VELHICES



 

230 - VELHICES

 

Numa rodinha de pessoas, digamos, com garantia vencida,  na praça São Geraldo,acendera-se uma discussão acirrada.

-“Na idade em que estamos, não servimos mesmo para nada!”

-“Tem razão, é isso mesmo! “

-“O melhor seria mesmo partir, deixando que os filhos sigam a  sua vida”

-“ Eu acho que vocês são uns tolos! Ainda me sinto bem, sou útil, levo muito bem o meu dia-a-dia!”

-“Sim, e quem te leva ao médico, duas vezes por mês?”

- “As mesmas pessoas que eu levava, setenta anos atrás!”

-“Quem?”

-“Está surdo, homem? As mesmas pessoas que eu levava setenta anos atrás!, Meus filhos! Nada mais natural! Quando tinham uma tossinha, resfriado, gripe, febre, ou caiam da bicicleta, ou levavam uma surra dos colegas! Quem levava os seus filhos?

-“Minha mulher, claro! Eu estava trabalhando, não podia sair do escritório a qualquer hora, largar o serviço por coisinhas à-toa!”

-“Pois agora, agüente com essas coisinhas à-toa, porque é você  quem precisa...Peça para a mulher de seu filho; pelo trabalho feito antes...”

 -“Eu não acho que os filhos devam se incomodar conosco. Aliás já percebi certos olhares de esguelha, certos comentários em voz baixa,  entre meu filho  e minha nora, que me deixaram pensar....”

-“Fazer o quê? Morrer, sumir, desaparecer para sempre da face da terra?”

-“Olhe, até que não seria má idéia; deixava de dar trabalho e preocupação a todo o mundo; deixava de tomar um monte de remédios a toda hora...”

-“ É; esta dos remédios é outra coisa que não engulo. Vou ao médico e ele receita de tudo, para o coração, fígado, estômago, coluna, artritismo, pés inchados, sem falar da zona sul....”

-“Como o quê? “

-“Ah, você sabe! Depois dos sessenta, é da zona sul que se precisa cuidar...Um monte de pequenas coisas que podem dar errado. ...”

 -“Então, eu dizia: se me passasse um remedinho especial, de uma vez só, eu adormecia e acordava do lado de lá, tranquilinho, tranquilinho.”

-“É, mas o laboratório, o distribuidor, a farmácia iam sentir a sua falta!”

-“Também penso assim:  dão umas quirerinhas de aposentadoria para a gente, e esse dinheirinho volta todo, inteirinho, para a farmácia; às vezes, meu filho tem que juntar mais algum.... 

-“Mas, falando francamente, você se sente melhor, com esse monte de remédios?”

-”Vou lhe dizer: quando melhora de um lado, piora do outro...”

-“Quer dizer que você sente dores diferentes, a direita e a esquerda?”

-“Não, não! Eu quis dizer que melhora o fígado, mas dá um treco no estômago; ou quando acerta a respiração, complica a batida do coração; dos quatro remédios diários, tenho experimentado tomar dois e fingir que tomo os outros dois...”

-“ Quais?”

-“Sei eu lá, quais! Dois deles, ora! E acredite, sinto-me bem melhor. Você pode experimentar, também....”  

-“Pode ser, mas não tenho tanta certeza assim.”

-“O que eu acho é que a receita para continuar vivo é fazer só o de que não se gosta.  Se você gosta de fumar, pára. De beber, suspende. De comer carne, esquece; macarrão, nunca mais. E churrasco, feijoada, cerveja... qualquer coisa doce, qualquer coisa salgada....pense em quantas coisas perdemos... dá uma saudade!  Em compensação, tem saladinhas, verdurinhas, graminhas, matinhos, folhinhas tenras e chás...oh, quantos chás!... disto, daquilo e daquilo outro.... Pode até ser bom ....Mas tirou todo o gosto!”

- É isso mesmo. Nunca imaginei chegar a tirar um pedaço de  pão e ir comê-lo no quintal, escondendo-me  da minha neta..”

-“É por isso que digo: melhor cair fora, urgente!...”

-“Eu continuo não concordando. Agora mesmo, vou buscar meus netos na escolinha; são só três quarteirões e tenho que tomar cuidado, mas eles gostam de me acompanhar até em casa. Sentem-se importantes, assim.E continuo ensinando alguma coisa útil”

-“Mas espera aí: não é você que os leva para casa?: “

-“Não, não! São eles! E não os deixe saber que esta é toda uma brincadeira, porque eles têm que aprender que todos, em qualquer idade, sempre dependemos dos outros.  

-“Mas o que mais você faz, na vida?”

-”Descasco batatas, varro o chão, recolho a roupa na corda, atendo os evangélicos na porta, troco a água dos passarinhos, limpo a sujeira do cachorro, levo-o para passear. A empregada vai sentir uma falta danada, quando eu não estiver mais por aqui...”

-“E eu: fui executivo até o outro dia; sou economista e tenho até MBA; pensei: vou ensinar aos meus netos um pouco da matemática que conheço tão bem....Que nada, hoje está tudo diferente, Pitágoras morreu de repente; de enfarte, creio.  Quem está ai, reinando soberana, é a calculadora HP . Tive que renunciar; estou resolvendo  Sudoku...”

-“E eu então? Fui revisor de textos em vários jornais. Nada me escapava. Quando apareceram os corretores automáticos, resolveram me aposentar (azar deles, porque os corretores pegam cada truta!) . Aí resolvi ajudar os netos, em português. E estou aprendendo um bocado de coisas. O tempo todo me chamam a atenção:”Não, Vovô, agora não é assim que  se escreve!” É um tal de acentos que somem, de tremas que desaparecem, de hífens que estão e não estão... Parei. Estou lendo o jornal e anotando todas as besteiras que os revisores deixam passar... Dá para fazer um livro!.”

-“ Eu fiquei quieto até agora, só escutando as besteiras que vocês iam falando; confesso que me diverti muito. Mas agora, ouçam: em casa, fizemos a “hora da saudade”; em geral é quando todos estão menos tensos, e têm um tempinho livre. Sentamos em volta da mesa, falamos do passado; de quando o Henrique, meu filho, era criança; das pequenas coisas de que nos lembramos , ou de que só ele se lembra. Atiçamos a curiosidade dos netos, que perguntam como era; e paramos para explicar, todas as semanas, que U2 naquele tempo, era apenas um submarino e que televisão era em preto e branco; e meus pais nem chegaram a conhecê-la. E que não tinha avião para ir a todos os lugares; era ônibus, e em estradas de terra, esquivando-se das vacas no meio do caminho. Que tênis era só o jogo – e era jogo de rico. Todas as semanas tem alguma coisa de novo – perdão, de velho – para contar e comentar. Nós somos a História; somos dicionários e enciclopédias ,  quando se fala do passado. Para que lado acha que devem olhar os velhos?”

-“Para o futuro, meu amigo! Para o futuro! Que vai ser uma coisa brilhante e magnífica, apesar de tudo; o fim do mundo, só virá muito depois que nos formos; daqui a vinte mil anos, talvez; hoje ou amanhã,  não.

Então vamos ajustar os olhos  para essas distâncias, do hoje do amanhã; vamos viver, torcer, emocionar-nos, palpitar com as coisas que estão acontecendo  hoje, que vão acontecer amanhã. O resto é bobagem. “

-“Até amanhã, gente. Tenho aula de pintura às quatro.Está meio difícil segurar a mão que treme e enxergar os pormenores; mas se piorar, vou mudar de estilo: vou pintar tipo Picasso; assim ninguém entende de que se trata, ninguém enxerga defeitos e sou capaz até de papar algum prêmio!...”

  


Autor: Romano Dazzi


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