O personalismo de Emmanuel Mounier e sua influência para a compreensão do ‘homem integral’ na contemporaneidade



RESUMO

No presente artigo encontra-se diluídos nos parágrafos seguintes o esforço de mostrar que o ser humano é constituído de imanência e transcendência, as quais são indivisíveis, ou seja, não podem ser vistas separadamente sem que se perca o verdadeiro sentido da pessoa integral. O artigo pretende ainda relacionar a filosofia mounieriana, que trata do personalismo, com a filosofia de Jacques Maritain, na obra Humanismo Integral, mostrando alguns pontos que convergem para um mesmo ponto, que é mostrar o ser humano como um todo que não pode, em hipótese alguma, ser reduzido ao estado de coisa. Outro pondo de grande importância é apresentar algumas definições de pessoa como integralidade em contraposição ao individualismo que não permite que a pessoa, em seu sentido mais restrito se desenvolva na "comunidade" humana. Ainda dentro da elaboração deste trabalho acadêmico, discorrer-se-á sobre como se encontra a definição de pessoa na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Personalismo, individualismo, integral, pessoa, coisificação, imanência, transcendência.

ABSTRACT

This article is diluted in the following paragraphs the effort to show that humans are made up of immanence and transcendence, which are indivisible, ie can not be separated without losing the true meaning of the whole person. The article also relate mounieriana philosophy, dealing with personalities, with the philosophy of Jacques Maritain, Integral Humanism in the work, showing a few points that converge to the same point, which is to show the human being as a whole that can not, in case be reduced to the state of things. Another very important putting is to present some definitions of the person as whole as opposed to the individualism that does not allow the person in the narrow sense to develop the "community" human. Still in the development of this academic work, dircorrer will be on how to find the definition of person in contemporary society.

KEYWORDS: Personalism, individualism, whole, person, commodification, immanence, transcendence.

Neste artigo de conclusão de curso, requerido pelo Instituto Regional para Formação Presbiteral (IRFP), discorrer-se-á sobre o tema "o personalismo de Emmanuel Mounier e sua influência para a compreensão do 'homem integral' na contemporaneidade", em que serão esboçados os pontos principais de alguns pensadores a respeito de tal assunto, principalmente, Emmanuel Mounier e Jacques Maritain, objetivando mostrar que o homem é um ser com diversas capacidades e dimensões, e que por isso não pode ser analisado apenas de um ponto de vista, mas sim na sua integralidade. Nesse sentido, ter-se-á a visão de um homem espiritual, emocional e racional, ou seja, um homem em suas dimensões imanência e transcendência, fazendo-se necessário, portanto, reconhecer a irredutibilidade do homem a tudo aquilo que não o faz humano.

O principal foco deste trabalho será fazer um apanhado sobre o personalismo, filosofia de Emmanuel Mounier, que ressalta o universo pessoal do homem e a sua integralidade enquanto ser humano. Conceito que será aprofundado cotejando-o com o de "homem integral" de Jacques Maritain.

Ainda neste trabalho, será levado em consideração a grande e incontestável importância do outro para o processo de personalização do homem e da sociedade numa visão de comunhão e partilha. Em contraposição apresentar-se-á o valor do outro na contemporaneidade que é sempre visto como objeto e meio para se chegar a determinados fins, seja na economia, na política, bem como em diversas áreas da vida humana. Visto que, em certas ocasiões o homem é adotado como sendo uma máquina.

Outro aspecto de fundamental importância será apresentar a atualidade do personalismo de Mounier em contraste com o individualismo que assola a sociedade atual. A esse respeito, o filosofo francês Emmanuel Mounier (2004, p. 45) diz na obra O personalismo que "a pessoa só cresce na medida em que sem cessar se purifica do indivíduo que nela está".

Para alcançar os objetivos propostos acima, este trabalho será dividido em quatro partes após a introdução: A 1ª discutirá temática do universo pessoal, na qual se compreenderá melhor o personalismo e os conceitos principais envolvendo a pessoa; Na 2ª tratará da Pessoa e indivíduo, na qual se fará uma relação de oposição entre os dois; enquanto que na 3ª será apresentada uma relação entre o conceito Mounieriano de pessoa e o de integralidade em Maritain, onde se fará uma comparação e aproximação da filosofia de ambos, e por fim, chegar-se-á à conclusão, buscando realizar uma atualização do personalismo e sua influência na visão de homem, enquanto "pessoa integral na contemporaneidade".

3.O UNIVERSO PESSOAL

O termo "personalismo" é relativamente recente. Renouvier empregou-o em 1903 para classificar a sua filosofia, caindo depois em desuso. Walt Whitman usou-o nas suas Democratic Vistas (1867), e depois dele encontramo-lo em vários autores americanos. Reaparece na França à roda de 1930 para designar, num contexto muito outro, os primeiros estudos a que a revista Esprit e alguns grupos afins procederam, a quando da crisepolítica e espiritual que então alastrava a Europa. (MOUNIER, 2004, p. 13)

A palavra "personalismo" não foi criada por Emmanuel Mounier. No entanto, é um termo que, há muito tempo, fora empregada para classificar uma filosofia bem parecida com a que será delineada ao logo deste trabalho acadêmico. Fator que não será aprofundado, uma vez que não se pretende entrar em detalhes a respeito das primeiras utilizações do termo.

O personalismo utilizado hoje está longe de ser algo novo ou constituir alguma novidade, pois, como afirma Mounier (2004, p. 13), "o universo da pessoa é o universo do homem". O personalismo atual, como ele próprio diz, insere-se nesta longa tradição.

Emmanuel Mounier faz do personalismo uma verdadeira filosofia acrescentando conceitos, lógica, esquemas unificantes para que ele não viesse a diluir-se com o tempo como aconteceu com os anteriores. Por isso, Mounier (2004, p. 14) não se cansa de dizer que "O personalismo é uma filosofia, não é apenas uma atitude. É uma filosofia, não é um sistema". Com isso, percebe-se que ele não queria que o personalismo fosse visto apenas como ideal, mas que tivesse um teor filosófico e sistemático. O personalismo é mais que um sistema onde se prega um ideal ou um conjunto de ideais. É uma filosofia, pois pretende chegar a verdades sólidas e fundadas em análises intelectuais e críticas. No entanto, como diz Mounier (2004, p. 14), "[...] sendo a existência de pessoas livres e criadoras, a sua afirmação central introduz no centro dessas estruturas um princípio de imprevisibilidade que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva".

Para dar início à primeira fase deste estudo, que é entrar no universo da pessoa e do personalismo, pode-se dizer que, aqui, a principal fonte de análise é o homem. Mas, não o "homem-indivíduo" e sim o "homem-pessoa". O ser de relação. O que necessita do outro para se definir como pessoa e que, portanto será observado em toda sua realidade compreensiva e em todos os seus aspectos e definições.

O personalismo procura definir o homem de maneira que não o transforme em objeto ou o qualifique como se qualifica máquinas em série. Ele o observa nas suas mais sutis diferenças e a esse respeito Emmanuel Mounier escreve que:

Muitos pensam erradamente que o personalismo pretende somente que, em vez de se tratarem homens em série, se tomem sobretudo em linha de conta as suas mais sutis diferenças. O "admirável mundo novo" de Huxley é um mundo em que exércitos de médicos e de psicólogos tentam condicionar cada indivíduo de acordo com minuciosas instruções. Assim procedendo, de fora e por meio da força, transformando-os em máquinas bem elaboradas e bem alimentadas, esse super individualizado mundo é, no entanto, a antítese de um universo pessoal, exatamente porque tudo está regulado, nada se cria, nada corre ai o risco de uma liberdade responsável (MOUNIER, 2004, p. 15).

Percebe-se, portanto, que o universo pessoal, mais do que um mundo perfeito, é um universo onde cada pessoa é livre. Liberdade esta, não de qualquer jeito, de forma desregrada, mas onde a responsabilidade é fator constante. No personalismo não se encaixa um mundo perfeito, onde nada se cria e tudo é "programado" como se o homem fosse uma máquina. É por esse motivo que Mounier vai afirmar que:

A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo, objeto que conhecemos de fora, como todos os outros. É a única realidade que conhecemos e que, simultaneamente construímos de dentro. Sempre presente, nunca se nos oferece. (MOUNIER, 2004, p. 15)

Portanto, é inútil e até "anti-personalístico" pretender conhecer o homem partindo do exterior dele como se fosse um objeto qualquer. O homem é o único ser que, pretendendo compreendê-lo em toda a sua realidade, precisa-se começar de dentro, daquilo que é menos visível aos olhos humanos. Os recursos da pessoa são indefinidos. Por isso, nada que a exprime esgota. Emmanuel Mounier (2004, p. 16) vai dizer que "a pessoa é uma atividade vivida de auto-criação, de comunicação e de adesão, que em ato, como movimento de personalização alcançamos e conhecemos".

O homem, como se vê, é um conjunto de relações complexas, que ao ser visto apenas em um único aspecto, corre-se o risco de reduzi-lo a indivíduo, comprometendo, assim, a compreensão do conceito de pessoa. Com efeito, no personalismo, pessoa e indivíduo são conceitos opostos e a pessoa só torna-se visível na medida em que se liberta do indivíduo que nela está.

É dentro dessas perspectivas que se irá tratar do próximo tópico, onde serão apresentados alguns dos principais conceitos de pessoa e de indivíduo, para que se tenha uma visão mais ampla de como estes dois conceitos são apresentados a sociedade contemporânea.

3.PESSOA E INDIVÍDUO

Como já foi aludido em parágrafos anteriores, a pessoa é mais que uma coisa, um meio para se chegar a algum fim ou algo semelhante. Ela é mais que um objeto.

O ser é anterior a ação e, portanto, a pessoa, e seu valor é anterior e mais fundamental que o valor da ação. O valor "personalista" de uma ação, relacionado estritamente com a realização da ação pela pessoa é, por isso mesmo, origem e base de conhecimento do valor da pessoa e dos valores próprios da pessoa de acordo com sua hierarquia. (SILVA, 2005, p. 293).

Silva (2005) quer dizer exatamente que, a dignidade do homem não pode ser resumida apenas a um ou alguns de seus aspectos. É preciso vê-lo como um todo, cujas partes estão todas interligadas e que, por isso, não pode ser reduzível.

A dignidade humana vai além de sua ação, de sua razão e até mesmo de sua liberdade, pois em alguns casos, como a defesa da vida, por exemplo, nunca se é permitido optar contra. Ela vem em primeiro lugar, bem como os valores morais, etc. Por isso, Silva (2005) fala de uma hierarquia dos valores na citação acima. Conseqüentemente, pode-se dizer que na pessoa existem valores que são invioláveis, os quais constituem o que podemos chamar de "pessoa humana". Estes, portanto, uma vez violados levam o homem ao individualismo, a desvalorização do outro.

A pessoa possui dimensões que vão além do imanente. Em outras palavras a pessoa é um conjunto de relações que envolvem desde sua intimidade até sua convivência com os seus "outros". O homem não é uma "ilha", que existe isoladamente. Ao contrário, é um ser de relação. Segundo Battista Mondin o homem é:

Um ser coexistente e comunicante, um ser excêntrico dotado de uma abertura infinita, graças à qual se move constantemente em três direções: em direção ao mundo, à natureza, em direção aos outros, o próximo e em direção de Deus. (MONDIN, Batista, 1998, p. 8).

A palavra indivíduo vem do latim individuus, que significa não divisível, ou seja, não aberto a algo externo. Neste sentido, quando aplicado ao ser humano, expressa a condição reduzida de um ser que se basta a si mesmo. O individualismo, é portanto, "um sistema de costumes, de sentimentos, de idéias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e de defesa" (MOUNIER, 2004, p. 44).

Vê-se que no personalismo não cabe o individualismo. Ele reduz a pessoa a instância de "coisa", de objeto, e isso faz com que o homem seja diminuído em sua dignidade e se aprisione em seu egoísmo.

Na contemporaneidade, os reducionismos demonstram, de diferentes matizes, o quanto o homem se distanciou da realidade de si mesmo. A ciência, a técnica, o direito, a política, divorciados, em oposição ao ser, conduzem os seres humanos a perderem-se de si mesmos. Essa é uma das principais características deste elemento tão presente atualmente: o individualismo, fruto da crença do homem como indivíduo.

A princípio, a idéia de uma pessoa individualizada oferece certo status de superioridade, de liberdade e de segurança. O capitalismo favorece essa idéia demonstrando que o indivíduo, "pode tudo". Desse modo, perde-se até mesmo o real sentido da vida. A sociedade entra em grande contradição, principalmente quando indica os direitos humanos como sendo invioláveis, e ao mesmo tempo desvalorizando a vida e outros valores que são fundamentais para a pessoa humana.

Com um pouco mais de atenção, observar-se-á que:

[...] incorre aqui uma estranha incoerência e contradição: exatamente em uma época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito a vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente nos momentos emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer. (SILVA, 2005, p, 113)

Desta forma fica visivelmente demonstrada a contradição vivida pela contemporaneidade, que por sua vez, é fruto de um individualismo exacerbado que só traz prejuízos a sociedade. Isso é notório, quando se observa, hoje, as relações de trabalho, onde a pessoa é tratada apenas como meio para se chegar a fins, principalmente lucrativos. A esse respeito Paulo Cesar da Silva diz que:

A pessoa não pode ser tratada como meio para algum fim, sob pena de ser violada, em todas e quaisquer circunstancias de sua existência, como na família, nas diversas profissões, nas instituições particulares e públicas, no relacionamento entre homem e mulher, porque ela é um sujeito capaz de pensar e de escolher os próprios fins. Ela, por direito natural, deve ser fim da ação. (SILVA, 2005, p. 128 – 129)

Uma das maiores dificuldades que o personalismo enfrenta é o individualismo. Ele impede que o homem seja tomado na sua integralidade, além de desmerecer o valor do outro na construção da personalidade em seu sentido mais rigoroso.

A interiorização do valor inerente permite o respeito pelo valor intrínseco do outro e, desse modo, medeia um senso da comunidade ética como metaxológica[1], ou seja, fundamentando uma mediação mútua entre o eu e o outro, nunca esgotada por qualquer automediação singular. (DESMOND, 2000, p.323)

Esta visão de homem indivíduo tem suas raízes principalmente no desenvolvimento da economia de mercado, pois, como já foi citado acima, ele sustenta a idéia de que todos são livres na medida em que possuem bens e isso os leva a um nível de exploração do trabalho pelo capital e mudança de valores, indo de encontro à construção da pessoa. O homem torna-se fragmento de uma sociedade onde o ter é mais bem visto do que o ser de cada um. Dessa forma, entra-se na cultura do utilitarismo, do hedonismo, e de tantos outros "ismos", que podem ser resumidos, falando de uma cultura devastada pela falsa idéia de posse como sendo o centro e fim último da vida humana.

O humano parece não fazer mais sentido. Tudo está tomado por uma desesperança total. As perspectivas de um mundo melhor parecem ter desaparecido, e o homem não significa mais nada. Ele próprio, tentando se colocar no centro de tudo num processo de autocriação acabou por excluir-se do mundo.Não mais se reconhece como possuindo uma essência e, portanto, um objetivo no mundo. Como se não bastasse, como diz Battista Mondin na obra "Definições filosóficas da pessoa humana":

A época moderna, eminentemente antropocêntrica e carregada de subjetividade, como definiu Hegel, tinha pretensão de desenvolver o problema do homem, eliminando a questão de Deus, mas essa via conduziu os pensadores ao niilismo, onde, juntamente com Deus, caiu também o homem. (MONDIN, Batista, 1998, p. 8)

Percebe-se, então, um antropocentrismo exagerado que não deu certo, pois o homem ficou vazio de si mesmo, restando-lhe apenas apegar-se às coisas fúteis, que o levara ao profundo consumismo e utilitarismo.Isso se dá porque, ele, não tendo o transcendente, vale-se daquilo que está mais próximo de seu alcance.

Os utilitaristas não podem se dá conta da complexidade do ser humano, dada a sua antropologia reducionista. O ser humano se compõe, para a visão utilitarista, de sensibilidade e inteligência. A primeira o leva a rejeitar o sofrimento e desejar o prazer. A segunda lhe permite direcionar a sua atividade de maneira a atender o que a sensibilidade indica. A norma moral fundamental é, portanto, elevar ao máximo o prazer e tornar mínimo o sofrimento.

3.1 A "Coisificação" do homem

Entende-se por "coisificação" um processo no qual cada um dos elementos da vida social perde seu valor essencial e passa a ser avaliado apenas como "coisa", ou seja, quanto à sua utilidade, quanto à sua capacidade de satisfazer certos interesses. Pode-se ainda entender o conceito de "coisificação" como produto de uma economia de mercado, em que tudo é medido a partir de seu valor de uso e de seu valor de troca.

Nesse processo de transformação das pessoas em "coisas", percebe-se que elas também são levadas a se "coisificarem", pois precisam se oferecer como produto num mercado que está em busca da melhor oferta. Essa "coisificação" desumaniza o homem e seu meio social, levando a uma sociedade de trocas, despida de sentidos e sentimentos humanistas. O homem é uma engrenagem da máquina capitalista como mostrou Charles Chaplin no filme "Tempos Modernos".

O homem-pessoa é senhor de si mesmo e inalienável. Possui uma interioridade e autodeterminação. O ato de vontade em cada homem é insubstituível por qualquer outro ato que não seja o dele. Cada ser humano é único e irrepetível. O homem é sujeito e objeto da ação. O sujeito, aquele que age, dirige a sua ação para um objeto. Pode haver outro significado do termo objeto que é aquele que indica quando uma pessoa é reduzida a um nível ontológico inferior ao seu, sendo tratada como objeto, como coisa, caracterizando-se como um instrumento de uso. Ocorre, aqui, um desvirtuamento da finalidade do homem-pessoa.

É de grande importância analisar o sentido da palavra "usar", tendo-se em vista as implicações que aparecerão tanto para a antropologia como para a ética. Até certo ponto, usar e não usar, tendo a pessoa como fim da ação, encaminhará decisivamente o problema da norma personalista. Segundo Karol Wojtyla (1982, p. 11), usar significa "servir-se de qualquer coisa como instrumento, por outras palavras quer dizer servir-se de um objeto de ação como meio para um fim visado pelo sujeito agente".

É possível perceber, fundamentalmente, dois significados da palavra "usar" no que se refere à pessoa.O primeiro pode ser aquilo pelo qual se constitui o fim da ação e dessa forma a existência de meios é indicada pela existência do fim. O segundo, por sua vez, é aquele em que o meio se submete ao fim e, de certo modo, àquele que age. O meio, portanto, está a serviço do agente e do fim.

Nos dois sentidos da palavra "usar", apresentado aqui, tem-se o homem reduzido a uma instância, que é o de "coisa". No primeiro, ele é coisificado. No segundo, ele se dá ao processo de coisificação. Há sempre essa dualidade, pois a própria sociedade aponta para isto, e quem não se encaixa neste perfil, corre o "risco" de ser "excluído". Fato este contraditório, uma vez que a pessoa é valor inviolável e vai além daquilo que pode oferecer, e, portanto, está para além do "útil". O que se vê é sempre a proposta de transformar o homem em meio e não mais como fim de toda ação.

A verdade é que homem não pode se deixar dominar pelos meios materiais. Se isso acontece, ele também poderá ser tratado como coisa. Entenda-se que não se está afirmando que o homem não necessite de bens materiais para viver, mas que é necessário haver um equilíbrio entre técnica e ética, ou seja, valores, normas, conduta. Caso contrário esse ser seria definido simplesmente como aquele que faz e nesta definição existe um perigo muito amplo, pois só seria homem aquele que pudesse: fazer, produzir, construir, etc.

Poder-se-ia, então, perguntar: e os paralíticos, os cegos, os idosos, os bebês, enfim, todas as pessoas que são "incapazes" de produzir, de fazer? Não seriam elas também incluídas no conceito de homem? Ou será que estes não têm a mesma dignidade de ser humano?

Todas estas são questões que se podem levantar quando o homem deixa de ser visto integralmente e passa a ser considerado apenas em um ou outro de seus aspectos, enquanto que, na verdade, estão interligados entre si, formando um conjunto de caracteres denominado "ser humano".

3.2 O homem não é coisa: A visão Integral do Homem

Sendo assim, antes de relacionar o conceito de pessoa com o de integralidade, far-se-á, um epítome do pensamento de Batista Mondin para, de forma resumida, serem apresentadas algumas definições de pessoa humana como: ser cultural; ser livre e ser espírito, uma vez que o homem é um ser pluridimensional.

Ser cultural

Ao homem se deram e se podem dar inumeráveis definições, desde aquela humorística de Platão, um bípede sem penas, àquela muito séria de Hegel, aquilo porque o homem é homem, é o espírito, e aquela universalmente conhecida de Aristóteles, animal racional, e aquela menos conhecida de Cassirer, mas da mesma forma significativa, um animal simbólico. Mas uma das definições mais objetivas, é aquela que considera o homem ser cultural. (MONDIN, 1998, p. 13)

Nenhum homem se autoconstitui. Ao longo do tempo ele vai se lapidando de forma contínua, tanto pela própria natureza (enquanto leis naturais) como pela cultura. No entanto, como diz Mondin (1998, p. 14), "a filosofia moderna realizou uma mudança radical, pois, não o vê mais como uma criação da natureza, mas como um produto de si mesmo".

Em alguns casos o homem é tomado como fruto somente da cultura. Isto é um dado irrelevante, uma vez que, ele depende também da natureza que lhe inscreve desde o princípio de sua vida. Os instintos são bons exemplos do toque das leis naturais no homem. Afinal, "todas as ações [...] por necessidade e instinto são produzidas em nós pela natureza" (MONDIN, 1998, p. 14)

Nota - se que o homem não é simplesmente o sujeito ativo da cultura, mas também passivo. Não é somente artífice. É também produto principal. E como Batista Mondin (1998) diz, a tarefa primeira do homem não é construir casas, carros, computadores, mas sim, "construir o homem, um projeto de humanidade que seja adequado à dignidade e à exigência da pessoa humana" (MONDIN, 1998, p. 14). O objetivo primário da cultura é, portanto, promover a realização da pessoa.

Ser livre

A liberdade é o ponto essencial que faz do homem um ser cultural. A liberdade permite que o homem consiga aquilo que os demais animais conseguem mediante aos instintos. Ao contrário dos animais, o homem não nasce quase pronto para instintivamente sobreviver. Nele, isso de desenvolve gradual e livremente. "Na liberdade confluem as melhores energias do homem, que são o conhecimento e a vontade. O ato livre não é um ato cego, instintivo, todavia, é um ato da vontade iluminada pela razão" (MONDIN, 1998, p. 17).

Ser espírito

O homem como fenômeno cultural pode "esconder", pela sua materialidade óbvia, ou "revelar", através de uma atividade reflexiva de causa e efeito, um pressuposto importantíssimo à própria cultura, que é o ser espiritual do homem, apresentado à consciência como um epifenômeno ou fenômeno secundário. O ser espírito do homem é uma prova, segundo Mondin, que necessita de argumentação e demonstração. Por não ser um dado imediato, podemos cometer o erro de negligenciar sua importância.

Anteriormente se viu um homem dotado de potência cultural e liberdade. O seu ser espírito já se encontra implícito nessas duas definições. Tanto é verdade que a sua espiritualidade é a possibilidade destas.

Há vários indícios imediatos que comprovam o homem como um ser espiritual: a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, etc. Segundo Mondin o de maior evidência é a liberdade. O homem-espírito tem a capacidade de transcender os limites da matéria, sobrevoa livremente pelo espaço e pelo tempo, que outrora prendiam seu corpo.

Mondin dá uma multidefinição de homem, que não se restringe num sistema fechado de conceitos, nem dá brechas ao relativismo, muito menos ao holismo,[2] porque não o vê como infinito senão como absoluto. O autor não se preocupa diante da impossibilidade de encerrar o ser humano num ideal matematicamente provável. Quer nos apresentar uma visão integral do homem considerando suas dimensões: somática e espiritual, psíquica e intelectual, religiosa e artística.

4. MOUNIER E MARITAIN: Pessoa e Integralidade

A pessoa, ser mais importante que existe no universo, protagonista da cultura e da história e único sujeito que possui direitos e deveres, é um ser consciente, que se realiza na relação com os outros. Está implícita a sua passagem pelo outro, que o entende como envolvendo todas as dimensões do homem: bio-psico-social, afetiva, espiritual, política econômica, constituindo a alteridade[3], que engloba o conceito de diversidade. O ser humano é pessoa integral: corpo, com dimensão material e dimensão espiritual, que ocupa tempo e espaço limitado, mas que também pode transcender o estado de imanência e lançar-se ao transcendente.

Em Mounier fica explícita a centralização da pessoa em relação às ações e aos valores propostos pela própria sociedade. Nesse sentido, vale afirmar que "a pessoa não é um objeto que se separe e se observe. É um centro de reorientação do universo objetivo" (MOUNIER, 2004, p. 25). Por isso, deve ser observada sob a perspectiva não individual de verdade, mas, como uma unidade indissociável. E como já foi mencionada em parágrafos anteriores, a pessoa é a única realidade que, mesmo sempre presente, nunca se oferece para ser conhecida. Isso ocorre simultaneamente. Aos poucos se constrói um conhecimento desta a partir da interioridade.

Analisando calmamente tudo o que foi explanado até aqui, percebe-se que foi dito muito mais o que a pessoa não é e o que ela pode ser, do que aquilo que realmente a define como "ser pessoa". Isso, porque ela não é totalmente visível e muito menos um resíduo interno qualquer. A pessoa é "atividade vivida de auto-criação, de comunicação e de adesão, que em ato, como movimento de personalização, alcançamos e conhecemos" (MOUNIER, 2004, p. 16).

Esse movimento de personalização e, portanto, de adesão ao que é mais humano, deve acontecer de forma gradativa. Cada pessoa o realizando de forma integral vai despertando e atraindo outros a sua volta, para assim, ir-se libertando do pesado sono em que vegetava e que ainda a amortece. É por isso que mais tarde Mounier vai dizer que "a pessoa só se encontra quando se perde" (MOUNIER, 2004, p.63), pois, é exatamente esse processo de lançar-se ao movimento de personalização que caracteriza a conversão e adesão à pessoa integral.

Mounier (2005, p. 101) fala que "uma teoria da ação não é, pois apêndice ao personalismo é seu capitulo central". Ou seja, cada pessoa não tem o dever de apenas personalizar-se a si próprio, ela deve comprometer-se com os demais ao seu redor para que também eles possam "converter-se" e acordar do denso sono e do estado de "vegetação" que atenua o indivíduo.

Nesse contexto de ação, chave central do personalismo para Mounier, nota-se claramente, que ele tenta resgatar o sentido de pessoa responsável, e que pode realizar grandes ações quando confia em suas próprias capacidades e no imenso poder que ela detém.

O mesmo vai afirmar Maritain em sua obra "Humanismo Integral" quando diz que:

O humanismo tende a tornar o homem mais verdadeiramente humano, e a manifestar sua grandeza original fazendo-o participar de tudo que o pode enriquecer na natureza e na história (concentrando o mundo no homem... e dilatando o homem no mundo) (MARITAIN, 1942, p. 2).

O ser humano se auto-constitui, não no sentido de uma existência por si própria, como dizem alguns humanistas, ponderando que o homem faz sua própria "gênesis", mas no sentido de que, por ele está inserido num mundo cheio de problemas e obstáculos, deve lutar para torná-lo mais humano possível. É disso que fala Mounier e Maritain.

Jacques Maritain, na sua obra "Humanismo Integral", apresenta a idéia de uma sociedade nova, animada e motivada por princípios Cristãos, na qual simultaneamente as instituições leigas mantêm sua autonomia. Vindo a ser esta a sua proposta:

A idéia que ele delineia é a de "cidade leiga em modo vital cristã", ou de "estado leigo constituído de modo cristão", ou seja, de "um estado no qual o profano e o temporal tenham plenamente sua tarefa e dignidade de fim e de agente principal, mas não de fim ultimo e de agente principal mais elevado (REALLE, 2006, p. 390).

Maritain ao falar de uma sociedade pautada vitalmente nos valores cristãos, não quer dizer que todos o devam ser cristãos para serem consideradas pessoas, ou algo parecido. Isso deve ficar bem claro antes que se adentre no em seu pensamento.

Quais seriam, então, esses valores Cristãos? Pode-se dizer que são: a vida, a liberdade, fraternidade, respeito ao próximo, justiça, dignidade, etc. Todos esses são valores que podem ser considerados universais, mesmo que sejam de origem cristã. É por isso que Maritain os considera fundamentais para se alcançar a pessoa em sua integralidade. E Mounier segue a mesma linha de pensamento. Isto fica provado quando afirma que:

A própria fé num Deus pessoal recorre a mediações impessoais: noções de bondade, de onipotência, de justiça, regras morais, estruturas espirituais etc. os valores, no entanto, diferem totalmente das idéias gerais, embora um como que fraqueza os incline permanentemente a nelas cair. (MOUNIER, 2004, p. 88)

E ainda que:

os valores são fonte inesgotável e vivas de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade (MOUNIER, 2004, p. 88).

Vale ressaltar, ainda no contexto dos valores cristãos como base para o homem integral, que Maritain, mesmo sendo humanista, não é, como o foram os "humanistas" clássicos: simplesmente um antropocêntrico que concentra todo o poder nas mãos do homem como auto-gênesis, dizendo que "a infelicidade do humanismo clássico foi de ter sido antropocêntrico e não humanismo" (MARITAIN, 1942, p.24).

Segundo Maritain, existem dois humanismos, um teocêntrico, que é o Cristão, e um antropocêntrico, o qual considera o homem como sendo o centro dele mesmo e de todas as coisas. Sendo esta segunda uma falsa concepção de humanismo, Maritain diz que deve ser tomado pelo nome de "humanismo inumano, e deva sua dialética ser encarada como a tragédia do humanismo" (MARITAIN, 1942, p.27).

Na contemporaneidade essa visão de "super homem" é bem visível, e como Maritain acenava, pensar em um homem capaz de se auto-gerar é pretender fazer do homem um deus, restando apenas "o nada" ao ser humano. Cai-se, portanto, aqui, em uma desesperança, pois o próprio homem não pode ser capaz de salvar-se a si próprio.

Assim como Emmanuel Mounier, Jacques Maritain pretendia resgatar o homem do estado decadente no qual se encontrava.Almejava trazê-lo de volta às suas mais essenciais definições. O ser humano da contemporaneidade fora lançado em uma incerteza, numa desesperança em si, justamente por não ter conseguido salvar-se. E um dos pontos fundamentais deste retorno é a introdução do conceito de uma sociedade reabilitada em Deus, em um ser transcendente.

Assim se expressa Maritain:

Neste novo momento da história cristã, não seria a criatura nem desconhecida nem aniquilada diante de Deus; e não seria tão pouco reabilitada sem Deus ou contra Deus; seria reabilitada em Deus. Não há mais senão uma saída para a história do mundo, quero dizer em regime cristão, seja qual for a sorte do resto. É que a criatura seja verdadeiramente respeitada em sua ligação a Deus e por causa de sua dependência para com ele; humanismo, mas humanismo teocêntrico, enraizado lá onde o homem tem suas raízes, humanismo integral, humanismo da encarnação. (MARITAIN, 1942, p. 70).

No humanismo integral, assim como no personalismo, há sempre a tentativa de visualizar o homem em suas mais diversas dimensões, principalmente na dimensão transcendente, que sofrera grandes declinações por causa de um humanismo, exageradamente, antropocêntrico, que excluía qualquer possibilidade de ligação entre ele e Deus. É dessa forma que podemos concluir que esse indivíduo na contemporaneidade, sofre muitos reducionismos e passa por uma crise antropológica.

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o percurso deste artigo foi possível absorver o que há de mais importante sobre "o personalismo de Emmanuel Mounier e sua influência para a compreensão do 'homem integral' na contemporaneidade".

Desde sempre o homem é constituído pessoa. No homem já existe todas as suas dimensões as quais foram citadas no decorrer da leitura. Ele é, portanto, ontologicamente, um ser imanente e transcendente. Em outras palavras, pode-se dizer que ao ser do homem a imanência e a transcendência são atributos essenciais e naturais e não acidentais e artificiais por si. Sendo assim, afirma-se que a imanência e a transcendência, uma vez que faz parte do ser da pessoa, constituem todos os seus atributos.

A pessoa quando inserida no meio social deve desenvolver sempre esses atributos, pois o homem não é apenas um "produto passivo", mas sim ativo. Ele atua sobre o meio para transformá-lo. Ao mesmo tempo em que é espectador, é também agente dessa comunidade humana da qual faz parte.

Talvez o grande problema da sociedade contemporânea esteja no fato de um dia o homem ter achado que podia dominar tudo, e tudo transformar. Não se preocupou consigo próprio e lançou-se em um profundo abismo de perda do sentido de homem integral. O sujeito contemporâneo se encontra perdido em si mesmo e não percebe o seu "outro". O antropocentrismo o reduziu a aspectos daquilo que ele realmente é.

Confiando cegamente no poder ilusório da ciência, o homem pensou que pudesse ser imparcial ao conhecimento, ou seja, que ele pudesse agir ser interagir. Em outras palavras, pode-se dizer que a contemporaneidade entrou em crise por fracassar em suas tentativas realizadas com malogro, pois o homem jamais conseguirá ser imparcial ao objeto: Pessoa é relação.

É por essas e outras tentativas inférteis do homem contemporâneo que Mounier vai dizer:

A crise espiritual é a crise do homem clássico europeu, nascido com o mundo burguês. Convenceu-se de que realizaria o animal racional, com a razão triunfante a domestificar definitivamente a animalidade, e a felicidade a neutralizar as paixões [...] não se sabe já o que é o homem, e como assistimos às espantosas transformações por que em nossos dias passa, pensa-se que não haverá natureza humana [...] a crise das estruturas mistura-se com a crise espiritual. (MOUNIER, 2004, p. 116 – 117).

Portanto, personalismo é voltar a atenção aos valores inerentes na pessoa e perceber sua contribuição para a transformação do meio no qual vive, para assim se poder chegar a um homem que seja verdadeiramente integral.

REFERÊNCIAS

DESMOND, William. A Filosofia e Seus Outros. (tradução: José Carlos Aguiar de Sousa), São Paulo: Loyola, 2000.

MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral. (Tradução: Afrânio Coutinho), São Paulo – Rio de Janeiro – Recife – Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942.

MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. (Tradução: Ir. Jacinta Turolo Garcia), Bauru - SP: EDUSC, 1998.

MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. (tradução: Vinícios Eduardo Alves), São Paulo: Centauro, 2004.

REALE Giovanni; ANTISERI Dario. O pensamento de Jacques Maritain e a neo-escolástica na França in: História da filosofia. Vol. 6. São Paulo: Paulus, 2006.

SILVA, Paulo Cesar. A antropologia Personalista de Karol Wojtyla. Aparecida: Idéias e Letras, 2005.

WOJTYLA, Karol.Amor e responsabilidade, São Paulo: Loyola, 1982.




Autor: Maeldon Silva


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