feliz, se lê me amasse, mas não amava, nunca amou.

    --A menina já foi para escola, “seu” Osvaldo não vai descer outra vez para o café. Falou a mulher sem ao menos olhar-me no rosto.

    Arrisquei:

   -- Então ele tem uma filha!

    A mulher, Janice, olhou-me com surpresa, logo depois com ódio e respondeu:

   -- Fácil esquecer o passado quando se tem uma nova vida, mas os que ficam choram eternamente. Sim, ele tem uma filha, linda e com os olhos iguais aos da mãe, que ele não cansa de elogiar.

      Logo após me dirigir um olhar de rancor saiu com uma bandeja de café. Nem bem havia me refeito de suas rudes palavras ela voltou e disse:

    -- Osvaldo pede que suba ao quarto dele logo após o almoço, pede desculpa por não recebê-la agora é que não está bem disposto. Deves compreender que chama-la ao lar que abandonou é muito difícil para ele.

      Recebi as palavras como um tapa no rosto. Eu abandonei o lar! Pois então era possível ficar em um lar onde não se era bem quista. Não respondi nada ia saindo calada, neste momento Janice pegou em meu braço e com desprezo falou:

   --- Amei este homem desde o momento em que o vi, mas a sua lembrança era tão preciosa para ele que jamais tive uma chance se quer, então não o decepcione novamente e cumpra com seu papel de mãe.

     Sai correndo e fui parar somente na sala e quando levanto os olhos vejo um retrato enorme de Osvaldo e eu com uma barriga enorme. Oh Deus! Porque tudo isto, porque este martírio, este maldito passado que não me deixa viver. 

     Dali sai sem rumo, andei a esmo e fui parar somente embaixo de uma enorme árvore, ali me deixei extravasar todas as tristezas de minha vida.  “Cumprir meu papel de mãe”, como ela podia ser tão cruel.

 

V

    Sempre que podia derramava sobre Osvaldo meu rançar, meu desprezo. A situação estava insuportável. Um dia ele saiu e novamente não retornou. Como ele podia fazer isso sabendo que nosso bebê estava por vir a qualquer momento. A raiva e o amor reprimido fizeram de mim uma cega, eu pensava somente na mágoa que me ai à alma. Assim adormeci, pensando em meu sonho de amor desfeito.

    Acordei um tempo depois sentindo dores fortes, a bolsa havia se rompido e um liquido viscoso corria entre minhas pernas, era o momento. O desespero tomou conta de mim, meu filho estava para chegar e eu sozinha naquele maldito lugar. Pensei em meus pais, que eles me iluminassem naquele momento. Deus as dores eram insuportáveis, sentia que meu interior se rasgava tamanha dor causada pelas contrações.

      Mas não podia fraquejar, precisava trazer meu filho ao mundo. Não havia empregados durante a noite na chácara (eu havia dispensado a menina que cuidava da casa, para ir à cidade divertir se) e o velho Bento estava com Osvaldo. Dependia, pois, de eu mesma para ajudar meu rebento chegar ao mundo, então, com dificuldade levantei do sofá fui á cozinha e peguei água quente e uma velha tesoura, voltei à sala e deitei no chão.

       Como em toda cidade pequena, e longínqua da modernidade, a maioria dos partos eram realizados de forma precária pelas mãos de parteiras. Com isso já tivera eu oportunidade de ver muitas crianças virem ao mundo, mas jamais havia tomador parte ativa nestas ocasiões, então que Deus me ajudasse a fazer o que era necessário.

        Comecei por fazer força, era preciso expulsar o bebê do meu corpo. Mas por maior esforço o pequeno parecia não querer sair, a dor aumentava a cada instante. Parecia grudado em mim, como a querer a proteção que somente uma mãe é capaz de dar. Todo meu corpo ansiava por se ver livre daquela dor abissal e quanto mais força eu fazia mais ela aumentava. Minha barriga enorme, quase fora do normal, parecia querer explodir com os movimentos estanhos que o bebê fazia dentro de meu corpo, mas tinha de conseguir, eu precisava conseguir.

      Mil vezes amaldiçoei Osvaldo, que não quisesse estar comigo eu até aceitava, afinal não me amava mesmo, mas daí a por em risco a vida de seu próprio filho era inadmissível. Prometi adia-lo até o infinito, se algo de ruim acontecesse com o filho que eu amava.

       Minhas forças se esvaiam, e eu já não podia mais suportar, meus olhos se nublaram e senti que desfalecia. Meus últimos pensamentos foram de ódio para com Osvaldo e de amor pelo ser que carregava em mim. Depois o vazio, o nada, a escuridão.

...

       Acordei em um lugar estranho, ouvia murmúrios de vozes. Minha primeira reação foi levar a mão ao ventre, senti que faltava algo em mim, que estava vazia. Lembrei então de meu sofrimento na noite anterior. “Meu Deus o que aconteceu com meu filho, onde estou”.

      O desespero tomou conta de mim, tentei levantar e não consegui. Uma mulher velha, com aspecto desagradável, entrou no quarto:

        “—Está tudo bem e seu marido logo virá vê-la.” Ao ouvir mencionar Osvaldo não tive vontade de falar nada e minhas palavras de dúvidas morreram na garganta. Novamente adormeci.

      Despertei com o sol invadindo o quarto, parecia haver dormido dias. Ao meu lado, segurando minha mão, estava Osvaldo. Uma sensação de asco, repugnância e amor tomaram conta de mim. Num impulso retirei a mão.

      “—Onde está nosso filho, meu filho?”.

    Nisso seu olhar se tornou sombrio e seus olhos logo ficaram marejados de lágrimas. Compreendi que meu maior temor se confirmava.

      “—Eu te odeio, por tudo que sofri e sofrerei eu vou te odiar para sempre, como pode me abandonar no momento em que mais precisei, eu nunca vou te perdoar”.

      No rosto de meu marido apareceu uma expressão de sofrimento, mas eu não me constrangi com isso. E continuei a soltar todos os impropérios que me vinham à lembrança.

     “—Meu maior erro foi ter consentido neste casamento maldito, agora pagarei por toda minha vida com o sofrimento que me impingistes”. Saia daqui me deixe pelo menos sofrer em paz maldito.

       Osvaldo parou me olhou nos olhos e falou:

     “—Vou amargar pelo resto dos meus dias o ato de tê-la deixado sozinha, me desculpe, eu te ...

        Não permiti que terminasse, sabia o que diria, eu não estava disposta a ouvir suas mentiras. Agora não adiantava tentar reconstruir um sonho que estava desfeito, ou que nunca existiu.

“—Saiaaa!” Gritei. Saiu. Senti que minha vida estava sem destino desde aquele instante. Pois o homem que me deveria amar e proteger se tornara um estranho, um maldito estranho.

        Fechei os olhos e divaguei, pensei no rosto do meu bebê, do meu anjo que eu não chegara a ver. Tentei não imaginar seu pequeno corpinho repousando na terra fria, mas em vão, as imagens vinhas como forma real.  Estremecia a cada imagem. E entre a dor do malfadado parto e de minha alma eu adormeci.

        Acordei mais disposta e logo a mulher do outro dia entrou no quarto e sorriu com os dentes amarelecidos e falou:

         “—A senhora tá bem melhor! Já pode tentar levantar e amanhã mesmo já pode retornar ao lar. Foi uma semana difícil, mas tudo está bem agora.” Ficou me olhando com o sorriso encardido nos lábios.

         Não tive a mínima vontade de ser gentil e fechei os olhos. Senti um tremor ao sentir suas mãos em minha testa, e ao mesmo tempo reconfortei-me com o ato. Abri os olhos e vi que apesar da aparência detestável os olhos da mulher transmitiam um carinho imenso. Ela nunca havia falado comigo e nem tentado uma aproximação, somente entrava no quarto para me dar um caldo de aparência duvidavel, mas muito gostoso.

        “—Venha, levante-se, o sol ta bonito lá fora.” Com isso foi me guiando para fora. A principio fiquei tonta, mas depois caminhei sem dificuldade alguma. Aproveitei o sol e voltei novamente para o quarto. Fiquei deitada pensando, novamente, em minha triste vida.

          De súbito estremeci ao ouvir o barulho da velha Ford. Ele voltara. Retesei o corpo e esperei. Quando entrou no quarto sua expressão era fria e seu olhar implacável. Entrou, parou e foi logo dizendo:

       “—Amanhã logo cedo virei buscá-la. Sei que me odeias, mas prometi à seu pai que a manteria sob meus cuidados e vou cumprir meu papel. Resta agora que cumpras o seu e cuide do seu lar.

      Não respondi nada. Ele muito calmo continuou:

     “—Não importa agora tudo o que se passou. Não podemos retomar o que perdemos”. Engoliu em seco e prosseguiu:

      “—Até amanhã. Sua casa, suas coisas a esperam e uma bela surpresa a aguarda em nosso lar, não falo agora para que não tenhas nenhum tipo de comoção, ainda é perigoso, pois é preciso que se recuperes bem.”

       Dizendo isto se virou e saiu.

       Fiquei atordoada, não esperava que ainda me quisesse por perto, já não precisava mais de mim. Não havia mais um filho para prendê-lo, e não havia amor. Então por que tudo isso, mas eu não podia permitir tanta humilhação, se saia durante as noites era porque tinha uma outra mulher, então o que queria comigo a não me humilhar. Não eu não sofreria mais, não precisava voltar para aquela maldita casa, para aquele maldito homem que destruíra minha vida.

       Já sabia o que fazer, e faria. Partiria daquele lugar para sempre, nada me prendia por lá. Daria um jeito em minha vida, buscaria meus sonhos perdidos. Sim, esta noite mesmo partiria. Tentei dormir um pouco, pois a noite seria longa e cansativa, precisava guardar forças.

       Mas um pensamento não me deixava descansar “Que surpresa seria esta meu Deus”. Estremeci. “Não ele não seria capaz disso. Não. Ou seria?” “Será que ele esperou este tempo todo para enterrar meu filho, será que me aguardou para poder ver de perto meu sofrimento?”. “Isso eu não suportaria”

      Depois de jantar, o mesmo caldo de sempre, esperei umas três horas, até não ouvir barulho algum, procurei um papel e algo com que escrever. “Não me procure mais” Foi somente o que consegui deixar escrito. Coloquei o papel sobre a mesa e  fui saindo da casa no mais completo silêncio, cada vez me distanciava mais de tudo, e de todos. Caminhei por algum tempo, com cuidado para que ninguém me visse, depois de horas de caminhada avistei uma carroça. Aproveitei e pedi carona (o povo simples do campo já está acostumado com isso), era uma senhora que ia as pressas para a cidade buscar a filha que chegaria naquela noite. Sorri ao ouvir isso e pensei “uns retornando e outros fugindo do passado”.

       Cheguei à pequena rodoviária e busquei pela velha Zefa, sabia que ela me ajudaria, pois me conhecia desde sempre e devia muitos favores para meu pai. Soube que somente chegaria em uma hora, então me restava esperar, aproveitei e descansei sentada em uma dura cadeira. Adormeci. Acordei com alguém cutucando em meu ombro. Era Zefa a me olhar assustada.

       Expliquei tudo. Pela primeira vez extravasei meu pranto e contei minhas magoas para alguém. Ela ouviu tudo e, pelo seu olhar, soube que me ajudaria. Somente perguntou se era mesmo aquilo que queria fazer de minha vida, porém não esperou resposta, com um sorriso saiu e voltou em seguida com um bom dinheiro que colocou em minha mão.

       “—Ai tem um endereço lá da capital, é onde tá minha filha. Junto tá uma carta onde explica que ela deve te receber e ajudar. Cuida-te menina e se precisar a velha Zefa estará aqui. O ônibus tá saindo e já comprei sua passagem.” Com isso me deu um beijo.

          Emocionei-me com aquilo, com aquela demonstração de carinho. “Porque Osvaldo não era assim” pensei, mas rapidamente sumi com este pensamento.

      “—Prometo pagar o dinheiro assim que puder e enviar noticias, mas me prometa que jamais falará nada a meu marido.” Sabia que podia confiar nela.

         Subi para o ônibus e parti, em intenção de um dia voltar, mas o destino me trouxe de volta.

 

VI

         Na capital encontrei filha de Zefa, esta morava em um pequeno apartamento. Depois das primeiras conversas e explicações ela me colocou para dormir, não sem antes dizer que eu precisava ver um médico para tratar de debilitada minha saúde, em vista do precário parto que tive.

         Mas como uma tristeza nunca vem só, já na manhã seguinte acordei com Paula chamando-me com os olhos marejados de lágrimas. Um acidente na noite anterior havia ceifado a vida de sua mãe. Ao que parece minha velha amiga sofreu um acidente com sua carroça ao voltar do trabalho. Isso ocorrera no mesmo dia em que parti daquele maldito lugar.

        A moça partiu as pressas, a tempo de dar um ultimo adeus a sua querida mãe e eu mesmo com o coração abatido me era impossível fazer lhe companhia, e ela sabia o por que. Quando retornou trouxe uma surpresa, meus documentos, que eu deixara para trás. Para ela isso era fácil, pois era uma advogada. E nas cidades pequenas não se costumava fazer muitas perguntas.

.      Paula retornou e a vida seguiu seu rumo. Esta fiel amiga é, até hoje, minha verdadeira e melhor amiga. Arrumou-me um emprego e me influenciou a terminar meus estudos. Paula havia estudado e trabalhava como assistente de um famoso advogado.

          Por conta de Paula vivi durante um mês inteiro, pois ela arrumou-me um curso de telefonista, que ela mesma pagou. Depois disso me conseguiu uma colocação no mesmo prédio onde trabalhava. Mas deixou claro que eu precisaria estudar. Segui seu bom conselho e depois de alguns anos eu já era sua assistente, pois agora ela era sócia da firma de advogados na qual trabalhava.

        E assim os anos se passaram, bloqueei na memória tudo pelo que passei. Nunca tive algum relacionamento mais sério, tinha medo do sofrimento. Vivi para o trabalho, tinha bons amigos, freqüentava bons lugares e isso me bastava. Ia vivendo. Até que um dia, por estas coincidências da vida, o passado voltou para assombrar-me.

         O escritório de Paula tratava dos mais diversos assuntos, e um dia ao entrar em sua sala minhas pernas tremeram, eu reconheci um rosto, sabia que fazia parte de meu passado, mas não sabia em qual situação. Respirei fundo entrei na sala, era um homem, já velho, este me olhou com insistência. Paula percebendo alguma coisa mandou-me fazer uma coisa qualquer.

         Depois fiquei sabendo que aquele senhor era o dono da rodoviária de minha terra natal e por alguns problemas jurídicos procurara Paula. “Meu Deus” pensei, “Será que me reconheceu?”. Impossível, eu já não era mais a mesma campesina de antes. Mas mesmo assim fiquei preocupada, a única que sabia meu destina era a Zefa, e esta, certamente, não tivera tempo de falar para alguém.  Estava segura, ninguém sabia onde eu estava, ninguém jamais me procurou. Agora com a mínima possibilidade disto ocorrer eu me afligia.

          Esta aflição tinha motivo, tinha sentido. Uma semana depois uma carta de Osvaldo viria me encontrar. Chamava-me para um assunto urgente, era imprescindível minha presença.

          Segui os vários conselhos de Paula, de não fugir mais do passado, e resolvi o que tinha de fazer. Tinha de resolver esta situação. Se o destino quis assim, eu não deveria esquivar-me mais.  Parti para onde eu jurei nunca mais voltar.

 

VII

 

      Voltei para dentro, afinal estava lá para ouvir o que ele tinha a dizer e falar o que ele deveria ouvir. Não percebi, o tempo passou depressa, já era hora do almoço. Novamente deveria almoçar sozinha, Osvaldo não desceria. Mas afinal porque isso tudo, me chamara e agora não queria enfrentar. Era agora ou nunca.

       Rapidamente me dirigi para onde eu sabia ser o seu quarto do meu marido. Abri a porta vagarosamente, estaquei ao ver a cena. Janice, na penumbra do quarto, abraçada em Osvaldo, “Como podiam” pensei, pelo menos poderiam esperar minha partida, afinal éramos casados, eu ainda era sua esposa. Mas o que tinha eu com isso, queria resolver tudo logo e partir dali para sempre. Resoluta falei:

       —Preciso falar com meu marido. Não sei por que frisei bem esta última palavra.

          Janice saiu. Esperei que fechasse a porta, fui até a janela e abri as cortinas. Ao me voltar meu coração gelou. O belo homem de outrora estava um verdadeiro farrapo humano. O brilho dos olhos apagados e um semblante doente.

Olhou-me nos olhos e falou:

        --Esperei por tua volta durante todos estes anos, te procurei por todos os lugares possíveis. Agradeço ao senhor da rodoviária pelas noticias a teu respeito. Porque nos abandonou?

      Ao ver aquele homem alquebrado meu coração se encolheu e não encontrei palavras. Todo ódio de outrora se esvaiu de forma gradativa. Parece mesmo que o amor nasceu ali, naquele momento. Não encontrei palavras para dizer. Osvaldo percebeu isto.

      --Não precisa falar nada agora, sei que não esperava me ver assim, nem eu tampouco esperava ficar deste jeito. Por isso te enviei a carta, urge que você compreenda. E me perdoe por tudo. Perdão por me impor a ti, mas pensei que com o tempo seu amor desabrocharia.

        A custo consegui proferir o que me ia ao coração:

     --O meu amor sempre existiu, não percebestes, mas eu sempre te amei e sofri a cada instante com tua rudeza e indiferença. Sabia que um dia terias vontade de buscar um amor, ninguém é obrigado a viver solitário. Somente esperava teu apoio durante o período da gravidez. Tua desatenção para comigo levou nosso filho.

       Respirei fundo e prossegui:

     --Como pode me deixar só no momento que eu mais precisava? Como pode buscar outras mulheres enquanto nosso filho estava para chegar ao mundo?  Não estou cobrando-te amor, mas o respeito e o cuidado que deverias ter comigo.

        Osvaldo me olhou com tristeza e falou:

      --Todos os dias da mina vida eu tentei compreender o que se passou. Quando te vi pela primeira vez eu te amei, mas não queria apressar nada, porém com a morte do teu pai tudo se precipitou. Sei que não estavas preparada, ainda, para a responsabilidade de um casamento, e isso me foi doloroso de perceber. Por isso me afastei, não queria impor minha presença. Sei que errei, deveria ter persistência. Mas achei que não estavas segura de teu amor por mim. Por isso me afastei, queria dar-lhe tempo.

     --Ah! Osvaldo, por quê? Porque não confiou em mim, porque não confiou nas premissas de amor do nosso namora? Eu te amava tanto, mas com tua indiferença acabei por pensar que havias te arrependido de tudo. Que o casamento fora apenas uma promessa para meu pai. Nas primeiras semanas fomos tão felizes, depois tudo mudou, tuas atitudes para comigo mudaram.

     --Sim! Foi uma promessa a seu pai, mas somente por ter ele percebido que o amor nos uniria. Nas primeiras semanas eu fui o homem mais feliz do mundo, todas as vezes que a tinha nos braços era uma alegria para meu coração. Mas depois percebi que deverias estar sofrendo ao ter contato com alguém que não amavas.

Respirou e continuou com a voz fraca:

      --Como fui tolo em não perceber! Mas eu te amava tanto que comecei a imaginar se não casaras comigo apenas para não ficar sozinho no mundo. E isso me envergonhou a tal ponto que nem mesmo podia dormir no mesmo quarto, pois parecia estar aproveitando me. Por isso dormia em outro quarto. E não imaginas quantas vezes lutei contra a vontade de voltar e ficar contigo. A simples idéia de ser rejeitado e perder alguma chance para sempre me assombrava por demais. Então assim fui me afastando cada vez mais.

      Novamente uma pausa, como se eu não falasse nada ele continuou:

     --Quanto mais eu pensava, mais eu me desesperava. Cheguei ate odiar por me fazer sofrer. Tive vontade de me fazer amar a força. Mas tinha meu orgulho, e não te queria magoar.

    Suspirei fundo e respondi;

      --Mil vezes tivesse tentado, seríamos agora, quem sabe, felizes e teríamos nosso filho. Eu te amei tanto e também me desesperava ao fato de perdê-lo. Mas agora tudo passou não é necessário sofrer mais. Fomos inconseqüentes e orgulhosos, perdemos com isso a maior oportunidade da vida, a felicidade. Isso eu posso perdoar.

       --E o que não podes perdoar?

       --O abandono. Poderias ao menos ficar comigo enquanto estivesse grávida de um filho seu. Sei que um homem precisa de uma mulher e não o culpo por procurar uma fora de casa. Mas o momento não era propicio, e isso é imperdoável. Desculpe-me, mas eu não posso dar-te o perdão por isso. Obviamente não querias que ocorresse a tragédia, mas deverias ter pensado nisto antes.

      Tomando seu silencio como deixa para continuar, prossegui com algum rancor na voz.

      --Não pense que sou absolvida de qualquer culpa. Em primeiro lugar não deveria ter dispensado o menina que cuidava da casa, e deveria ter sido firme contigo e o obrigado a ficar comigo nos dias finas de minha gravidez.  Mas, não imaginei que ficarias toda noite fora de casa. Fostes imprudente. Uma outra mulher deveria ser secundária em relação ao teu filho!

      O olhar de Osvaldo estava carregado de surpresa e tristeza quando falou:

      --Então foi isso! Pensavas que eu andava em busca de aventuras amorosas. Meu Deus! Como pode imaginar isto de mim! Eu jamais enquanto estive contigo procurei um outro alguém. Não! Nunca mesmo. Por mais que eu tivesse meus desejos de homem, não conseguiria, pois todas as mulheres nada eram perto de ti.

      Com um misto de raiva e melancolia continuou:

     --Esteja certa de que me arrependo amargamente de ter saído de casa naquela noite. Foi uma bobagem, mas era uma surpresa carinhosa para a mãe do meu filho, para a mulher da minha vida. Foi a mesma coisa as duas noites que eu tive de sair. Nada mais era do que uma surpresa, o que causou a morte do meu filho. Novamente te peço perdão.

      A raiva tomou conta de mim novamente. Gritei:

     --Que surpresa era esta tão importante assim, que justificou tua ausência naquela noite?

      Olhou-me nos olhos e disse:

    --Deves ter passado pela sala! Então vistes o quadro, pois era isso. Esta era a surpresa que causou a morte do meu menino. Deixei-o lá para que toda as vezes que o visse lembrasse da minha infelicidade. Amargarei isso até o fim dos meus dias.

      Neste momento eu fraquejei como jamais houvera fraquejado. Como eu pude odiar uma mentira durante tanto tempo. Olhei o com tristeza, imaginando tudo que poderia ter sido de nossas vidas, e por um pequeno desvio não aconteceu. Destruímos a vida um do outro, por simples orgulho.

       O que aconteceu foi uma maldita fatalidade, poderia ter acontecido mesmo que vivêssemos felizes. Eu fugi de algo que não existia. Quanto sofrimento para ambos.  Aproximei-me de Osvaldo e segurei sua mão.

     --Eu te perdôo de tudo, mas também preciso ser perdoada, jamais imaginei que as coisas ocorreram desta forma. Destruímos nossa própria felicidade, por suposições falsas. Perdoe-me!

       Ele, com esforço, falou:

    --inicialmente não compreendi sua fuga, mas lembrei das tuas palavras e soube do que me culpava. Procurei-te muito, mas não obtive a menor pista. Depois desisti, sabias para onde voltar se esse fosse teu desejo. Mas depois que fiquei doente rezei todas as noites pela tua volta. E Deus finalmente me atendeu. Preciso de ti, necessito que compreenda algumas coisas.

        --Quero Osvaldo, que saibas que fugi de tanta dor e tristeza. Desprezei-te e odiei-te durante todos estes anos. Mas agora acabou, erramos ambos. Acho mesmo que o maior erro foi meu, fui precipitada. Mas sei que compreendes minha atitude.

        --Sim Osvaldo eu voltei, mas não vamos falar em morte eu cuidarei de ti e nada vai acontecer. Retomaremos nossa vida, sim, eu agora estou aqui. Saiba que eu nunca deixei de te amar, o ódio era somente um disfarce para este amor não resolvido. Poderemos ficar juntos agora. Mas... E Janice? Pareceu-me muito “apegada” a ti. (carreguei no apegada)

        --Janice é apenas uma boa amiga, ela sabe quem é a dona do meu coração. Mas infelizmente creio que seja tarde demais, não é possível que eu viva mais. Cumpri a missão de trazer-te de volta.

        Meu coração se dilacerou, a dor irrompeu minha alma. Abracei-o sem pensar em nada mais. Ficamos assim durante algum tempo, foi quando Janice entrou e disse:

        --Hora do descanso Osvaldo! Por hoje já chega de emoção. Por favor, senhora, retire-se.

         Olhei Osvaldo, meu grande e único amor, com carinho e fui saindo. Porém antes de chegar à porta ele chamou-me novamente e falou com imensurável esforço:

        --Hoje à tardinha chegará uma surpresa maravilhosa, foi para isso que a busquei de volta.

          Sorri e imaginando o que seria me dirigi ao pátio da chácara. Lá notei coisas que não notara antes: Um cômodo a mais, brinquedos e coisas de demonstravam a presença de uma criança. Sim! Agora lembro de ter visto fotos de uma menina na sala da casa. Poderia ser filha de algum empregado, ou uma parente de Osvaldo, ou...Não! Ele me diria. Mas será... Poderia ser filha de Janice com Osvaldo, e triste pensei “Poderia ser o meu filho, e dele as fotos espalhadas pela casa”. Mas não foi assim, pelo menos Osvaldo foi feliz perto de uma criança. Andei durante algum tempo, vendo os progressos da chácara. Estava tudo muito bem disposto, acho mesmo que muito próspero.

         Voltei para casa, fui à cozinha e como alguns pastéis quentes, certamente Janice os preparara para o jantar. Voltei ao quarto e adormeci pensando na felicidade perdida. Quando despertei o sol já havia se posto. Ouvi uma voz infantil e melodiosa, deveria ser da menina das fotos.

         Lentamente levantei e me pus a caminho da sala de jantar, desta vez, mais tranqüila pude observar a aparência da casa. Bem cuidada, certamente pelas mãos de Janice, mas ainda assim reconheci os mesmos traços de outrora. Ri, ao sentir a sensação de ciúmes ao pensar em como Janice cuidava de tudo com carinho, especialmente do meu marido.

         Fui em direção ao cheiro bom de comida. Janice estava ao fogão.

         --O jantar estará pronto em pouco tempo, não será um banquete como os da cidade, mas Osvaldo nunca reclamou.

         Não resisti ao deseja de desarmá-la e falei gentil:

         --Os pastéis já provei, uma delicia, sempre gostei de comida caseira. Na cidade grande se como muita porcaria. O cheiro está muito bom, me é familiar, acho que reconheço.? Posso provar?

          Consegui surpreende-la.

         --Não é nada de mais. Uma carne de sol com mandioquinha. O prato preferido da menina. Osvaldo não gosta muito, mas como Beatriz vem uma vez a cada semana procuro fazer algo especial para ela.

        Respondi:

        --Engraçado este também é o meu! Ela me olhou profundamente neste instante

       --Eu sei. Osvaldo sempre fala que vocês se parecem muito.

         Não consegui conter a curiosidade:

       --Beatriz! Bonito nome. Quem é a menina?

        Rapidamente Janice pegou um prato de um caldo fumegante e saiu apressada dizendo:

       --Licença, mas Já esta na hora da sopa de Osvaldo. Pode esperar na sala de jantar, já lê servirei.

       Estranhei a mudança de atitude, mas sabia que ele não se agradava muito de mim. Tinha de fazê-la compreender que eu não era uma rival. Quando voltou parecia não notar minha presença, simplesmente dispôs o jantar sem falar nada. Saiu em seguida, com um prato servido que deveria ser para a tal Beatriz.

         Saboreei a comida vagarosamente, fazia dias que eu não comia tão bem. Algum tempo depois Janice voltou e disse que Osvaldo me esperava. Como já havia terminada levante da mesa e fui em sua direção. Notei que ela retesou o corpo. Peguei em sua mão e disse:

          --Obrigado por cuidar do meu marido com tanto carinho! Você deve ser uma mulher especial. Certamente partilhou a dor de Osvaldo sem pedir nada em troca. Mas uma vez agradeço por tudo.

          Ela retirou a mão rapidamente e falou:

         --Não precisa agradecer, eu fiz por amor e não por obrigação. Realmente nunca pedi nada em troca, somente a proximidade de Osvaldo me bastava, acostumei a amar de longe, crescemos juntos na fazendo do pai dele, eu sempre o amei sem esperança de ser correspondida. E tem a menina que amo como se fosse minha. Esta é minha família.

        Não me dei por vencida:

       --Pois é justamente por teu amor que agradeço. Obrigado por dar o que eu não fui capaz, por compreender a dor do homem amado, enquanto q eu jamais fui capaz disto.

        Vi lágrimas em seus olhos e continuei:

      --Não vim aqui em busca do que perdi Janice, mas sei que compreenderias se fosse o caso. Além disso, como podes ver não há mais tempo, sabes que Osvaldo não viverá muito tempo. Não pense que me alivio com isto. Eu sempre o amei, só não fui capaz de compreender isto naquela época e agora é tarde demais. Antes de partir novamente contarei a você minha parte nesta história. Mas peço para juntas fazermos felizes os últimos dias do homem que amamos.

      Janice me abraçou chorando e saiu correndo. Subi ao quarto de Osvaldo.

 

VIII

 

    Quando entrei no quarto foi com emoção que presenciei Osvaldo abraçado á uma menina de longos cabelos escuros. Quando esta virou para mim sorriu com seus belos olhos verdes, como os de Osvaldo. Aquele sorriso mexeu com o mais profundo de meu ser, fiquei sem palavras ao ver a menina correr para mim, abraçar-me e dizer olhando para meu marido:

      --A moça bonita do quadro! Ela parece mesmo um anjo mesmo papai.

      Virou-se para mim e disparou:

     --Papai sempre dizia que eras o anjo da vida dele e que um dia voltaria para casa! Sei muitas coisas de ti, papai sempre me falava do tempo em que te conheceu.

     Sorri com emoção e senti que alguma coisa mudaria em minha vida naquele momento. Mas a menina Beatriz continuou a falar:

     --Boa noite! Sou Beatriz, e estudo durante a semana no internato na capital., mas agora estou de férias. Papai diz que uma menina precisa estudar para poder um dia se virar sozinha na vida, e não sofrer se um dia ficar só no mundo.

     Pensei que desmaiaria ao ouvir aquilo, tive de sentar em uma cadeira próxima.  Osvaldo, então, interrompeu o falatório, chamou a menina.

    --Minha filhinha, agora o pai precisa conversar com o anjo. Vá para o seu quarto e volte quando eu chamar. Dê-me agora um bom beijo e aguarde.

    A menina ia saindo e súbito voltou, pulou em meu pescoço e estalou um beijo em minha face. Surpreendi-me com aquilo, mas foi a sensação mais gostosa da minha vida.

      --Desculpe mais papai diz que quando nossos impulsos não prejudicam ninguém devemos seguir, para não arrepender-nos depois.

       Logo após isso saiu correndo. Nem tive tempo de pensar em suas palavras, pois Osvaldo chamou-me para mais perto, fui e segurei a sua mão e ouvi-o dizer:

      --Naqueles dias fatídicos lembra que falei de uma surpresa bela te aguardava em nosso lar?

        Um estranho arrepio correu meu corpo. Assenti com a cabeça.

     --Peço que, por favor, não me interrompa. Parece que estou me esvaindo aos poucos e quero esclarecer tudo logo de uma vez.

       Apertei a magra mão e esperei que continuasse.

     --Nem sei por onde começar, mas é preciso resolver esta situação. Bem...durante muito tempo te procurei desesperadamente, mas isso já sabes. Você sabe nosso menino morreu, está enterrado aqui mesmo na chácara em um lugar especial. Desculpe-me não tive tempo de falar, fugistes antes.

      --Não foi somente pelo meu grande amor que busquei durante muito tempo. Também busquei a dona deste lar. Tinha também Beatriz que precisava da mã...

      Não o deixei continuar, levantei bruscamente. Que loucura era aquela, eu não tinha outros filhos, meu menino havia morrido. Não! Não podia crer na desconfiança que me ia à alma.

       --Por favor, Osvaldo não me torture, o que quer dizer com isso. O que tem Beatriz a ver com nossa história?

       --Fugistes antes que eu pudesse falar. È que a menina é nossa. Nossa! Entendeu.

      --Para com isso, eu não mereço!

      --Sim meu amor é verdade! Foram dois bebês que vieram ao mundo naquele dia, infelizmente Deus deixou apenar um ficar conosco.

      Ao pude mais agüentar e gritei:

     --Como? Como isso aconteceu? Maldito! Quer por certo me castigar! Por que não me contou. Deixou-me partir sem ao menos saber que tinha uma filha. Eu vivi vazia todos estes anos, enquanto certamente rias da minha infelicidade. Maldita hora em que te encontrei.

     Osvaldo parecia que ia morrer naquele momento e com muita dificuldade falou:

     --Por favor, deixe-me continuar, não me culpe outra vez, pelo que não fiz. Não se precipite mais novamente.

      Enxuguei as lágrimas e esperei que falasse.

     --Cheguei, naquele dia, durante a madrugada e logo te vi desfalecida, percebi logo o que ocorrera. Não imaginas como me amaldiçoei naquele momento. Com ajuda do velho Bento a levei para a caminhonete. Não sei como venci tão rápido o percurso, não daria tempo de chegar a um hospital, sabes que não tínhamos isso por aqui naquela época. Então levei a ao único lugar que sabia. A casa da irmã do bento, a mulher que também me trouxera ao mundo.

      Neste momento ele parou e respirou fundo, como buscando suas últimas forças para continuar. Prosseguiu.

      --O casão era muito sério, tive de escolher entre meu maior amor e meus filhos. Desculpe-me se errei, mas optei por ter-te comigo, pois poderíamos ter outros filhos. Mas quase perdi todos. Foi pro um milagre que as duas sobreviverem. Ficastes adormecida durante dois dias, tamanha era sua debilidade. A menina, segundo aparentava, não sobreviveria. O tempo passou e melhorastes, mas a menina ainda não estava bem. Então optamos por não lhe falar nada, até que estivesses suficientemente fortalecida para receber a noticia.

     Mais uma pausa para fôlego, no que eu aproveitei e perguntei:

     --Mas onde ela estava? Eu nunca ouvi nenhum choro, nada.

     --Levei a, assim que foi possível para o hospital da capital. Mas não era possível levar-te junto estavas muito fraca. Bem, o quadro começou a reverter se, e aos poucos a nossa pequena se fortalecia. Então decidi, juntamente com os médicos, que já era possível falar lhe tudo.  Então resolvi fazer a surpresa da qual falei lhe naquela noite. Queria trazer-te para casa e a levar ao quarto da menina.

     Osvaldo neste momento parou passou as mãos em meu rosto, secando minhas lágrimas. Falei lhe então:

     --Quer dizer que durante este tempo todo eu tinha uma filha e nunca soube. Eu fugi sem saber da verdade, sem saber da existência de um ser precioso para mim. Minha covardia e meu próprio orgulho me destruíram.

      Neste momento o pranto evoluiu. Osvaldo esperou que me acalmasse e perseguiu:

     --Sei que tenho uma enorme parcela de culpa, fui um idiota em não revelar lhe nada, mas eu temia pela tua vida. Perdoe-me, por favor! Não sabes como me culpei, tinha certeza de que se soubesses não terias partido. Quando voltei para buscá-la na manhã seguinte quase não suportei a dor quando li o bilhete deixado. Tive a certeza de que me odiavas demasiado para fazer uma coisa dessas.

      Uma onda de lágrimas saiu aos nossos olhos. Porém firme Osvaldo se recuperou.

       --Busquei todas as informações possíveis, até que desisti. Porém quando adoece e soube que a morte era inevitável iniciei as buscas tudo novamente. Mas ninguém sabia de nada. Eu rezava todas as noites para ter uma noticia se quer, não queria morrer sem pedir perdão pelo mal que fiz. E, o principal, Beatriz tinha o direito de saber de sua mãe, ela é uma menina experta, vai entender. Sabe muitas coisas sobre tua vida, somente não sabe que é a mãe dela. Mas sabe que tem uma, e que um dia ela voltaria. Na realidade eu mesmo alimentei isso em seu pensamento, pois tinha esperança de tua volta.

      --Mas Osvaldo, e se eu não tivesse vindo? Eu quase não vim. Eu nunca saberia.

      --Eu intuía a tua volta. Mas se não fosse o caso e revelaria tudo à Beatriz e tem Janice, que cuidaria da menina e velaria por ela até que fosse capaz retomar as buscas pela mãe, quando quisesse.

      --Ah Osvaldo! Por que tinha de ser assim, poderíamos ter sido tão felizes, éramos tão jovens e tínhamos um futuro pela frente, era só questão de conversar e se entender. Como fomos imprudentes. Perdemos um grande amor e eu uma filha. Como podemos ser tão radicais. Como eu pude fazer isso!

     --O passado não retorna mais, para não é impossível reparar os erros. Mas morro agora com a sensação de que fui amada e amei. E vou mais tranquilo, pois sei que Beatriz terá a chance que eu não tive. A de ser amado incondicionalmente por ti. Nosso amor existiu apesar das mágoas, ele existiu, e isso me conforta muito.

     Limpou as lágrimas e falou:

    --Agora poderás cuidar de sua filha e dar todo o carinho que tens guardado no peito. Se existe uma vida depois da morte eu velarei por vocês.

    Como que a esperar o fim da conversa, Janice entrou com Beatriz. Sorriu para nós e is retirar se, mas eu a impedi:

    --Janice! Fazes parte desta história então é justo que fiques.

     Com olhar agradecido ele sentou se em uma cadeira. E Osvaldo falou:

    --Janice, minha fiel amiga, perdoe-me por não dar o sentimento que mereces, mas sabes que é impossível mandar em um coração, mas és uma mulher especial e maravilhosa. Faço-te um pedido, nossa menina vai passar por muitas transformações em sua vida, então peço que a ajude neste momento. A mãe deve decidir sobre seu futuro, acate o que ele desejar, e esteja sempre pronta para ampará-las.

    Janice assentiu, olhou para nós e sorriu, naquele momento eu senti ter ganhado uma boa amiga. Porém o bom anjo de Osvaldo não suportou a situação e saiu aos prantos do quarto.

     Osvaldo chamou Beatriz e falou:

      --Filha! Luz da minha vida, o pai terá de partir, Deus o chama, sabes como é isso quando o mestre quer, ele leva e nada se pode fazer. Mas não se preocupe, não ficarás sozinha. Nosso anjo voltou e desta vez para sempre. Ela vai contar lhe por que partiu, acredite em tudo que ela disser. Ela é sua mãe, eu te disse que um dia voltaria para casa. Não tenha medo, de agora em diante ela vai te acompanhar e cuidar de ti. Agora leve tua mãe ela vai te explicar tudo e coloca-la para dormir. Eu amo muito as duas.

      Entre lagrimas e suspiros, beijamos Osvaldo e saímos.  Já no bonito quarto cheio de bonecas abracei-me à menina e extravasei toda emoção dos últimos dias. E toda dor dos últimos anos.

      --Filhinha me perdoe por tudo. A mãe fez coisas terríveis, te contarei agora, se não estiveres com sono...

     Beatriz assentiu rapidamente, então comecei meu relato...

     --Entendes que mamãe não sabia, senão jamais teria partido?

     --Eu entendo isso sim. Mas não entendo por que os dois agiram assim, sem falar nada um para o outro. Logo o pai que sempre fala para dizer o que pensamos.

    --As coisas dos adultos são muito complicadas, ou melhor, os adultos complicam as coisas.

    Vi que a menina já estava sonolenta, então dei lhe um beijo e um abraço, e fui saindo do quarto. Ela chamou-me:

      --Mãe! (amei ouvir pela primeira vez aquela palavra)

      --Sim meu amor?

      --Será que Deus ao vai deixar o pai ficar mais um pouco em casa?

      --O mestre sabe o que faz. Mas tenho certeza que seu pai ainda viverá muito.

      Soprei lhe um beijo e sai.

 

IX

      Voltei ao quarto de Osvaldo, e o temor de Beatriz se confirmava. O pai não viveria muito tempo, acho mesmo que não passaria daquela noite, tamanha era sua agitação. Janice estava com ele. Junto a cama uma pequena bacia cheia de sangue, a cena era muito triste. Aquele belo homem, o homem que eu amava estava chegando ao final da vida.

 

       Sentei me junto a eles, segurei as mãos de ambos. Depois encostamos Osvaldo nos travesseiros, ele rapidamente adormeceu, ficamos então a velar seu agitado sono. Durante a madrugada Janice, por insistência minha, foi deitar se. Prometi que a chamaria se algo acontecesse. Osvaldo pareceu aquietar se, então eu adormeci. Acordei horas depois com o barulho de sua tosse terrível. Fiquei apavorada, a cada vez que tossia uma porção de sangue saia de sua boca.  Corri e o abracei, encostei sua cabeça em meu peito, assim ficamos um bom tempo, até que vencidos pelo sono adormecemos.

      Já amanhecia quando Janice entrou no quarto, ajeitei o corpo magro de Osvaldo e levantei, ele abriu os olhos um instante e novamente fechou os. Janice tomou meu lugar, fui em busca de alguma coisa para comer. Antes de sair, porém, ela chamou me.

      --Deixei uns papeis para que olhes, dias antes de vires ele falou-me que em caso de sua morte eu deveria procurá-la em entregar-te tudo. Mas como viestes acho que posso fazer a entrega agora. Estão na sala de jantar, encima da mesa.

     --Que papeis são estes? Algum documento de Beatriz?

     --Sinceramente eu não sei, mas depois que soube de seu paradeiro ele mandou chamar um tabelião. Disse-me que ficaria encarregada de fazer chegar estes documentos em suas mãos, caso não voltasse para cá. Vá vê-los e quando o doutor chegar traga-o até o quarto.

    --Bem verei o que é!

     Já na sala me pus a ler os documentos. Uma surpresa! Havia uma carta endereçada á mim.

      28 de Julho de 198...

      “Amada..., não sei em que situação esta carta chegará a suas mão, espero somente que chegue. Infelizmente não quis o destino que viéssemos a construir um mundo de sonhos, mas certamente ele poderia ter existido se não fosse nossos próprios erros.

      Peço-te perdão pelos meus erros e perdôo-te pelos teus, pois ambos cometemos muitos erros e o maior de todos foi não abrir o coração um para o outro. Mas jamais imaginei que nosso orgulho nos levaria a tanta infelicidade, pois os olhares mal compreendidos e as palavras mal expressadas (ou nunca ditas) foram os principais motivos de nosso infortúnio.

       Neste ponto ele relata sobre o nascimento de nossos filhos. E continua com palavras repletas de emoção.

       Espero que realmente me perdoe por tudo, pois na vida existem caminhos que mesmo não querendo percorrer, somos empurrados a eles. Rezo á Deus também para que eu mesmo possa dizer lhe estas palavras e ter a oportunidade de ver teu olhar uma última vez”.

        Eu sempre te amei, mas infelizmente tive medo de expressar meus sentimentos, fui covarde e tive medo de uma rejeição, por isso me afastei tanto. Arrependo-me por isso.

       Nossa filha é uma menina especial, que foi o consolo da minha vida e também era da sua. Eu sei que saberás conduzi-la pelo melhor caminha possível. Recupere o tempo pedido com ela.

       A emoção tomou conta de mim ao ler estas palavras e não pude mais continuar, e na realidade não precisava, pois já sabia de tudo isso. Já sabia que a infelicidade foi feita por nos mesmos.

       Havia outro papel que parecia uma espécie de testamento. Osvaldo havia preparado tudo de forma que seu patrimônio, muito considerável, estivesse em boas mãos.

       Tudo o que possuía dividia entre mim, Beatriz e Janice. A metade para a filha e o restante dividido entre mim e Janice. Deixou também alguma coisa para seus empregados. Depois dos aspectos legais Osvaldo escreveu algumas linhas, mostrando-se um homem prudente, pois assegurou de todas as formas o futuro de nossa filha. 

       28 de Julho de 198...

      “Espero que a disposição de meus bens agrade a todos e não cause constrangimentos a ninguém. Um dos principais elementos que quero aclarar é o que diz respeito à divisão entre Beatriz, Janice e minha esposa: Em caso de esta última não ser encontrada, ou até que seja, Janice deverá ser a tutora legal de Beatriz, e assim gerir todos os seus bens (incluindo a parte relativa a minha esposa). Ficando assim Beatriz como minha única herdeira,  excluindo a parte, já citada, que caberá a Janice. Beatriz terá uma renda considerável até que atinja a maioridade, quando deverá passar a gerir seus próprios bens.

      Somente em caso de morte de Janice e na ausência da mãe, Beatriz, passará esta, se ainda menor de idade, a tutela das irmãs de caridade. “De imediato seus bens passarão a fundos de pensão, até que atinja a maioridade e passe a administrar tudo o que possuir.”.

     Caso queiram continuar na chácara, independente da situação, aconselho manter Danilo na administração, pois este é um rapaz fiel e dedicado e saberá administrar tudo como se fosse eu mesmo. Além disso, tem por mim, e eu por ele, um amor fraternal e jamais fará algo que as prejudique.

                                                                                               Sem mais Osvaldo.

      “Meu deus ele sabia que iria morrer!”, pensei. Dispôs tudo da melhor forma possível, pensou em todos, incluindo a mim, que fui uma ingrata. Guardei tudo, e me pus a olhar o vazio.

       O médico chegou, o acompanhei até o quarto. Examinou Osvaldo e pela expressão do seu rosto não havia nada a fazer. Meu amor estava mesmo perdido para sempre. Após os exames, Osvaldo estava inconsciente, o médico levantou vi no seu olhar que ele precisava falar a sós, comigo ou com Janice. De tão aflitas o acompanhamos juntas.

       --Infelizmente não há nada a fazer, tudo que era possível foi feito. È uma questão de tempo, para o sofrimento acabar. Eu sinto muito, era meu bom amigo! Sendo possível ficarei aqui esta noite.

      --Sim fique! Assim estaremos mais tranquilas. Agora mesmo arrumarei tudo, para que se instale. Ah! Desculpe doutor Geraldo, esta é a esposa de Osvaldo.

      --Fico feliz que o último anseio de meu amigo se tenha realizado. Não fique surpresa, eu sei de toda a história de vocês. Como eu disse éramos bons amigos, e sinto muito que se reencontrassem tão tarde. Bem! Voltemos ao nosso doente.

       Daí em diante a vigília foi longa, durante alguns momentos Osvaldo se fazia lúcido, mas rapidamente perdia novamente os sentidos e a cada gemido mais profundo estremecíamos de pavor. A tristeza era profunda no rosto de todos nós, principalmente de Beatriz, que não quis arredar o pé do quarto do pai.

       Em um momento de lucidez Osvaldo chamou a mim e Beatriz, era visível seu esforço em proferir algumas palavras.

 

X

      --As mulheres da minha vida! Estou feliz em vê-las juntas, esperei tanto por isso. Agora posso morrer em paz, sei que uma cuidará da outra. Deixei tudo arrumado, não precisarão preocupar-se com nada, o futuro financeiro de vocês está assegurado, isso me deixa tranquilo.

      --Osvaldo não se canse, isto não é o momento para falar disso. Nada disso importa agora, o que queremos é que estejas bem.

      --Meu momento chegou, eu não vou melhorar. Mas me conformo com os desígnios de Deus. E agradeço a Ele por me dar forças para falar com vocês nestes últimos momentos. Não quero lamentos, é necessária a partida de vocês daqui enquanto é tempo, não quero que me vejam assim. Guardem de mim uma lembrança bonita e não o homem farrapo que sou agora.

      Foi Beatriz quem respondeu primeiro:

      --Pai eu não vou te deixar nunca, cuidarei sempre de ti. Disse Beatriz, que o abraçou e logo saiu, não contendo as lágrimas.

      --Osvaldo como pode pensar que te abandonaríamos. È verdade que uma vez fui louca a este ponto, mas isso não se repetirá jamais. Precisas de mim neste momento, e aqui estarei. Não me importa tua aparência externa, pois sei que seu coração é o mesmo, senão melhor do que antes. Não seja cruel me afastando mais uma vez da tua vida.

     --Eu compreendo, mas pense em Beatriz, não merece ver o pai neste estado. Pois é questão de dias, ou talvez horas, e não mais poderei ficar neste mundo.

     --Não! Beatriz é mais forte do que pensas, não julgue outra vez as pessoas. Não faça isso novamente, não nos afaste.

     --Tudo bem, como queiram. Eu só queria poupá-las de cenas desagradáveis. Mas nem para isso tenho forças para lutar...só não esqueça que eu as amo muito e ...

     Não pude evitar e não deixei o terminar a frase, rapidamente colei minha boca em seus moribundos lábios frios. Senti, então que seu corpo amolecia e a tosse novamente o acometeu. Golfadas de sangue saiam aos borbotões. O médico o acudiu, examinou e vi a tristeza em seus olhos, demonstrando que era chegado o fim. Ficamos como que paralisados, olhando todos para o corpo, já sem vida de Osvaldo. Respirei fundo, passei as mãos em seu rosto, fechando, para sempre, os belos olhos verdes. Do bolso tirei um lenço e cobri o rosto marcado por tantos sofrimentos.

      De súbito Beatriz entrou no quarto, olhou para o rosto coberto do pai e desatou em um convulsivo choro.  Sem saber o que fazer olhei para Janice, como a suplicar sua intervenção, mas esta estava tão aterrada quanto a menina. Então usei pela primeira vez meu instinto de mãe abracei a pequena, nossas lagrimas se misturaram e o pranto dela acalmou, porém a dor no coração era visível.

     O médico me olhou e entendi que queria nossa saída do quarto, peguei a pequena pela mão e fomos saindo, mas rapidamente Beatriz se voltou correu ao corpo do pai, descobriu o rosto e o beijou, sem importar-se com o sangue que misturava a suas lágrimas.  Voltou, e pegando em minha mão guiou-me para fora do quarto. Janice nos seguiu.

      Levamos beatriz para seu quarto, deitamos com ela na cama, entre lágrimas e soluços esta adormeceu. Vagarosamente caminhamos até a cozinha, Janice serviu-nos um forte café, o que nos reanimou. Repentinamente Janice quebrou o silêncio. 

      --Fui criada por uma tia de Osvaldo e quando ela morreu deixou tantas dívidas que fiquei na miséria. Ela não tinha filhos, eu nunca soube dos meus pais, fiquei sozinha no mundo. Eu já conhecia Osvaldo, pois este era muito apegado à tia e estava sempre por lá. No dia do enterro contei a Osvaldo tudo, expliquei meus temores de ficar perdida no mundo. Ele prontamente me tranquilizou, disse que realmente precisava de alguém de confiança em sua casa, já que tinha uma filha de um mês de vida. Vendi o que me restou, a casa e alguns objetos e vim para este lugar, amei beatriz desde o primeiro momento, e amei Osvaldo também.

      Continuei observando Janice em silêncio e esta continuou

      --Sabia que este amor jamais seria correspondido, pois Osvaldo venerava sua imagem, o quadro da sala era como sua presença viva nesta casa. Ele nunca permitiu uma aproximação minha, e sempre respeitei. Bem, nunca soube direito o que aconteceu entre vocês, somente sabia que tinhas partido deixando o bebê para traz. Por isso te odiei tanto, depois Osvaldo me explicou tudo. Peço-te perdão pelas palavras rudes que falei.

      --Não há o que perdoar Janice, todos têm o direito de errar.

       Como se não ouvisse nada do que eu falei, ela continuou:

      --Agora não sei o que será de mim. Certamente esta casa será vendida, é um seu direito, pois é sua herdeira legal, mas, somente peço para esperar um pouco, até me ser possível encontrar alguém para me acolher, eu sei fazer de tudo um pouco e não será difícil encontrar trabalho. Sei que não é o momento para falar nisso, mas eu me desespero em saber que tenho o futuro tão incerto assim.

      Olhei para aquela mulher que amou meu marido e criou minha filha com muita dedicação e disse:

      --Janice, Osvaldo deixou seu futuro financeiro bem assegurado, você terá uma boa renda. Mas mesmo que não fosse assim, jamais abandonaria quem foi  a mãe da minha filha durante tanto tempo, e certamente o amor que Beatriz lhe tem é suficiente para eu leva-la para onde for.  Você irá comigo e Beatriz para onde formos, ou se poderá ficar nesta casa, pelo tempo que quiser, mas nunca ficará sozinha nesta vida.

     Com os olhos marejados ela abraçou-me e disse:

     --Por isso eras tão amada. Osvaldo sempre dizia que um dia o anjo dele voltaria.

     Não tive tempo de responder, pois neste momento o médico entrava na cozinha.

 

XI

 

     --Sei que demorou um pouco, mas deixei tudo preparado. Irei agora, chamarei a funerária na cidade, sei que o desejo de meu amigo era ser enterrado ao lado o filho. Esperaremos amanhecer para começar a cerimônia.

     Foi Janice que respondeu:

     --Sim, era isso mesmo. Bem então acho melhor preparar tudo, logo esta casa estará cheia de gente, pois Osvaldo era muito querido.

     --Até logo então senhoras. Disse o médico e saiu.

     Janice, entre desolada foi aos preparativos. Eu fui ao quarto de Beatriz que ainda dormia, deitei ao lado da menina e logo adormeci. Acordei com o barulho das pessoas que chegavam. Levantei, acordei Beatriz, a menina logo começou a chorar, abraçada em mim. A acalmei com todas as palavras de carinho que conhecia, limpei suas lágrimas e descemos.

       A casa já estava repleta de pessoas, todas muito tristes, realmente meu marido era uma pessoas especial, que eu tinha custado tanto em compreender. Janice chegou abraçou Beatriz e falou para mim:

       --Ele sempre foi um homem bom! Uma pena ter morrido tão jovem, vou sentir muito sua falta. 

      Não falei nada, até porque não tinha o que falar. Só tinha vontade de chorar, mas tinha de ser forte para confortar minha filha.

        A cerimônia foi longa, a cada instante chegava alguém e chorava sobre o caixão. No final do dia o corpo foi transportado, na velha Ford dirigida pelo inconsolável Danilo, até o local do sepulte. Emocionei-me, pois ia conhecer o lugar em que repousava o pequeno corpo do meu bebê. Surpreendi-me com o que vi.

      Creio que era único lugar bonito naquela terra tão seca. O local era cheio de árvores e flores. Perto de uma roseira, com belas rosas amarelas eu notei um pequeno retângulo pintado de branco.  Sim era ali que estava meu bebê. Aproxime-me e notei, não sem uma profunda emoção, que Osvaldo tinha dado ao bebê a versão masculina do meu nome. O anjinho foi batizado de Juliano. Peguei uma flor, das tantas que trouxera para Osvaldo, beijei e coloquei sobre a pequena tumba branca.

       O rito do sepultamento foi rápido. Antes de fecharem o caixão e baixarem a terra o corpo, beijei pela última vez os lábios frios do homem que tanto amei.  Janice, beatriz e eu retornamos abraçadas e caladas para a casa, imersas em nossos próprios pensamentos. Ao chegarmos fomos para o quarto de Beatriz, confortamos a menina até que dormisse. Depois Janice e eu nos dirigimos cada uma a nossos quartos. Trouxera poucas coisas e em pouco tempo arrumei tudo,  queria partir o quanto antes, pois as lembranças estavam me assombrando demasiado. Era preciso dormir e foi o que fiz.

      Janice entrou em meu quarto, ao amanhecer, e sem jeito disse ser preciso arrumar as coisas de Osvaldo e decidir o que faria com tudo. Ao que respondi:

      --Janice! Creio que não tenho direito em dispor das coisas de Osvaldo, eu não sei dos seus desejos, conhecias melhor do que eu. 

     --Podemos compartilhar esta tarefa juntas então, pois não conseguiria fazer sozinha, as lembranças serão doloridas. Sei de alguns desejos de Osvaldo sim.

     Fomos ao quarto de meu marido. Não consigo conter as lágrimas ao recordar. Segundo Janice as roupas deveriam ser distribuídas entre os empregados da chácara, assim como tudo que não quiséssemos.  Alguns objetos que pertencera a seus pais, já mortos, deveriam ficar sob a guarda de Beatriz.  Achamos por bem deixar Beatriz escolher com o que ficaria.

      Em uma caixa, bem no fundo de uma gaveta estavam muitas fotos. Dentre elas as do nosso casamento, não foi fácil segurar o choro ao ver, nas fotos, os olhares de felicidade dos nubentes. Com um vestido branco e simples eu segurava na mão um singelo buquê de flores naturais, e meu marido com um terno azul expressava nos belos olhos verdes a alegria do momento. Janice percebendo meu estado emotivo falou:

      --O vestido eu sei onde está, pois eu mesmo o guardei. Uma vez cheguei aqui e vi Osvaldo aos prantos com ele na mão, então eu o pedi para arejar, e escondi, pois sabia da tristeza que o acometia ao vê-lo. Está em meu quarto e se quiser eu posso buscar.

      --Não é necessário! As lembranças devem ficar guardadas no coração, então junte o vestido às roupas que serão doadas. Somente ficarei com estas fotos.

      --Eu entendo.

     --Janice gostaria de pedir lhe um favor. Quero partir o quanto antes, isto está me matando, não posso mais continuar. Gostaria que você ficasse e arrumasse tudo. Depois poderá ir ao meu encontro na capital, desculpe tal pedido, mas sei que és bem mais forte que eu, aguentastes tudo, ano após ano, ao passo que eu em alguns dias não estou a suportar.

     --Compreendo. Realmente eu gostaria de ficar um pouco mais. Tem muitas coisas que precisam de ajustes, alguns últimos detalhes em que doutor Geraldo me ajudará certamente. Os empregados, a dispensa e coisas assim. Isto é se me permitir fazer estas coisas.

     --Tens liberdade de agir como queira, pois desta casa sempre fostes a verdadeira dona.

     --Agradeço. A propósito, já sabes o que fará com este lugar?

     --O que achas que Osvaldo gostaria?

     --Sinceramente? Pois acho que certamente não gostaria que vivêssemos de lembranças dolorosas. Eu mesmo não suportaria ficar neste lugar, tão vazio agora. Mas devemos saber de Beatriz, não podemos arrancar a menina do seu lar. Há algum tempo doutor Geraldo demonstrou interesse nestas terras, quem sabe agora ele poderá ficar com elas, assim poderemos certamente voltar quando quisermos. E, além disso, seu coração deve saber o que fazer.

    --Certamente não faremos isso. Primeiramente sabermos a opinião da pequena. E, além disso, não precisamos decidir agora, pelo que li nos documentos de Osvaldo a chácara é produtiva e Danilo saberá bem administrar tudo.

    --Essa seria uma boa solução, viríamos quando quiséssemos, quando a saudade apertasse muito.

     Então falaremos agora com Beatriz. No quarto de minha filha uma cena triste se passava. A menina sentada, na cama e agarrava uma foto do pai, chorando convulsivamente. Olhou-me com os olhinhos inchados e disse:

    --Porque Deus não me deixou os dois. Antes eu tinha só pai e agora só mãe. Por que não tenho os dois.

    Abracei a forte e expliquei que pos vezes Deus fazia coisas que somente os adultos entendiam. E por isso um dia ela entenderia. Sem ter mais o que falar fui direto ao assunto.

    --Filha é preciso saber se iras comigo para capital ou ficará aqui com Janice. È claro que se decidires a acompanhar-me Janice irá também.

    --E a chácara? Quem cuidará dela? Vamos ter de vender tudo?

    --Só se quiseres, senão a manteremos e viras quando queiras.

    --Eu não sei, aqui está papai e meu irmãozinho. Não posso abandonar eles.

    Quando ouvi isto me senti a pessoa mais cruel do mundo. Como pude pensar em arrancar a menina do seu lar e das lembranças do querido pai. Apenas respondi que ela teria quanto tempo quisesse para pensar. A beijei e sai do quarto. Precisava também eu, colocar os pensamentos em ordem. Cheguei à sala no momento em que Danilo entrava.

      --Isto chegou para a senhora. A pessoa que enviou não sabia o endereço de forma que estava no correio. Diz que é para a senhora esposa de Osvaldo Sampaio da chácara nova esperança. Então é para a senhora mesmo. Um garoto veio trazer. Deve ter chegado há algum tempo, aqui vem tudo com atrazo. Boa tarde, e precisar é só chamar.

     Danilo saiu. Eu vi que o telegrama era de Paula. Curiosa, abri e me pus a ler.

     13 julho 198...

    “Chegarei amanhã. Não parta sem minha chegada”.

                                                                     Paula.

 

      Pelas contas Paula deveria estar chegando hoje, já era meio dia ela deveria estar chegando. Que haveria acontecido, por que Paula viria. Bem teria de esperar. O almoço foi em silêncio, não havia vontade de falar. Janice e eu mal tocamos no prato, já Beatriz parecia ter uma enorme fome, pelo menos estava se alimentando bem apesar da tristeza que lhe marcava o lindo rosto.

      De súbito a menina perguntou:

      --Quando vai embora mamãe?

      A pergunta me pegou de surpresa, principalmente pelo fato de ela ter dito “vai” e não “vamos”. Significa que tomou uma decisão e obviamente eu não a abandonaria uma segunda vez. Por mais dolorido que fosse ficaria com minha filha, tentaria esquecer as más recordações do lugar. Respondi:

       --Filha, ainda não decidi se vou. 

       Pareceu-me ver uma sombra de alegria no olhar de minha filha. Isso me confortou, mas me preocupava.  Foi neste momento que ouvimos barulho de um carro, saímos para ver e realmente não errara nas contas. Paula estava chagando, a olhei aflita, mas seu sorriso largo logo demonstrou que nada grava acorrera.

       --Minha amiga, o que lhe traz por aqui? Saudade da minha pessoa, claro.

       --Certamente não vivo mais sem tua presença. Falou Paula abraçando-me.

       Bem faço as apresentações:

      --Janice, o anjo deste lugar, a mulher que cuidou de meu marido durante tanto tempo.

      Claro que Janice sentiu-se sem jeito e Paula não entendeu nada.

     --Prazer Janice! Temos algo em comum. Eu, modéstia a parte, fui o anjo desta minha amiga.

    Janice sorriu mais aliviada. Então vi que os olhos sorridentes de Paula foram diretos sobre Beatriz. Esse era meu triunfo sobre minha amiga brincalhona. A isto ela não teria resposta.

     --E esta menina linda é minha filha Beatriz.

      Acertei. Bingo. Paula não teve o que dizer.

      --Muito prazer Beatriz, realmente muito linda sua menina.

      Silencio absoluto, somente quebrado pelo farfalhar das árvores.

      Resolvemos entrar. Certamente minha amiga morria de fome. Rapidamente Janice colocou mais um prato à mesa enquanto Paula ia lavra-se. Já na mesa ela me atirava olhares de indagação e eu fazendo que não entendia. Até mesmo por  não querer falar nada perto de Beatriz..

      Súbito o silêncio foi quebrado por uma pergunta embaraçosa da menina.

      --A senhora veio buscar minha mãe para ir morar na capital?

     Paula me lançou um olhar, eu disfarçadamente fiz uma negativa que foi entendida.

      --Não princesa, eu não vim buscá-la. Por sinal morarei por aqui, um tanto perto desta chácara.

     Agora o olhar de pasmo foi todo meu.

    --Bem amiga, temos muito para conversar. Vamos caminhar um pouco.

    E para Beatriz e falei:

    --Meu amor, peço-te uma rápida licença, pois preciso muito conversar com esta minha amiga.

    --Sim mamãe, enquanto isso visitarei meu pai.

    Fiquei preocupada.

    --Não é bom que vá sozinha, eu irei com contigo meu bem. Espere um pouco, já voltarei.

    --Estou com saudade, nunca fiquei nesta casa sem ele. Por favor, me leve para vê-lo depois.

     --Sim, eu a levarei. Enquanto isso fique com Janice. Voltarei em ouço tempo.

      A menina assentiu sorridente. Com Paula me dirigi ao jardim, sentamo-nos em um banco. Pelo olhar dela vi que ia explodir de curiosidade.

 

XII

      --Porque a menina não pode ver o pai? Onde ele está? E por falar nisso eu nunca soube que tinhas uma filha.

      --Osvaldo está morto, e eu também nunca soube de existência de Beatriz.

      Era demais para minha curiosa amiga e não fosse a situação difícil eu teria rido muito. Mas não era o caso. Comecei então minha narrativa, desde o momento em que conheci cheguei á rodoviária, até o recebimento do seu telegrama, incluindo a situação de Beatriz não querer deixar a chácara.

     --Em poucos dias nossas vidas mudaram tanto!

     --Nossa vida?

     --Sim “nossa”. Mas agora não quero falar sobre isso.  Fico feliz por ti, pena não ter tido tempo de viver sua felicidade perdida. E a relação com a menina, como é?

     --Ainda não sei direito como agir, tenho de forçar uma aproximação e acabar sendo intrometida. Está sendo muito difícil. Não sei o que farei, a única coisa que jamais farei é abandoná-la novamente.

     --Ela nuca foi abandonada, apenas não sabias de existência dela. Como dissestes foi o destino que desviou o caminha. Não se culpe. Bem, pelo que falastes que Osvaldo deixou-as muito bem, quanto a isso não haverá preocupação alguma.

      --Sim foi muito previdente pensando em tudo. Quanto a isso não tenho preocupações. O que incomoda é esta indecisão, ficarei sem problema algum, desde que isso faça a felicidade de Beatriz. Mas e o trabalho? Não posso ficar na inanição de viver de rendas, e nem sei tomar conta de terras.

      --E o tal Danilo, segundo o próprio Osvaldo ele é confiável. Podes ficar aqui e ainda trabalhar.

      --Como trabalhar! Onde? Apesar de ser sua assistente sou formada, mas onde conseguiria ma colocação por aqui.

      Desta vez Paula sorriu confiante e disse:

      --Com a pessoa que sempre trabalhou, é obvio. Tenho uma proposta para fazer-lhe.

      Olhei-a curiosa e surpresa. Ela continuou

     --Bem, logo após sua vinda para cá. A minha responsabilidade no escritório aumentou muito. Lembra daquele senhor, o dono da rodoviária, que esteve por lá? Bem, ele parece que incentivou a busca por legalização de terras neste lugar. Entre disputas de território e divisão e bens, pegamos tantos casos desta cidade e arredores que não estamos dando conta de fazer tudo. Decidimos ampliar os negócios e trazer uma filial do escritório para cá.

      --Uma filial neste lugar! Interessante. E isso a fez voltar correndo para cá, sempre pensou nisto não é mesmo.

     --Sim. Aqui sempre foi o meu lugar, de onde me afastei somente de corpo, pois a alma continuava presa a este sol tórrido. Mas pensei em sua situação, garanti que minha vinda não lhe tiraria o emprego, ficarias então a trabalhar em meu lugar. Já como advogada, assalariada, até ter dinheiro para uma sociedade, o que certamente com seu talento seria rápido.

     --Uma boa solução, mas sabes a falta que me farias. Pois além de minha chefa, é a minha melhor amiga, a única verdadeira que tenho.

     --Obrigado! Faço minhas as tuas palavras. Agora, dependendo do que decidires podes fazer aqui a carreira de advogada. Ao invés de ir para a capital podes ficar por aqui mesmo. Nas mesmas condições, mas com o dinheiro que entrará, pois os casos são muitos, poderás em alguns meses adquirir o suficiente para uma cota no escritório. E posso também hospedar-me por aqui, até encontrar um lugar para morar.

     --E realmente achas que eu a deixaria, morando na mesma cidade, ficar em outro lugar. Vais morar comigo certamente. Isto é...Se eu ficar, claro.

     --E vais ficar? Não quero pressionar, mas o tempo é curto para sua decisão. E, além disso, seus fantasmas não existem mais, somente as boas lembranças, do passado e dos últimos dias. Pois sei que vivestes alguma coisa de bom aqui. Senão jamais terias voltado. Estou errada?

      --Não estás muito certa. Eu, a principio, queria fugir dos fantasmas que eu “pensava” existir, mas eles já não existem, eu os criei com base em algo que não existia. Mas preciso de um tempo. Pode ser?

     --Certamente terá, mas não muito. Tenho apenas até amanhã, que será a entrevista com o suposto sócio que eu trarei para cá.

     --Ainda hoje te dou minha resposta. Agora vamos voltar, tenho de levar Beatriz até o túmulo de Osvaldo.

      Ao falar estes dois nomes eu já sabia a resposta, não esperaria até a noite. Já havia decidido.

     Vagarosamente voltamos abraçadas á casa.

XIII

      Chagando pedi à Janice para chamar Beatriz e Danilo. Quando ambos chegaram falei:

      --Chamei-os aqui, pois este é um assunto que deve ser tratado em família. É necessária a compreensão de todos.

      Observei a expressão no rosto de todos. Beatriz e Paula apreensivas, Janice tranqüila (o que eu decidisse estaria bom, maravilha de mulher) e Danilo um tanto sem jeito. Este último falou envergonhado:

     --Janice foi quem chamou, peço então licença para sair. Volto depois então.

     --Nem pense nisso Danilo, pelo que sei eras de grande confiança de Osvaldo. Ele especificou que a administração de tudo relativa à chácara se daria por suas decisões, o tinha como um irmão.

      Danilo quase chorando falou:

      --Osvaldo era meu porto segura, me ajudou quando aqui cheguei, agradeço a ele, onde estiver, a confiança que me teve. Pode contar comigo para tudo.

      --Eu sei Danilo, eu sei. Assim como sei que somos uma família. Antes eu fugi daqui, fiquei sozinha, encontrei Paula, minha irmã do coração. Hoje sou muito mais feliz, agora encontrei uma filha, e irmãos. Tenho uma família.

      O silêncio era quebrado somente pelos soluços abafados, e antes eu também começasse a chorar continuei o assunto.

      --A decisão que tomei foi mais fácil do que, a principio, imaginei. Com certeza todos aqui sabem a razão pela qual me ausentei daqui durante muito tempo, e também sabem por que voltei. O que importa agora são os motivos que me farão ficar.

      Respirei fundo e notei o brilho de alegria nos olhos dos meus amigos e de minha filha.

     --Sim. Eu vou ficar. Viveremos como uma família, unidos pela lembrança e a saudade de Osvaldo. Paula, minha sempre conselheira fez-me compreender que os fantasmas estão em meu coração e não neste lugar. Pretendo ser sócia de Paula, em seu novo escritório aqui na cidade, já que a bondade de Osvaldo vai me permitir, na parte financeira, adquirir parte da empresa na qual trabalho atualmente. Não é necessário fugir daqui novamente. Pois tudo que vivi me acompanhará para onde eu for.

      Beatriz pulou em mim e beijou-me como nunca houvera feito. Danilo encabulado correu e apertou Janice nos braços, esta com o rosto vermelho retribuiu o braço. Notei um brilho amoroso no rosto de Danilo, e compreendi. Roguei, em pensamento, para que fossem felizes juntos, que o amor de Janice por Osvaldo não fosse uma barreira a empurrando à solidão. Paula aproximou-se de mim e falou baixinho:

      --Sabia que tomarias a melhor decisão. Foi difícil eu sei, mas foi a melhor que poderias ter tido. Minha sócia.

      Sorri para ela. E para nova vida que se abria a meus olhos.

      Janice, feliz e sempre seguida de Danilo, foi preparar-nos um belo lanche. Nunca, desde que chegara, havia comido com tanto gosto. Em meio a tantas novidades e conversas alegres nem vimos o tempo passar, e percebi que Beatriz adormecera no sofá.  A levei para o quarto.  Voltei para a sala, Danilo já havia se retirado, Paula estava arrumando seus pertences no quarto e certamente deitaria cedo, pois no dia seguinte faria uma busca pela cidade à procura de um local para nosso escritório.

       Sai em busca de Janice, que estava a preparar o jantar. Ajudei-a e jantamos a sós, pois Paula, como eu pensara, preferiu estudar alguns processos e dormir.  Conversamos um pouco sobre nossas vidas e após o jantar lavamos a louça e fomos cada uma para seu lado, Janice para seu quarto e eu deitei-me na rede da varanda. Somente muito tarde recolhi-me, decidindo dormir com Beatriz. Nunca tinha experimentado sensação tão gostosa, pois ter minha filha nos braços era a melhor coisa deste mundo.

       Pela manhã acordei com um beijo, o beijo de minha filha.

      --Não foi mesmo um sonho bom. Estás mesmo aqui e desta vez para sempre. Eu te amo mamãe.

      --Sim para sempre e jamais sairei do teu lado outra vez. Pois és a luz que iluminou minha vida solitária.

      --Precisamos contar para papai e ao mano! Eles ficarão felizes que o anjo deles ficará na chácara.

      Saímos, a casa estava silenciosa, com as fortes emoções da noite anterior certamente Paula e Janice ainda dormiam. Somente Danilo era visto ao longe, no seu trabalho diário. A vida naquele lugar, no meu lar, ia voltar ao normal e no meu coração as coisas estavam resolvidas de uma forma que jamais imaginei. Dei graças por ter voltado.

      Fomos andando e conversando, era um bom momento para conhecer um pouco da alma de minha menina. Entre risos e carinhos chegamos ao nosso destino. Ajoelhamos-nos em frente às duas sepulturas e ficamos perdidas em pensamentos.

      Eu nunca poderia imaginar este momento. Antes meu coração odiava Osvaldo e eu jurei nunca mais voltar àquele lugar. E se não houvesse voltado não teria encontrado parte da felicidade perdida, digo grande parte porque o corpo do meu amor estava ali, naquela terra fria. Mas certamente sua alma estava no céu, feliz pela sorte dos seus entes queridos.

       Tudo que eu mais temia na vida era a solidão, e agora tinha uma família, filha e irmão de coração, e isso eu nunca ia perder. Jamais ficaria sozinha novamente. Agradeci Osvaldo por tudo o que me proporcionou, pois, deu-me de volta a alegria que eu mesmo perdi. Agradeci por nunca desistir de me procurar, ao passo que eu sabia onde encontra-lo e nunca voltei.

       Abracei forte Beatriz. Meu anjo, minha filha. E prometi para Osvaldo que amaria em dobro aquela menina, por ele e principalmente por mim que a privei da presença da mãe em um ato de loucura e orgulho.

      Mil vezes obrigado por tudo meu amor. Um dia fugi, por amor e por orgulho, jurando jamais voltar. Hoje estou aqui, pelo mesmo amor, no lugar de onde juro nunca mais sair.

 

FIM.

 


Autor: Gilciane Torres Sandrini


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