Só me faltava essa! (cap 4)



280 - So me faltava essa! (Capítulo 4)

 

 

O jantar tinha corrido muito bem. A comida estava ótima e todos aproveitavam para comemorar o salvamento da Felícia, a coragem da Teresa.

Os ânimos andavam inspirados, uma euforia exagerada espalhava-se, como um sutil veneno, entre os convivas.

Mas quando as moças levavam para a cozinha a louça e preparavam o café, Teresa pegou no braço da Felícia e pediu-lhe que desse um tempo.

- Vamos ter que pensar juntas mais um pouco, colocar na mesa todas as nossas  dúvidas, antes de passar aos homens esta idéia maluca.

- Você tem razão -  concordou logo Felícia – Na minha cabeça também estão aparecendo alguns pensamentos novos; preciso de um pouco de tempo. 

- Pois é; se falarmos com os homens, sem termos certeza do que vamos propor, não haverá caminho de volta.  É  melhor esperarmos mais um dia.

 

E assim ficaram. Na manhã seguinte depois que Daniel e Jorge saíram para o trabalho, depois que as crianças debandaram em revoada para a escola,  as moças sentaram na sala da Teresa e  recomeçaram a conversa da noite anterior.

 

O que nos move a tomar  decisões, apesar do que imaginamos, não é o futuro; é sempre o passado.

Pode parecer absurdo; ao decidir mudar de emprego,  de escola,  de casa; ao sair de sua terra ou de seu País, para procurar o futuro, na realidade, sem perceber, você fez na ponta do lápis a soma do seu passado  e resolveu que vale a pena jogar fora esta certeza,  aceitando uma aposta com o desconhecido.

 

As moças fizeram inconscientemente  este cálculo.

- Quanto mais penso nesta idéia, mais acho que é completamente maluca! – disse Felícia, no meio da discussão.

- Bom; mas, sem esta idéia maluca, quais outros caminhos teríamos?

- Nossos casamentos não vão melhorar; este é um fato. .

- Poderíamos largar nossos maridos – deixá-los livres.

 - E eu teria que arriscar-me a vê-lo sair, sem dono e sem destino, pronto para cair na armadilha de qualquer espertalhona?

- Nós duas sabemos, Felícia, que qualquer homem, além de todos os outros defeitos que só descobrimos ao casar, é muito ingênuo e despreparado para a vida.

- Concordo; é por isso que os solteirões são tão instáveis e irrequietos.

- Poderíamos pensar num divórcio amigável ou litigioso, numa separação legal, num desquite...

- Todos palavrões, Teresa; que implicam em despesas com advogados, em  pensões, as crianças afastadas de um ou do outro, com horários para visitas e outras complicações.

- Vamos voltar ao foco, Felícia; o que queremos, é só reconquistar nossos maridos; repetir, se possível,  aqueles momentos maravilhosos dos primeiros meses, - ou até anos – do casamento. – os olhos de Teresa enchiam-se de lágrimas. 

- Reconquistar o interesse, reavivar a paixão, sorver novamente, aos golinhos,aquele vinho generoso, que dá gosto e graça à vida de um casal - completou Felícia. -  Não foi exatamente com estas palavras,  mas o sentido era este.

  - Hoje à noite mesmo, vamos juntar os dois e comunicar nossa decisão – disse Felícia, empolgada.

- E seja o que Deus quiser! – concluiu Teresa

- Em sua casa, ou na minha?

- Na minha. Tem mais espaço, se tivermos que brigar; e móveis mais baratos, caso eles também entrem na briga....

 

O homem de família permite-se mandar e desmandar, porque se aproveita da

esposa; cansada e embrutecida pelo estúpido serviço manual diário, ela se  encolhe e se anula. E ele assume ares de dono, de conquistador.

 

Foi uma surpresa, quando, ao chegarem, Daniele e Jorge encontraram  as esposas a espera-los na porta de casa; sem combinar, tinham mandado as crianças para a  casa das avós,  sem muitas explicações.  E as duas passaram o fim da tarde arrumando-se, embelezando-se, enfeitando-se. Estavam tão sedutoras e elegantes quanto duas noivas; e se sentiam assim mesmo...

O inusitado da situação, a expectativa mal contida, a ansiedade pelo que poderia acontecer, tomavam conta de suas faces, que estavam mais que rosadas,  enrubescidas e risonhas.

Mandaram os maridos  se lavarem e trocarem de roupas, com ordem expressa de votarem dentro de meia hora. Haveria pizza e uma garrafa de vinho barato.

 

Encantados por vê-las tão diferentes e pressentindo no ar alguma grande novidade, ambos foram se arrumar, como crianças  em dia de passeio.

 

Mal sabiam o que esperava por eles.

 

Mas vamos pensar um pouco nesses dois; porque até agora só as mulheres tiveram vez.

 

Daniel – Nascido e criado num bairro de fábricas, em São Paulo.  Foi um moleque alegre, vivendo com seu bando, inventando novidades; ficava no parque da Água Branca, caçando passarinhos; só porque era proibido. Cursou um primário tranquilo, mais pela inteligência que pelo estudo. Quando entrou no ginásio, ficava distraído, pensativo, como se estivesse resolvendo algum problema importante. Que nada: era pura falta de concentração. Vivia nas nuvens, e só descia na hora do jantar, porque a fome, naquela idade, era tanta. 

Parou de estudar no fim do ginásio e foi procurar emprego na porta das fábricas, levando na mão o seu mirrado canudinho, que não levantava nenhum interesse. Entrou como aprendiz de torneiro na primeira firma que lhe deu uma chance. Tinha quinze anos. E foi aprendendo a profissão, lentamente, da maneira mais chata possível. Seis anos depois, ao sair da fábrica, uma tarde, teve uma visão.  Era Teresa, que na época tinha 18 anos, uma garota bonita e alegre, como todas deveriam ser nessa idade. Ela não prestava atenção em ninguém e Daniel gostou justamente dessa espécie de orgulho, que a destacava das outras.  Jurou que a conquistaria.

Foi rodeando, aproximando-se devagar, cada dia um pouquinho mais perto, mais íntimo, cuidando mais de sua aparência, aparando o cabelo,  tentando tirar do corpo o cheiro do óleo impregnado nas roupas e na pele, que acompanha a profissão. Foi entrando aos poucos em seu coração, sem que ela percebesse

E quando menos esperavam, viraram uma só alma, donos absolutos um do outro.  Como o amor surge,  desenvolve-se, enraíza-se em nossos corações, é um mistério. Tão profundo, que, depois de um milhão de anos, continuamos sem saber nada e cada um de nós recomeça tudo desde o início; e prova e se alegra e sofre outra vez tudo o que qualquer um dos seus tataravôs provou, dois séculos atrás. 

Daniel e Teresa tiveram três dias de lua-de-mel, numa pensãozinha barata em São Vicente. Fazia frio, chuviscava o tempo todo; mas eles mal perceberam, entretidos que estavam em jurar-se amor eterno, em escrever seus nomes, um na alma do outro. E depois, a vida foi melhorando, devagar; ele já era um torneiro de mão cheia, capaz e eficiente. Os anos passaram rápido; vieram os pimpolhos,  que logo andavam e falavam e ocupavam todas as horas e os dias e as semanas – e os fins de semana. Sair de casa, nesse tempo, era uma aventura; sempre acabavam esquecendo um pacote, uma sacolinha, uma criança ... Mas viviam felizes. E esta felicidade simples é o cimento que liga as pessoas, indissoluvelmente.

Eu disse “indissoluvelmente” ? 

Ingênuo ou mentiroso que sou!

Nada é indissolúvel. Qualquer laço desgasta-se,  afrouxa-se,  separa-se.

E se continua no mesmo lugar na mesma posição, é simplesmente por inércia.

Foi esta a sensação que Teresa experimentou naquele famoso dia, e que Daniel também sentia, confusamente, sem entender bem o que era, apenas qu se tratava d algo diferente.

Mulherengo, nunca tinha sido. Traição, pode-se dizer que não. Apesar de que, um olhar pode encerrar mais traição que um beijo, e num simples  gesto de adeus  pode haver mais infidelidade que num abraço sensual.    

Mas uma olhadinha na vizinha, isso sim; sem maldade, sem segundas intenções; ou será que não? Os homens não param para pensar sobre suas emoções; têm até receio delas e se refugiam  no trabalho, assim como a mulher fica entrincheirada nas mil ocupações diárias.

Claro, que sempre existem os que têm olhos compridos, não perdem uma, espiam todas as que passam, avaliam e esquecem na hora. É um interesse genuíno, uma tomada de posição, um apelo ancestral...

A mulher é diferente do homem nisto: ela  não olha em volta a não ser por pura curiosidade; não por interesse; principalmente mulher casada.  Mas as coisas estão mudando tanto, nestes anos, que ninguém sabe mais onde está o certo e o errado.

Mas, não! Outra mentira, outra ingenuidade!

Todos sabemos perfeitamente o que é certo e o que é errado. Tem só um pequeno problema de acerto nas medidas; um pouquinho pra cá, um pouquinho pra lá. Mas a posição é aquela. E mesmo quando não há uma campainha para nos avisar, alguma coisa nos diz que estamos nos excedendo, ou que não é assim que se faz.  Claro que sempre podemos silenciar este cachorro que fica alertando-nos, latindo dentro da gente  Damos um pouco de leite, ou um bifinho, ou um carinho  e ele acaba calando a boca. Depende de nós. Mas sabemos.

Sem dúvida, sabemos.

 

Jorge também sabia.

Fora educado por uma avó, que não tinha muito jeito para convencê-lo, e nem força nos braços para obrigá-lo a obedecer. 

Vivendo assim, mais livre do que o Daniel, encontrou logo uma menina muito jovem, muito bonita, mas de pouco juízo, pela qual se apaixonou. Felícia? Não, não. Não era Felícia.

Sabe-se que as pessoas querem conhecer, ousar, experimentar. Sabe-se que nenhum apelo, nenhum conselho tem resposta, junto a um jovem.

A menina ficou grávida e lutou bravamente contra a família inteira, para não perder o filho. Mas o destino é traiçoeiro. Ela deu à luz, mas faleceu logo em seguida.  Dissabores? Solidão? Arrependimento?  Aos dezesseis  anos, as pessoas têm uma visão da vida parcial, distorcida, irreal; e é fácil morrer de amor. Se os médicos entendessem disso, muitos atestados, que procuram pretextos para uma morte dessas, diriam simplesmente: Morreu de amor...Uma morte bonita, na sua tragédia. Morrer porque os sentimentos são tão profundos, tão arrebatadores, que não cabem mais no coração... e ele estoura.

 .  Assim, ela acabou. E o Jorge, aos dezessete, tornou-se pai e responsável pela criança. Deu-lhe o nome de Gregório; um ano depois, conheceu Felícia – uma moça mais velha, que nunca falava sobre os eu passado -    e casou com  ela, dando um lar ao menino.    Talvez esta história prévia seja uma razão para o garoto  ser  o Gregório enfezado, malcriado, insuportável, que os vizinhos conhecem tão bem.

Jorge, com seriedade e boa vontade, arrumou aos poucos a sua vida e encontrou um trabalho no almoxarifado da mesma fábrica do Daniel. Mas nunca, até agora, tinham tido tanta intimidade.   

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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