Só me faltava essa! (Cap 1)



 

261 - “SÓ ME FALTAVA ESSA !”

 

Foi a ultima coisa que a Teresa disse, antes de cair numa crise de choro,  que vinha liberá-la dos dissabores do dia.

Nada correra bem, desde a manhã, quando o Daniel saia apressado para o trabalho.

Contrariando o hábito, ela saiu na porta para se despedir e “captou” a sua  olhada rápida, mas muito especial, para a vizinha da frente.

Estavam a cem metros de distância, mas a Teresa viu uma parte, ouviu outra, imaginou uma terceira e adivinhou  o resto.

Estava montado o jogo:  Aquela sem-vergonha andava arrastando asas  para o Daniel.

E ele, como qualquer garanhão que se respeite, não só não ficara na dele, quietinho, mas, enchido o peito, gritara:

“Bom dia, dona Felícia!”,  

E a Felícia:

“Bom dia, seu Daniel, bom serviço!”

Ele não percebera que a Teresa estava na porta e ficou todo sem graça, quando a voz dela se juntou à da vizinha, arremedando o cumprimento.

“Bom dia, seu Bobo, bom serviço, viu?!...”

Pode não ser nada; mas com um  ponto de partida desses aquele “Google”, implantado em qualquer cabeça feminina, inicia um trabalho febril de pesquisa, que  não pode levar a nada de bom.

Os verbetes se acumulam: recomendações da mãe,  atitudes suspeitas do pai, romances lidos na adolescência, comentários das amigas,  conversas no salão de cabeleireira, “causos” e traições dos antigos namorados.

Na verdade, os namorados não importam , são bilhetes corridos, mas estão aí para provar que todo homem é sem-vergonha, todos traem, inevitavelmente.

Está escrito até na Bíblia, num versículo qualquer.

Num instante, pensa nas traições do Daniel – ela nunca percebeu nada, mas sabe que ele não é um santo, é traidor como todos os outros, não escapa.

E ela só não sabe, porque a esposa é sempre a última a saber.... – ou será o marido? Bem, não vem ao caso.

Assim, o dia da Teresa começou amargurado – e à noite haveria temporal.

Teresa morava numa “casa de campo”  - pouco melhor que uma tapera – a um quilômetro da fábrica onde o Daniel trabalhava.

Tinham saído da cidade grande, quando a fábrica viera para cá, pelas muitas vantagens:  ar puro, uma horta, espaço para as crianças correrem....Daniel ia e vinha do trabalho a pé;  enfim, toda uma série de benefícios, que tinham encantado os dois.

Só depois, descobriram que a venda mais próxima ficava a quatro quilômetros; e a escola também; que a rua  não era uma rua: era um mar de poeira, quando batia o sol e um rio de lama, quando chovia. 

A saúde das crianças tinha melhorado, realmente:  a asma do Danielzinho (o Junior) , a alergia do Zeca, a tosse da Anita tinham sumido. E os três tinham um apetite de leões.

Teresa agradecia a Deus, e só por causa disso tinha concordado em ficar mais um ano ou dois naquele cafundó.

Mas naquele dia, especialmente, tudo corria mal.

Andava tão distraída, que deixou cair a cesta dos ovos recolhidos no galinheiro.

Três ovos quebrados. Iam fazer falta.

Antes do almoço, um golpe de vento quebrou a corda de roupas; três lençóis, ensaboados, lavados, quarados,  enxaguados e torcidos,  caíram no chão, naquele pó sujo e grudento.

Ela os lavava para o chefe do Daniel, para ganhar um dinheirinho extra.

Agora teria que fazer tudo de novo:  mais duas horas de trabalho duro, água, sabão ....

Não era mesmo o dia dela ... Daí a explosão de choro. Mas logo se refez.

Estava aprendendo a ser durona, a conviver com os revezes.

Afinal, cair num choro, de vez em quando, servia para aliviar a pressão.

Era uma defesa: como aquela chuva rápida e violenta, de dez minutos,  no meio de uma  tarde quente. Um alívio; uma salvação. 

 

As crianças eram outra preocupação.

Não eram muito espevitadas, mas é sabido: sempre que podem, inventam alguma novidade; deixam aberto o galinheiro, sobem na goiabeira, ficam presas no arame farpado da cancela.

Ou pior, somem da vista. Aí, é o caso de se preocupar. 

Ainda mais, dois moleques e uma menina; e junte a turma de quatro meninos um pouco maiores, do outro lado da rua.

Justamente com este pensamento, a Teresa saiu na porta para chamá-los.

- “Crianças, vamos almoçar! Está na hora!, vamos, gente! “ gritou, esperando ser ouvida.

Mas logo viu que alguma coisa não estava bem.

O Junior vinha capengando, o nariz sangrando, um joelho esfolado, a roupa suja de terra.

A mãe, vendo que ele estava andando,  tranquilizou-se.

Só tem perigo quando desmaiam, ou quando falta algum pedacinho deles.

Quanto ao resto,  conserta-se.

Mas o Junior estava mais ferido no orgulho,  que no corpo.

Um dos garotos vizinhos era filho da Felícia, a “conquistadora”.

Chamava-se Gregório,  um  tipinho metido a besta, cheio de si e que dominava a turma.

Ele tinha murmurado algo, com os amigos dele,  a respeito da Anita.

O Junior não gostou e foi pedir satisfações; o outro não deu, saíram uns tapas, uns empurrões e antes que alguém pudesse separá-los, estavam atracados, lutando.

O Junior tropeçou, o outro foi em cima, e encheu-lhe a boca de poeira, acrescentando  uma saraivada de palavrões. Até que não eram dos piores; tinham-nos  apreendido na escola e nem sabiam direito o  que queriam dizer.         

O Junior vinha com a moral abalada e Anita tentava consolá-lo, agradecida por ele ter tomado sua defesa.

Almoçaram quietinhos, cada um remoendo o acontecido.

Mas esse dia estava destinado a não ser tranquilo.

As pessoas, sem o saber,  são muito  sensíveis às condições da natureza:

Às vezes é o vento nordeste, quente, úmido, pesado, que entra em rajadas pela roupa e pela ventas, trazendo aquela poeira fina que gruda em tudo.

E as pessoas ficam com dor de cabeça.

Às vezes é a paradeira de uma tarde mormacenta, sufocante, carregando os céus de eletricidade, pronta a explodir em relâmpagos e trovões.

E as pessoas ficam irritadas, nervosas, impacientes.

Muito melhor, quando vem uma chuva mansa, de dois, três dias, que deixa todos moles, de espírito úmido e triste, mas conformados consigo mesmos e resignados com os males do mundo.

Mas o melhor é uma manhã de sol, quando  se respiram  cores, calor e luz e tudo isso  filtra nos pulmões, transformando-se em paz, carinho e felicidade. 

Enfim, vê-se logo que a meteorologia é uma ciência diretamente ligada à alma, muito mais do que poderíamos imaginar.

As crianças saíram juntas, depois do almoço, dando um pouco de sossego à Teresa.

Mas estavam empenhadas numa expedição.

Atravessaram o terreno baldio,  invadiram correndo a horta do velho Balbino, aquele vizinho mal humorado, que vivia reclamando; corriam e  pulavam rápido, cuidando de não pisar nos pés de couve, que cresciam como pequenos soldados no chão encharcado  e entraram na casa do Gregório, pelos fundos. 

O Gregório foi colhido de surpresa mas, vendo a Anita, retomou as gracinhas.

Aí se deu a maior surpresa:.

Ela avançou, empurrou-o, deu-lhe uma inesperada chave de braço, torcendo-o com força. Gregório tentou reagir, mas ela não largou a presa.

Ele foi obrigado  a se ajoelhar, gritando de dor.

Ela não deu bola;  estava forte de raiva, irresistível, saboreando a vingança, doce como uma sobremesa de goiabada..

Virou o braço dele até quase deslocá-lo.

Ele teve que deitar e ela lhe pôs um joelho no peito.

–“Pede desculpas!” gritou com voz estrídula.

Ele não respondeu; estava surpreso, sem saber o que fazer, ou pior, sem poder fazer nada, pela primeira vez na vida .

 – " Pede desculpas!” repetiu ela, gritando novamente, desta vez  em seu ouvido. 

Não resistindo mais à dor, ele começou a choramingar:

 - “Desculpe.” 

 - “Não ouvi. O que você disse?”

 - “Desculpe, desculpe.”

 - “Outra vez! Não estou ouvindo! Fala claro!”. 

 - “Desculpe, desculpe Anita! Prometo! Não vou mais falar mal de você, mas me solta. Pelo amor de Deus, está doendo!!!”

Era a derrota completa do Gregório.

Ela soltou finalmente a presa e ele ficou no chão, ainda se contorcendo.

Os outros garotos aplaudiram, festejaram.

Anita ficou radiante. E antes de sair, ainda deu um tapinha no bumbum dele. Suprema humilhação!  

Voltaram por onde tinham vindo, pulando com os mesmos cuidados  sobre as couves do Balbino. 

Teresa, quando soube da coisa,  queria que fossem pedir desculpas; mas parou, ao ouvir que se tratava do Gregório.

Pediu que lhe contassem de novo como tinha sido, tim-tim por tim-tim.

Bem feito, para aquela boba da Felícia.

Metade da sua vingança tinha-se realizado, por mera coincidência. 

 

Mas os fatos atropelam nossos pensamentos e nos impõem  ações e providências.

Não tinham passado dez minutos,  daquele pensamento maldoso,  quando ouviram  gritos.

Alguém, do outro lado da rua, pedindo ajuda.

Podia ser apenas brincadeira de crianças; podia ser alguma briga de vizinhos; podia ser alguém correndo atrás das galinhas.

De pronto, Teresa não deu muita importância. Mas os gritos continuavam; agora eram duas, três crianças, gritando, desesperadas. Só podia ser realmente alguma coisa muito grave. 

Teresa saiu, ficou parada por um segundo na porta, percebeu o que estava acontecendo.

Felícia tinha ido buscar água no poço diante de sua casa.

Tinha apoiado o corpo na mureta; e esta havia cedido; alguns tijolos caíram; ela perdeu o equilíbrio, tentou inutilmente agarrar-se em alguma coisa, não conseguiu e acabou despencando, oito metros na escuridão, até alcançar a água, com aquele baque surdo do nadador jogando-se na piscina.

Agora estava mergulhada em três metros de água, desmaiada ou morta, talvez, o corpo abandonado, solto, sem mostrar nenhuma reação

Teresa correu para o poço, olhou, procurou um apoio qualquer.

Não havia nada em que se pudesse segurar para descer; não havia uma corda, uma escada; o tempo passava, inexorável.

Mandou as crianças saírem de lá, para evitar uma nova tragédia.

Voou até em casa, agarrou todas as roupas de cama que encontrou – uns dez lençóis, três colchas, dois cobertores e voltou.

O Junior, sem uma única palavra, tinha entendido tudo e estava trazendo metade da carga.

Foram juntando uma por uma as peças, fazendo uma espécie de corda longa, uma  “teresa”  como os presos apelidam este meio de fuga.

Amarraram uma ponta à grande goiabeira, outra ponta à cintura de Teresa.

Tremendo de medo, de emoção, de susto, com a adrenalina a mil, ela deu o primeiro passo, tentando não deixar cair poeira, terra ou tijolos sobre a pobre Felícia , deitada lá no fundo.

Junior, Gregório e outros dois moleques seguravam a corda, soltando-a um pouco por vez.

Teresa foi descendo, aos trancos, aos trambolhões.

Em vinte segundos estava no fundo; agarrou a moça, percebeu que ela estava afogando.

Tinha que tirar a água de seus pulmões. 

Enquanto encostava seus lábios aos da moça, um pequeno pensamento, tão rápido quanto maldoso veio à sua cabeça:

- “Você queria os lábios dele; que tal os meus?” 

Mas enquanto se mantinha à tona e segurava com seus braços fortes o corpo dela, sugava e cuspia, enchendo-lhe os pulmões de ar, fazendo-a expelir a água, com força, quase com uma raiva violenta e desesperada – porque é o desespero que move o ser humano diante da morte. E ele encontra forças que não conhecia, e luta e se debate e a faz recuar.

Finalmente, um pouco depois – pareceram horas, mas era apenas um punhado de segundos -   Felícia tossiu, espirou, tossiu de novo, abriu os olhos – e quase desmaiou de novo. Por força: estava sozinha com a Teresa, no fundo do poço,  as duas molhadas até o pescoço, ela com o gosto da outra na boca, misturado com a sopa de pó, cal e tijolo, mas claramente  perceptível.

Os meninos começaram a puxar os lençóis, mas só com a chegada de dois homenzarrões que trabalhavam lá perto, as moças puderam ser resgatadas. 

Não houve comemoração, além de um simples abraço, apertado,  molhado, que espirrou água por todos os lados e acabou dando um banho nas crianças; um olhar de agradecimento, uma resposta muda, mas carinhosa.

Teresa voltou para casa, e pensava:

-“Como é que as crianças vão dormir hoje, sem lençóis?” 

E logo se lembrou dos lençóis que havia acabado de lavar novamente e viu que tudo, sempre,  acontece por algum motivo. Somos nós, que não sabemos de nada, que  nem desconfiamos,  que ficamos sempre surpresos .....

Eles usariam, por aquela noite, os finos lençóis de linho do chefe do Daniel, com cheirinho de lavanda, como ele recomendara.

Com certeza, tinha sido um dia especial. Mas, no fim, não tinha sido tão ruim assim... 

 

 

 

   


Autor: Romano Dazzi


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